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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”
Elementos para análise da criação de um “campo especial” de necessidades mercantis na
contemporaneidade a partir do fetiche da mercadoria.
MARIA RAIMUNDA PENHA SOARES
Rio de Janeiro
Abril de 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”
Elementos para análise da criação de um “campo especial” de necessidades mercantis na
contemporaneidade a partir do fetiche da mercadoria.
MARIA RAIMUNDA PENHA SOARES
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço
Social, da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como pré-requisito parcial para a obtenção do
título de doutor.
Orientadora: Dr. Yolanda D. Guerra
Rio de Janeiro
Abril de 2009
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MARIA RAIMUNDA PENHA SOARES
“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”
Elementos para análise da criação de um “campo especial” de necessidades mercantis na
contemporaneidade a partir do fetiche da mercadoria.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Yolanda Demétrio Guerra (Orientadora/ UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Virgínia Fontes (UFF)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Cristina Maria Brites (UFF)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Maria Lídia Souza da Silveira (UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Marildo Menegat (UFRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Roberta Lobo (Suplente/ UFRRJ)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Sara Granemman (Suplente/ UFRJ)
Aprovada em _____/______/______
4
RESUMO
A tese em questão apresenta elementos para a análise da criação de um ―campo especial‖ de
necessidades mercantis na contemporaneidade a partir do fetiche da mercadoria. Nestes termos, nossa
hipótese de investigação sustenta a idéia de que a criação de um campo de necessidades especiais
ligadas ao desejo e a fantasia é, no atual estágio do capitalismo, um pressuposto para a
realização do valor produzido e disseminação da ideologia burguesa e não apenas uma
mediação entre produção e consumo de mercadorias. Na apresentação dos resultados do nosso
percurso investigativo partimos de alguns aportes teóricos para o entendimento das
necessidades humanas como históricas e socialmente constituídas. A partir daí buscamos as
mediações entre necessidades sociais, fetichismo da mercadoria e do dinheiro e cotidiano,
para elucidar elementos do que chamamos ―campo especial de necessidades‖ e configurá-lo.
Apresentamos este debate em três partes: Das necessidades humanas‖; Das mercadorias,
do tempo e das imagens” e Dos desejos e fantasias do sujeito”, além da introdução e
conclusão. Em cada uma destas ―partes‖ apresentamos argumentos que entendemos
apontarem para a explicitação e apreensão do objeto que investigamos. Em nossas conclusões
trazemos alguns elementos que nos permitem identificar fissuras e possíveis saídas,
destacando que o interesse em estudar a constituição de um campo de necessidades especiais
confirma-se por entendermos que a criação deste evidencia aspectos importantes da produção
e reprodução dos homens contemporâneos. Portanto, mais que estimular o consumo (ou além
de) este movimento reafirma e visa manter mudanças culturais que têm influências marcantes
nas formas de organização social e de resistência ao imperativo do capital. Desta forma,
entendê-lo é também lançar luz sobre uma das formas de controle do capital, controle
exercido através da ―apropriação das subjetividades‖ dos homens contemporâneos.
Palavras-chave: Fetiche, mercadoria, necessidades sociais, subjetividade.
5
SUMÁRIO
―CONFISSÕES AO VENTO‖ .………............................................................……................08
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................12
O tempo presente, o mundo presente.............……………...................... ................................12
Justificativas e aproximações ao ―objeto‖ de estudo ...........……………................................18
Percurso investigativo e dinâmica da exposição ......................................................................28
PARTE I
DAS NECESSIDADES HUMANAS
CAPITULO 1 - NECESSIDADES HUMANAS: social e historicamente produzidas............32
1.1 Contribuições teóricas para se pensar as necessidades sociais a partir de sua
historicidade..................................................................................................................32
1.2 ―Você tem sede de quê?/ você tem fome de quê?- necessidades básicas: universais
ou particulares de determinadas sociedades? .............................................................35
CAPÍTULO 2 - NECESSIDADES E CAPITALISMO OU A RELAÇAO CAPITAL/
TRABALHO PRODUZINDO NECESSIDADES SOCIAIS.....…..........................................42
2.1 Produção, circulação e consumo de mercadorias no capitalismo: a produção determina
o consumo e o consumo determina a produção….…...................................................50
2.2 ―A gente não quer comida, a gente quer bebida, diversão e arte‖: necessidades
radicais como expressão da contradição capital/trabalho...........................................54
PARTE II
DAS MERCADORIAS, DO TEMPO E DAS IMAGENS
CAPÍTULO 3 - O ―MARAVILHOSO MUNDO DA MERCADORIA: sua estetização e
desenvolvimento no capitalismo contemporâneo ....................................................................58
3.1 A mercadoria forma particular dos bens na sociedade burguesa ...........................67
3.2 ―Decifra-me ou te devoro‖ os fetiches da mercadoria e do dinheiro na
contemporaneidade ......................................................................................................71
3.2.1 O fetiche da mercadoria aportes preliminares para o debate contemporâneo..........71
3.2.2 O fetiche do dinheiro algumas considerações fundamentais ....................................77
3.2.3 O fetiche do capital-dinheiro dinheiro gerando dinheiro” .....................................83
6
3.3 Crítica da estética da mercadoria: “perversão” e desenvolvimento das necessidades
no capitalismo ..............................................................................................................88
3.3.1 O maravilhoso mundo das mercadorias sua estetização........................................94
3.3.1.1 Do capitalismo concorrencial ao capitalismo tardio a mercadoria
estetizada.......................................................................................................................98
3.3.1.1.1 Apelos ―sensuais‖ para realizar o valor – o capitalismo concorrencial...........98
3.3.1.1.2 Marca e propaganda como instrumentos estéticos das mercadorias: o
consumismo fiel a era dos monopólios........................................................102
3.3.1.1.3 ―Marcas e não produtos‖- o domínio das grandes corporações a fase tardia
do capitalismo ................................................................................................108
CAPÍTULO 4 - TEMPO DO CAPITAL, TEMPO DA VIDA a obsolescência artificial das
mercadorias e das relações sociais contemporâneas.............................................................119
4.1 A obsolescência artificial das mercadorias ................................................................124
4.2 A busca pela eterna juventude o congelamento do tempo...................................... 132
4.3 A descartabilidade das coisas e das pessoas e a superficialidade das relações
subjetivas o tempo do fugaz.....................................................................................140
4.4 O ―roubo do tempo‖ – a obsolescência artificial das relações sociais.....................145
CAPÍTULO 5 - IMAGEM E FETICHE….............................................................................150
5.1 A imagem como expressão privilegiada do fetiche da mercadoria na atualidade.....150
5.2 A ―captura do sujeito‖ pela imagem a subjetividade como mercadoria.................158
PARTE III
DOS DESEJOS E FANTASIAS DO SUJEITO
CAPÍTULO 6 - DESEJOS E FANTASIAS: o fermento ideológico do fetiche da mercadoria
em tempos contemporâneos....................................................................................................170
6.1. Cotidiano e reificação ou a cotidianidade reificada como necessidade do
capitalismo..................................................................................................................174
6.1.1. O que é afinal a vida cotidiana?...............................................................…...............177
6.1.2. Capitalismo e vida cotidiana ......................................................................................185
6.1.3. Indivíduo social e cotidiano .......................................................................................189
6.2. A mercantilização e estetização do cotidiano a mercantilização da vida..........….200
6.3. A massificação de subjetividades ou de como ser igual a todos com o intuito de se
sentir diferente.............................................................................................................207
6.4. Criação de um ―campo especial de necessidades a partir de elementos dos desejos e
fantasias dos homens contemporâneos.......................................................................211
7
6.4.1. Propagandas ―determinando‖ comportamentos: que linguagem falam as mercadorias
na contemporaneidade?..............................................................................................214
6.4.2. Programas de TV: a promessa de felicidade como linguagem universal das
mercadorias................................................................................................................221
CONSIDERAÇÕES FINAIS: das fissuras do tempo………….............................................229
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............……...….........................................................238
FILMES E DOCUMENTÁRIOS ………………..................................………………........244
8
“CONFISSÕES AO VENTO”
―(...) el viento me confió cosas que siempre llevo conmigo: me habló de
arenas al cielo, y chimeneas al piso.
le pregunté por la chapa del techo de los de abajo,
dijo ‗el hombre ha de luchar para conseguir los clavos,
en vez de incarse a rezar para olvidar sus quebrantos
o de sentarse a esperar regalos eleccionarios.‟”
Confesiones del viento (Liliana Herrero)
Como fazer de uma atividade solitária, que exige dedicação extrema, rigor e método,
algo prazeroso e que liberte e exprima a capacidade que ―as palavras‖ m de nomear aquilo
que parece escapar de nossa apreensão se não podemos dizê-lo, em vez de aprisionar o que se
tem de novo, de criativo e até de inspirador na forma de compreender e explicar o mundo?
Lia ―Memórias de amor e de guerra‖ de Gioconda Belli e imaginava o quanto a
academia nos leva a optar pela dureza na escrita (e no pensar) e muitas das vezes a engessar
mais que libertar o pensamento crítico.
A idéia de que para ser bem feita uma tese deve provocar solidão, dor, sofrimento e,
na maioria das vezes, destruir amores e romances, vigora na academia como algo quase
incontestável. Seja porque alguns dos nossos melhores intelectuais viveram o sabor amargo da
solidão e outros dissabores ao construírem suas teses, seja porque esse caminho parece mais
sério, ousaria dizer ―científico‖ e, vivemos em épocas que o parecer destrona sem piedade o
ser, dos homens e das relações entre os homens.
É desse mundo que ousei falar, ou melhor, é nesse mundo que ouso dizer algo que
possa conta de uma pequena, mas significativa, fagulha de entendimento. Ou seria
conhecimento? Tudo o que digo, e certamente o que deixo de dizer nesta tese, digo também
de mim mesma, os olhos atentos e minuciosos o saberão ler. Digo de mim, não pela pretensão
de ser eu mesma o ―objeto‖ de minhas interrogações, mas por não ter outra forma de dizer,
que no fundo não me revele e, também porque o que digo, digo do presente, com a
sinceridade e a honestidade de quem acredita que ser fiel àquilo que nas marcas do tempo é
a melhor forma de contribuir com a história (e com a memória social), fiel nas suas ações e
nas suas impressões.
9
Portanto, posso estar em desacordo com muitos estudiosos sobre as coisas diversas
que sucedem no presente, mas não estou em desacordo com o tempo presente. Isso,
obviamente, não implica em acertos, mas implica em que se erro é porque sou parte do erro,
se me equivoco por excesso, é porque sou fruto de uma sociedade do excesso, se tropeço e
não consigo ir muito além das encenações contemporâneas é porque vivo na sociedade do
fetiche e, eu mesma sou parte constituinte e constitutiva dela. Mas não posso ser acusada de
omissão e de não querer ver. Esta tese expressa o esforço que pude desprender neste
momento.
Decifrar as fagulhas de utopias que restaram em meio à barbárie que insiste em se
instalar em nossos tempos não é uma tarefa romântica, nem de poucos; tampouco será feita
por palavras ditas ou escritas de diferentes formas; é uma tarefa de homens reais que acredito
poderem usar de armas diversas, até de palavras.
Não ouso ir além de uma forma minha de dizer o que me pedem que seja dito em
nome de um título. Por isso estou aqui, registrando ―impressões‖ que possam me revelar algo
sobre um mundo que é, mas que, nos atuais tempos, precisa ser dito e visto para crermos nele.
É neste mundo que me movo.
Sou filha de uma época onde as relações fetichistas nos fazem crer que a visibilidade
confere veracidade ao que é dito, sentido, prometido e até sonhado. Nada mais apropriado,
nestes tempos, do que a TV para acalentar o sonho de que ―tudo pode ser diferente‖, mas para
cada um, individualmente (uma diferença vazia e sem sentido, que chega a ser angustiante).
Minha avó, a quem devo o gosto pela leitura e o doce sabor de conhecer o poder da
imaginação, não acreditava em tudo que via e, sabiamente, duvidava do que não estava de
acordo com a simplicidade de sua vida e em conexão com o mundo que guardava em sua
memória, mundo fragmentado pela escravidão, mas reconstruído como resistência pelos
negros através de suas expressões culturais diversas. Ela nunca acreditou que o homem
chegara à lua.
Descendente direta de escravos, minha avó não sabia ler nem escrever, mas guardava
na memória centenas de estórias que ouvia de andarilhos que, no ―ir e vir‖ de suas aventuras,
deixavam como recompensa a quem os recebia um pouco das ―verdades‖ e mentiras do
mundo. Por isso, sua imaginação fazia às vezes do lápis e papel. Nunca descobrira o doce
sabor de imprimi no papel o que proferia, cotidianamente, para o deleite dos seus netos
através de viagens a mundos inexistentes, a seres de todas as sortes e a situações merecedoras
10
de serem ditas e ouvidas. Era uma contadora de estórias e ―guardadora‖ de fragmentos da
memória e imaginação do mundo.
A liberdade de imaginação que experimentou minha avó, seus filhos e netos ao ouvi-la
contar toda sorte de estórias, aventuras e sortilégios, não tem lugar na sociedade atual. Não
que tenhamos perdido a capacidade e a liberdade imaginativas, mas poucos de nós as
conhecemos.
A sociedade contemporânea não moldou somente nossa forma de produzir, de vestir,
de calçar, de falar, mas de pensar, de ver o mundo e de imaginá-lo. Os sonhos da ―geração
imagética‖ são aqueles que cabem na tela da TV e do cinema, no outdoor, no computador ou
podem ser transformados em dados, de qualquer forma.
Como ir além, como usar a capacidade de sonhar, de imaginar além daquilo que foi se
construindo cotidianamente, minuciosamente como barreira, como limite? Que sorte de coisas
nos farão ousar e descobrir que os limites são criados historicamente, através de nossas
relações diversas? Pensar que se as condições materiais e subjetivas não forem propicias à
imagem mercantil‖ como verdade absoluta, ela não se impõe, implica em pensar que a
resposta está para além da própria imagem.
semanas me transportei à Nicarágua de Gioconda Belli (de ―Memórias de amor e
de guerra‖), não conheço a Nicarágua de perto, mas a conheço ―por dentro‖, senti o cheiro
úmido das suas tardes, vislumbrei seus vulcões adormecidos e sua paisagem de fogo e por
vezes me deparei olhando por uma janela qualquer as torrentes de água que lavavam as ruas
de suas cidades e os corpos de seu povo sofrido.
Li Gioconda Belli com a ansiedade de um cavalo selvagem que aprisionado sente a
iminência de sua liberdade e desembesta no mundo sem rédeas, nem paradeiro. Não rédeas
que segurem o pensamento desembestado de um ávido leitor quando adentra as páginas de um
livro que o livre dos dissabores que o acorrentam todos os dias (essa é uma boa expressão do
que de fato se possa chamar de tempo livre). Neruda dizia em um de seus poemas que o sonho
nos permite suportar os dias de trabalho. Mas quando até os sonhos são regidos pelas regras
do trabalho, a saída pode ser catastrófica.
Nos tempos atuais nem o tempo escapa à voracidade do capital, nem o tempo das
coisas, nem o tempo das pessoas, nem o tempo coletivo, nem o tempo individual. Se o próprio
tempo é consumível de forma mercantil o que falar de tantas outras relações e aspectos da
vida que até então ficaram por fora da mercantilização desenfreada da sociedade do capital?
11
Resgatar a liberdade, com o fim da opressão e da exploração, daqueles que a perderam
em nome do ―livre agir, do livre trocar‖, é também resgatar sua capacidade de imaginar e
sonhar, de criar livremente.
Como até mesmo a academia nos impõe limites tão gidos que aprisionam não
nossa capacidade imaginativa, como o ―poder‖ que as palavras têm de dizer de forma bela o
que pode ser dito mecanicamente; escrever uma tese, pra mim, em alguns momentos se tornou
uma luta, uma luta contra o tempo, contra as palavras, contra as formas e normas. Entanto
lutei!
Mas quem sabe minha tese não passe apenas de ―uma rima‖ e não de respostas.
De qualquer forma, o que apresento nesta tese são entendimentos e explicações de
expressões da realidade, explicações que foram construídas ao longo de um processo de
investigação onde procurei ser fiel àquilo que se expressava na realidade.
12
INTRODUÇÃO
O tempo presente, o mundo presente
Porque o tempo é uma invenção da morte:
Não o conhece a vida a verdadeira
Em que basta um momento de poesia
Para nos dar a eternidade inteira.
Mário Quintana
Falar do presente é sempre um desafio, porque de alguma forma é falar de nós
mesmos, direta ou indiretamente. Pelo que somos e pela forma como vemos as coisas, que
também é uma forma de dizer como somos. Falar do presente, do tempo presente é falar das
pequenas coisas e das grandes coisas, dos pequenos e dos grandes acontecimentos. A
dificuldade reside em encontrar a mediação necessária entre estes dois movimentos que estão
um contido no outro e ao mesmo tempo se diferenciam.
Falar do presente é falar do tempo presente e de um determinado lugar, tenhamos ou
não consciência disto.
Entretanto, nem sempre conseguimos ir às profundezas do que falamos, nem sempre
conseguimos dizer do nosso tempo o que se esconde por trás do que conseguimos ver de
imediato.
Os vulcões adormecidos da terra trabalham, silenciosamente, por culos, às vezes
milhares, milhões de anos e, enquanto na superfície reina a calmaria, nas profundezas da terra
a larva se forma e ―o inferno vermelho‖ pode está prestes a explodir e transformar em cinzas
aquilo que parece sólido e indestrutível.
Nos últimos meses veio à tona um movimento ―subterrâneo‖ que estava tempos
dando sinais de sua existência e capacidade destruidora, sinais da agonia do capital, só
perceptíveis àqueles que nas suas análises conseguem ir além do aparencial, descortinando o
fetichismo que predomina nas relações sociais contemporâneas, sejam elas quais forem. As
inúmeras falências de grandes bancos, financeiras e seguradoras no mundo todo (o boom
financeiro), o ―desaparecimento‖ de trilhões de dólares de fundos públicos e a quebra de
grandes empresas da construção civil e da indústria automobilística, dentre outras tantas de
vários outros setores produtivos, abalaram as ―crenças‖ no capital (em especial no fictício),
13
colocaram em xeque o paradigma do livre mercado e evidenciaram uma crise estrutural que
vem sendo gestada (desde meados do século XX) por dentro das contradições do próprio
capitalismo, mas que vinha sendo negada pelos seus apologistas. O vulcão novamente entrou
em erupção! Mas as chamas que agora vêm à tona não se formaram da noite para o dia e
tendem a aumentar e destruir o que há pela frente.
As contradições que vêm se explicitando de forma mais intensa desde o começo deste
século e que explodiram recentemente, são parte da própria dinâmica do capital e tornaram-se
mais agudas com as transformações por que vem passando o capitalismo a partir da década de
1970.
As crises capitalistas e a crise estrutural contemporânea expressam a dinâmica
antagônica do ―desenvolvimento capitalista‖, antagonismo que alcança, segundo Mészáros
(2007: 58) até o ―mais fundo do seu âmago, por conta da subordinação estrutural hierárquica
do trabalho ao capital, que usurpa totalmente e deve sempre usurpar o poder de decisão‖.
Portanto, não podemos entender as expressões contemporâneas das relações sociais se não for
a partir deste antagonismo, uma vez que: ―Esse antagonismo estrutural predomina em todos
os lugares, desde os menores ‗microcosmos‘ constitutivos até o ‗macrocosmo‘ que abarca as
mais abrangentes estruturas e relações produtivas. E, precisamente porque o antagonismo é
estrutural, o sistema do capital é e deve sempre permanecer irreformável e incontrolável‖.
(Idem). Desta forma, o capital, na sua forma contemporânea
1
, o capital globalizante, tem
como características a incontrolabilidade e a destrutibilidade
2
e experimenta uma crise
estrutural e profunda que pela primeira vez na história afeta a totalidade da humanidade.
Enquanto sistema, o capital não é ―uma entidade homogênea‖, comporta uma
―multiplicidade de divisões e contradições‖ e, para Mészáros (2007: 66), ―o ‗capital social
total‘ é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais com todas as suas
contradições‖.
1
száros (2007: 56) destaca que o capital emergiu e triunfou sobre os seus antecessores históricos ―como um
sistema de controle sócio-metabólico pelo abandono de todas as considerações da necessidade humana
vinculada às limitações dos valores de uso não-quantificáveis, sobrepondo-lhes como pré-requisito absoluto
de sua legitimação para se tornarem alvos aceitáveis de produção os imperativos fetichistas do valor de troca
quantificável e sempre expansivo‖.
2
Para o desenvolvimento de nossa tese é fundamental demarcar a incontrolabilidade e destrutibilidade do capital,
em especial no que diz respeito ao tempo e ao espaço, expressos, sobretudo, no que vamos chamar de
imposição do ―tempo do capital‖ como mediador das relações cotidianas e expansão das relações mercantis
para novos espaços apropriados pelo capital como a subjetividade, o corpo, a ―psique‖ e a memória dos
indivíduos sociais contemporâneos.
14
Portanto, ―o sistema do capital‖, por ser estruturado de maneira ―mutuamente
antagônica‖, contraditório na sua dinâmica, apresenta limites históricos estruturais (os limites
absolutos do capital
3
, nos termos de Mészáros). Estes limites que constituem as contradições
insuperáveis do próprio ―sistema do capital‖ podem ser pensados como parte ou centro
destas contradições e não isoladamente. Mészáros (2002: 222/344) apresenta quatro questões
para discutir os limites absolutos do capital, quais sejam: 1- o antagonismo estrutural
inconciliável entre o capital global irrestritamente transnacional em sua tendência objetiva e
os Estados Nacionais. 2 - a eliminação das condições da reprodução sócio-metabólica aqui
se incluem desde a degradação da natureza até a devastação social; posto que, natureza e seres
humanos são considerados apenas fatores de produção pelo capital; 3 - a liberação das
mulheres a questão da igualdade substantiva e; 4 - o desemprego crônico.
Estas limitações absolutas são historicamente intransponíveis dentro da dinâmica do
capital. Assim posto; O sistema do capital se articula numa rede de contradições
4
que se
consegue administrar medianamente, ainda assim durante curto intervalo, mas que não se
consegue superar definitivamente. Na raiz de todas elas encontramos o antagonismo
inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de
subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital, não importando o grau de
elaboração e mistificação das tentativas de camuflá-las‖. (Mészáros, 2007: 87).
A crise estrutural do capital, desta forma, não evidencia estas contradições como as
acirra a tal ponto que insere na agenda histórica, como questão urgente, a ―necessidade de um
controle global viável da produção material e dos intercâmbios culturais da humanidade‖
(Mészáros; 2007: 88).
Entretanto, se por um lado a crise estrutural do capital acirrou a tal ponto suas
contradições inerentes que coloca como pauta a necessidade de superação urgente do ―sistema
do capital‖ sob pena de, não o fazendo, ter como caminho a destruição da própria
humanidade; por outro, nunca o fetiche foi tão presente nas relações sociais diversas e o
discurso de que ―não há alternativas‖ foi tão propalado.
3
Absolutos só para o capital, pois podem ser transpostos com a superação positiva do próprio capital.
4
Mészáros (2007: 87/88) cita alguns das principais contradiçõesm às quais faz referência, a serem enfrentadas.
São elas: produção e controle; produção e consumo; produção e circulação; competição e monopólio;
desenvolvimento e subdesenvolvimento; produção e destruição; produção do tempo livre e sua paralisante
negação; dentre outras.
15
A imposição da dinâmica mercantil e antagônica do capital como reguladora das
relações sociais diversas provocou mudanças substantivas nas ―estruturas‖ cotidianas e, por
outro lado, impactos profundos na organização da classe trabalhadora. Portanto, se é premente
a superação positiva do capitalismo o é a reconquista de tempos e espaços apropriados e
mercantilizados pelo capital (como o tempo ―livre‖, o espaço do corpo, da memória, da
psique, da subjetividade) como pressuposto para a organização e resistência dos
trabalhadores contemporâneos.
O início da crise estrutural na década de 1970, desta forma, consolidou o que se
mostrava como tendência para o desenvolvimento capitalista. Algumas das expressões da
contradição entre a valorização do capital e seus limites estruturais puderam ser observadas
a partir de então como: ―controle de salários, erosão gradual dos sistemas de proteção social,
onda de desemprego, crescimento lento e crises recorrentes nos países da periferia,
deslocalização das empresas, elevação das tensões internacionais e novo militarismo‖, como
destacam Duménil e Lévy (In Chesnais; 2005: 85). Por outro lado, à medida que se
aprofundavam as contradições entre o capital e o trabalho e o comando do processo de
acumulação era assumido pelo capital financeiro, obscurecia-se, como destaca Iamamoto
(2008: 107), ―o seu avesso; o universo do trabalho as classe trabalhadora e suas lutas , que
cria riqueza para outros, experimentando a radicalização dos processos de exploração e
expropriação‖.
Esta fase caracteriza-se, segundo Chesnais (2005; 20), pela predominância de uma
forma específica de valorização de capital, pela via das aplicações financeiras nos mercados
especializados e pela elaboração e execução de políticas de liberalização, de
desregulamentação e de privatização
5
.
Assim, ―A consolidação da mundialização como regime institucional internacional do
capital concentrado conduziu a um novo salto na polarização da riqueza‖ (Idem: 21). Esta
polarização acentua sobremaneira, como ainda nos indica Chesnais, a ―evolução dos sistemas
políticos rumo á dominação das oligarquias obcecadas pelo enriquecimento e voltadas
completamente para a reprodução da sua dominação‖, sendo que, são os ―seus interesses que
5
Nas análises de Chesnais (2005: 44) ―A mundialização financeira foi preparada pelo mercado de eurodólares,
depois pela passagem a um regime de taxas de mbio flexíveis após o colapso do sistema de Bretton Woods.
O mercado de câmbio foi, assim, o primeiro a entrar na mundialização financeira contemporânea. Ele
permanece um dos mercados onde os investidores institucionais continuam a manter parte de seus ativos. Mas
foram as medidas de liberalização e de desregulamentação de 1979-81 que deram nascimento ao sistema de
finanças mundializado tal como o conhecemos. Elas puseram fim ao controle do movimento de capitais com o
estrangeiro (saídas e entradas), abrindo assim os sistemas financeiros nacionais para o exterior‖.
16
ditam as decisões que aceleram a crise ecológica planetária‖ ameaçando sobremaneira de
forma direta a ―reprodução da vida de populações e de camadas sociais mais desprovidas e
vulneráveis‖. (Idem: 21-22).
―O mundo presente‖ expressa, desta forma, uma configuração do capitalismo com
características específicas, onde ―o capital portador de juros está localizado no centro das
relações econômicas e sociais‖ (Chesnais, 2005), tendo-se, portanto, ―o reino do capital
fetiche na plenitude de seu desenvolvimento e alienação‖ (Iamamoto; 2008).
A atual fase do capitalismo, inaugurada na década de 1970, dava sinais explícitos de
perturbação nos primeiros anos da década de 2000, ainda na cada anterior a desigualdade
das taxas de crescimento entre os países evidenciava as tendências ao agravamento destas
―perturbações‖, tanto é que ―na década de 1990, a economia mundial cresceu somente em
dois lugares. Um estava situado no sudeste da Ásia e durou até o começo da crise, em 1997; o
outro, nos Estados Unidos, até a queda da Nasdaq na primavera de 2001‖ (Chesnais, 2005:
58).
Desta forma, como assinala Chesnais (2005: 60) ―a macroeconomia mundial carrega a
marca de contradições e impasses originais, próprios de uma configuração do capitalismo
colocada sob a dominação econômica e social do capital portador de juros‖ e é o acirramento
destas contradições que construiu o terreno para os episódios vividos, em especial, com a
quebradeira de grandes instituições financeiras mundiais que aparece como o boom da crise
atual e que não passa de uma expressão da sua dinâmica contraditória e da crise estrutural que
vivencia o capital.
Duménil e lévy (In Chesnais; 2005: 85) na análise que fazem do neoliberalismo sob
a hegemonia norte-americana, indicam que os primeiros anos da década de 2000 marcavam
uma nova ruptura na macroeconomia mundial não por sinalizarem necessariamente o fim do
neoliberalismo, mas por neles se combinarem um conjunto de elementos ―que sugerem uma
perturbação maior na dinâmica geral da ordem neoliberal‖. Dentre estes elementos os autores
apontam a crise nos Estados Unidos e a crise da Argentina. No primeiro caso, destacam que
―Enquanto muitos haviam saudado, durante o ―longo boomda segunda metade dos anos 90,
a demonstração da eficiência do capitalismo neoliberal, a recessão norte-americana semeou a
dúvida nos espíritos mais convencidos, ainda mais porque veio acompanhada do estouro da
bolha das Bolsas. Quanto à crise argentina os autores pontuam que esta pôs em questão ―os
pretensos benefícios do neoliberalismo e as receitas do Fundo Monetário Internacional
17
(FMI)‖. Donde concluem que mesmo com o restabelecimento da tendência da taxa de lucro a
partir da metade dos anos 80, visto a taxa de acumulação do capital não ter sido restaurada
(efeito da característica neoliberal ―ser um sistema direcionado para a remuneração dos
credores e acionistas‖), o desenrolar da macroeconomia mundial poria cada vez mais o
neoliberalismo em questão. Como, aliás, o fez. A crise atual tem exigido uma redefinição nos
parâmetros de regulação estatal‖ - a intervenção do Estado como forma de assegurar, dentre
outros ganhos do capital, a existência dos ―grandes conglomerados financeiros e
empresariais‖ dos países capitalistas centrais, foi um dos primeiros ―recursos‖ a serem
utilizados, por exemplo, como forma de frear o boom financeiro.
O interessante é que mesmo diante das incontestáveis provas de que esta é uma crise
estrutural, de grande alcance, os apologistas do capital insistem (no discurso) em que a
confiança no mercado é o principal remédio para uma saída promissora da crise. O que
demonstra que mesmo ―nadando‖ na larva quente ainda se vende a idéia de que se pode puxar
pelos próprios cabelos e sair-se ileso das chamas. Assim, ao fracasso do mercado exige-se
uma intervenção estatal para salvar, recuperar e garantir a confiança no próprio mercado. Ao
endividamento das famílias, sugerem-se meios de estimular a demanda através da intervenção
do Estado para criar mais ―endividamentos‖ e assim por diante. Mas como em momentos de
crise as contradições se explicitam de forma contundente e a distância entre a aparência e a
essência é reduzida, os caminhos que vêm pela frente podem significar uma nova
configuração da macroeconomia mundial com repercussões desastrosas.
O ―tempo presente‖ é, desta forma, permeado de incertezas, mas reafirma tendências e
contradições próprias da dinâmica capitalista que confirmam que a saída ao processo
destrutivo do capital só pode ser a partir da negação da própria dinâmica do capital.
18
Justificativas e aproximações ao objeto de estudo
Lutar com palavras é a luta mais vã.
Entanto lutamos mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas
para meu sustento num dia de vida.
Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem
e não há ameaça e nem há sevícia
que as traga de novo ao centro da praça.
(...)
Lutar com palavras parece sem fruto.
Não têm carne e sangue
Entretanto, luto.
Carlos Drummond de Andrade (do poema O Lutador‖)
Que elementos determinam nossas necessidades? Ou quais relações às determinam? E
como? Que mediações estão presentes no atendimento destas necessidades? Como é possível
que parte considerável da população mundial sobreviva sem o mínimo ou o básico
considerado como necessário para a reprodução humana, enquanto uma minoria desfruta de
condições que ultrapassam em grande escala o que é culturalmente indicado, por esta mesma
minoria, como necessário para suas próprias vidas? Por que as necessidades de determinados
bens fazem parte de nosso cotidiano mesmo quando nossa reprodução parece não depender
deles diretamente? E por que nos desfazemos de outros tantos bens quando ainda parecem
atender nossas necessidades?
Estas e outras perguntas permeiam o debate sobre necessidades na contemporaneidade.
Entretanto, nem sempre conseguimos, em nossas análises, superar a superficialidade quando
nos voltamos para tais questões, o que leva à respostas que não ultrapassam a constatação de
―imposição e manipulação‖ de determinadas necessidades sociais. Tais respostas, mesmo que
aparentemente dêem conta do que vivenciamos no atual estágio do capitalismo, não são
suficientes para explicar o processo histórico de constituição do campo de necessidades com o
qual nos deparamos cotidianamente, nem tampouco para decifrar as intricadas relações que
tornam, cada vez mais, o ―supérfluo‖ indispensável - mesmo que simbolicamente. Podem, ao
contrário, dissimular o complexo de mediações que se encontram nas relações sociais que
criam e recriam as necessidades se não ousamos ir além da aparência.
19
Falar em imposição e manipulação de necessidades sociais ou mesmo do uso de
elementos dos desejos e fantasias para a criação de um ―campo‖ específico de necessidades só
tem sentido a partir de sua articulação ao processo de constituição e desenvolvimento do
capitalismo e, de maneira mais específica, do fetichismo da mercadoria. Mediação que se
busca apreender nesta tese.
Em primeiro lugar qualquer pergunta sobre necessidades sociais não deve ser feita do
ponto de vista individual (mesmo que este não deva ser ignorado). Por exemplo, perguntar o
que leva o indivíduo a ter determinadas necessidades, ou a guiar suas ações cotidianas por
necessidades que não serão satisfeitas a partir das possibilidades que dispõe, leva a respostas
que não ultrapassarão o campo do imediato. Perguntar sobre necessidades sociais é perguntar
sobre relações sociais e sobre o complexo de mediações que as permeiam. Em segundo lugar
não pergunta que leve a uma apreensão aproximada da realidade se não se considerar o
caráter histórico das necessidades sociais. Portanto, uma das questões a ser colocada é: que
elementos históricos e sociais convergem na criação de determinadas necessidades sociais
contemporâneas?
É em especial sobre esta última questão que nos debruçaremos em nossa abordagem
sobre necessidades humanas. Ressaltamos que a aproximação de argumentos históricos e
teóricos sobre as necessidades sociais é um caminho para elucidarmos nossa hipótese de
trabalho: de que a criação de um campo de necessidades especiais ligadas ao desejo e a
fantasia
6
é, no atual estágio do capitalismo, um pressuposto para a realização do valor
6
Estamos considerando desejo como sendo diferente de necessidade, enquanto esta, de forma geral, se
estabelece pela relação entre o sujeito e o objeto e tem no uso deste último sua satisfação, o desejo apesar de
ter como referência o ―objeto de desejo‖ (que não se trata de um objeto específico) que pode estar relacionado
(e não ser) a algo ou alguém ou mesmo a uma situação ou um estado, surge no campo da subjetividade e não
da relação direta com o objeto (relação esta que pode inclusive o existir). O desejo, portanto, não tem sua
satisfação no uso do objeto, este tem como característica principal, segundo Freud (In Edler, 2008) jamais ser
completamente satisfeito, estando destinado a incompletude. Segundo Edler (2008: 75) ―Para nomear o desejo,
Freud (1900) escolheu um termo corrente na língua alemã Wunsc -, que pode ser traduzido como voto,
aspiração, e deu a esse termo, pouco a pouco, o estatuto de conceito. Para a psicanálise, o desejo não é apenas
uma palavra ou verbo que traduz o ato de desejar alguma coisa‖. O desejo pode estar, desta forma, tanto no
campo do consciente, do pré-consciente ou do inconsciente. Edler (2008: 79) destaca que ―(...) quando
associamos o desejo ao impulso, à força que move o sujeito, em outras palavras, à ordem pulsional, deixamos
de mencionar seu outro lo, tanto importante quanto o primeiro, que é a ordem da representação, o desejo
busca um nome, um sentido, inscrevendo-se na linguagem. Assim, arriscando uma primeira e necessariamente
incompleta definição de desejo, poderíamos dizer que, ao recorte pulsional que se consegue fazer representar
por meio de uma formação do inconsciente, podemos chamar de desejo. Ao buscar representar-se, o recorte
pulsional se articula à palavra, configurando como um desejo. Essa concepção supõe, como correlatos, pulsão
e desejo, dentro da concepção freudiana mencionada de que ‗sua força impulsora é um desejo a buscar
realização‘ (1900, p. 550)‖. A fantasia, também ligada ao campo psíquico, corresponde segundo Freud (In
Marcuse, 1966, 132) a ―uma atividade mental que retém um elevado grau de liberdade, em relação ao
princípio de liberdade, mesmo na esfera da consciência desenvolvida‖. Assim, nos indica Marcuse (1966,
132/3) ―A fantasia desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais
20
produzido e disseminação da ideologia burguesa e não apenas uma mediação entre produção
e consumo de mercadorias, como se pretende demonstrar na maioria das análises sobre
propaganda, publicidade e mesmo sobre o fetiche da mercadoria
7
.
Reforço, nos meus argumentos, que a recorrência a elementos estéticos e subjetivos
não faz parte apenas de um artifício do capital ou, de modo mais específico, do setor
responsável pela indução à venda, para vender mais ou mesmo para convencer o consumidor
a ser fiel a uma determinada marca, mas que, além disso, ao ser incorporado ao processo de
produção e, antes disso, da construção social da necessidade das mercadorias a serem
produzidas, estes elementos funcionam como fermento ideológico do fetichismo da
mercadoria e da construção da própria individualidade social contemporânea. Se entendermos
a relação produção e consumo como dinâmica (da forma que o demonstrou Marx), a produção
determinando o (e fazendo parte do) consumo e o consumo determinando a (e fazendo parte
da) produção este argumento se mostra mais plausível.
Cabe aclarar que, dentro desta concepção, estes elementos: estéticos e subjetivos, não
constituem um outro campo de ―valores‖ que se sobrepõe ao valor de uso e ao valor de troca
das mercadorias e que no atual estágio do capitalismo se mostrariam, inclusive, mais
importantes que estes dois, mas, ao contrário, e este é um elemento importante, estes
elementos são incorporados aos valores de uso das mercadorias e fundamentais (diríamos
necessários) para a realização do valor de troca das mesmas, ressaltando que o valor de uso é
apenas um veículo de realização do valor para o capital.
Desta forma um redimensionamento nos valores de uso atuais, mas este
redimensionamento é provocado por uma mudança substantiva na estrutura das necessidades
contemporâneas. Se entendermos, como apontamos anteriormente, que estas necessidades
não são determinadas de forma homogênea, nem consensual, mas pela luta de classes,
ancorada na contradição capital/trabalho, o que implica que é a classe dominante que detém o
poder e as possibilidades reais de hegemonia em relação à determinação das necessidades
sociais, fica claro porque, do ponto de vista do ―mercado‖ e até do Estado, é mais viável
profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade,
preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas idéias da memória coletiva e individual, as
imagens tabus da liberdade‖.
7
Ser pressuposto para a realização do valor não implica que este movimento consiga reverter a crise estrutural
do capital, como de fato não o faz, nem mesmo que consiga ampliar extensivamente o consumo a ponto de
encontrar escoamento à superprodução de mercadorias, mas funciona em alguns setores da economia como
―um fôlego‖ diante das crises e consegue manter padrões de consumo consideráveis de alguns setores em
relação à outros.
21
produzir e incentivar a aprodução de carros e celulares e não de comida ou serviços públicos
de qualidade.
Vinha nos intrigando nos últimos anos, devido aos estudos que desenvolvemos sobre o
fetiche da mercadoria, a ampliação e dinâmica do “campo de necessidades sociais ligadas ao
desejo e à fantasia”, bem como, a descartabilidade de algumas mercadorias, mesmo quando
ainda atendiam às necessidades para as quais foram criadas (quando ainda tinham valores de
uso). Este último fenômeno, da obsolescência programada de determinadas mercadorias,
Haug (1997), Harvey (2001) e outros autores, como Mészáros (2002), denominam de
―obsolescência artificial‖. Estes dois fenômenos, intimamente ligados e entendidos a partir
das conexões que estabelecem entre si, foram fundamentais na elaboração de algumas
inquietações que procurei elucidar em minha pesquisa.
O argumento de que uma manipulação cada vez mais intensa das necessidades
sociais no atual estágio do capitalismo não é suficiente para elucidar a questão que nos
colocamos acima. Pensar apenas em manipulação seja através da mídia, das propagandas, da
marca, do marketing, enfim, de uma manipulação ideológica, esconde um elemento
fundamental para se entender o campo das necessidades: que estas, em si, constituem uma
relação social e que são construídas historicamente.
O que defendo é a tese de que a produção social de determinados tipos de
necessidades, em especial as ligadas ao desejo e à fantasia (poderíamos dizer, ligadas a
aspectos da subjetividade
8
) é condição história para a atual realização do valor e, portanto,
8
Mesmo considerando o debate e polêmica que giram em torno do ―conceito‖ de subjetividade no campo
marxista e mesmo, se pensarmos em termos de ―áreas de conhecimento‖, no interior da psicanálise,
utilizaremos uma concepção de subjetividade que não adentra e aprofunda estas questões polêmicas.
Entendemos a subjetividade como capacidades “do sujeito”, ou seja, aquilo que confere ao sujeito sua
qualidade de “sujeito”, que de alguma forma lhe confere ―individualidade‖ (e, portanto, permite a diversidade
humana). No item sobre ―indivíduo social e cotidiano‖, do capítulo 6, ao falarmos da constituição histórica do
ser social, estamos tratando da constituição de subjetividades, posto que a subjetividade para nós, não se
constitui em um ―departamento do sujeito‖ acionado em determinadas situações, ela é constitutiva do sujeito
como um todo (consideramos sujeito e indivíduo social como sinônimo, mesmo sabendo das diferenciações
que alguns autores, em especial da psicanálise, atribuem a estes dois conceitos). Neste sentido, a subjetividade
é entendida, como qualidade do sujeito, é histórica, portanto dinâmica, tem sua dinamicidade ligada ao
―mundo objetivo‖, visto que nossas capacidades diversas só se constituem e manifestam em interação real com
o mundo real. A subjetividade não se trata de uma essência imutável do sujeito, mas como indica Maurício
Martins (2007: 12) ―é enganosa a idéia de uma subjetividade auto-contida, que encontra dentro de si mesma
todo o seu núcleo de exteriorização posterior‖. Por outro lado, ressaltamos o cuidado em não considerar a
subjetividade como sendo determinada mecanicamente pela relação com o ―mundo objetivo‖, por exemplo,
considerar como destaca Martins ―que somos aquilo que compramos‖ ou que as subjetividades de
determinadas épocas históricas são blocos homogêneos. A dinâmica de constituição das subjetividades é
histórica, constitui-se a partir das diversas relações sociais que os sujeitos (individual e coletivamente)
estabelecem durante a sua existência, contendo, desta forma, aspectos universais e particularidades da vivência
(relações pessoais, traumas, etc.) de cada um.
22
de reprodução do próprio capital
9
. Desta forma, este ―tipo‖ de necessidade social não se
encontra no campo da circulação de mercadorias (publicidade, marketing) ou, como é
comum afirmar, da indução ao consumo, mas, fundamentalmente, no campo da produção e da
produção capitalista das próprias necessidades, o que implica dizer que estas são, portanto,
elas mesmas, as necessidades, produzidas como mercadorias. Estas necessidades estão assim,
e este para nós é o elemento mais importante a destacar, também no campo da produção ou
da constituição das subjetividades contemporâneas, da produção e reprodução dos próprios
indivíduos sociais. Entendendo-se que não há produção sem consumo e consumo sem geração
de nova produção, diríamos que a produção de determinadas necessidades implica na sua
realização e sua realização em novas produções, de necessidades e de outras mercadorias.
A partir deste argumento não poderíamos mais pensar que o consumo de determinada
mercadoria e sua descartabilidade programada atenda, simplesmente, a um apelo da mídia, a
uma manipulação do desejo, através da publicidade (por exemplo) para vender mais (ou a
uma questão de consumismo individual), ao contrário, este consumo atende de fato a uma
necessidade, por mais anacrônica
10
que ela pareça, é uma necessidade criada socialmente (a
partir das contradições sociais). O consumo atende e gera (reforça, justifica) a necessidade.
Necessidade esta que expressa a dinâmica própria do capitalismo contemporâneo, dinâmica
fundada na superficialidade das relações sociais, na banalização do humano, na
descartabilidade das mercadorias e das pessoas, na predominância do tempo mínimo: de
produção, de circulação e de consumo de mercadorias. É esta dinâmica, presente no cotidiano
de todo homem contemporâneo, que impulsiona cada vez mais a busca desenfreada pela
eterna juventude, pela anulação da dor e da tristeza, pela corrida contra o tempo, pelo desejo
em ―ser‖ ou parecer o melhor, pela consideração do ―outro‖ como simples objeto e etc.
O que é fundamental neste argumento, para que ele não se torne indiferente a qualquer
possibilidade de saída é considerar a contradição fundamental da sociedade capitalista, que é a
contradição capital trabalho. Em outros termos, considerar que a criação deste ―campo de
necessidades‖ ao qual nos referimos é atravessada pela luta de classes, assim como o é o
atendimento destas mesmas necessidades. Este elemento nos permite apreender esta questão a
9
Quando falamos em realização do valor nos referimos ao ciclo descrito por Marx de produção, circulação, troca
e consumo, como dialeticamente interligados. Desta forma, o valor é realizado não com a venda, mas com o
consumo, gerando assim nova produção.
10
Pensar algumas necessidades como anacrônicas implica uma posição de classe. Observe que, enquanto estas
necessidades tendem a se universalizarem a satisfação destas jamais será universal (depende do lugar que se
ocupa na produção de mercadorias, das relações de classe), posto que a universalização da realização destas
necessidades implicaria na impossibilidade de reprodução não só do capitalismo, mas da própria vida na terra.
23
partir de suas contradições reais evitando ficar no campo da aparência o que nos levaria a
considerar apenas aspectos de manipulação.
A criação histórica de necessidades sociais é assim atravessada pelas contradições
sociais e implica, atualmente, na eliminação de valores e referências que poderiam indicar
para a construção do indivíduo social pleno‖. Como nos indica Mészaros (2007: 89) ―na
situação de hoje, o capital não tem mais condições de se preocupar com o ‗aumento do círculo
de consumo‘, para benefício do ‗indivíduo social pleno‘ de quem falava Marx, mas apenas
com sua reprodução ampliada a qualquer custo, que pode ser assegurada, pelo menos por
algum tempo, por várias modalidades de destruição. Pois, do perverso ponto de vista do
‗processo de realização‘ do capital, consumo e destruição são equivalentes funcionais‖.
O capitalismo precisa, assim, cada vez mais, criar necessidades que garantam a
reprodução do valor produzido, mesmo que isto implique em destruição da ―natureza‖ e,
fundamentalmente, do próprio homem. Nestes termos, não a produção é destrutiva, no
atual estágio do capitalismo, mas o prórpio consumo torna-se cada vez mais destrutivo, não só
pelo uso em si de determinadas mercadorias comprovadamente nocivas à saúde, pela
produção de lixo, descartáveis em excesso; mas também por ser destrutivo de aspectos da
própria subjetividade humana, pela recorrência a elementos degradantes da condição
humana como constututivos das estratégias de incentivo ao consumo
11
.
Desta forma, o ponto central quando falamos de sociedade do descartável, de
obsolescência artificial, de consumismo, de fetiche e estetização da mercadoria, está em
entender não simplesmente o apelo que o mercado faz ao consumo, a ―manipulação de
elementos do desejo e da fantasia‖, mas, como assinalei: a constituição de relações sociais
e históricas que configuram um “campo de necessidades especiais” criadas a partir do
desejo, da fantasia, da mercantilização dos homens, da estetização da mercadoria e de outros
elementos. Em outros termos, entender: que relações foram criadas para possibilitar que os
“apelos das mercadorias”, adentrem a vida de consumidores e não consumidores e influencie
suas decisões cotidianas, inclusive as que estão para além do consumo.
11
Esclarecemos de início, para evitarmos mal entendidos que não estamos atribuindo aqui uma conotação
moralista ao consumo, como também não o faz Mészáros. Entendemos que o acesso à bens de consumo para a
classe trabalhadora, em especial para aqueles que se encontram desprovidos de qualquer condições mínimas de
sobrevivência, é uma forma de garantir melhorias (mesmo que limitadas) em sua reprodução social. O
consumo destrutivo é entendido como um processo histórico de desenvolvimento do próprio capitalismo na
atual fase do capitalismo não se produzem cada vez mais mercadorias com uma real capacidade destrutiva
(ao serem consumidas): como agrotóxicos, alguns alimentos comprovadamente danosos à saúde e etc, são
amplos os exemplos divulgados constantemente por pesquisas; como a produção das necessidades relativas a
estas mercadorias é ao mesmo tempo ―destruição‖ de aspectos subjetivos dos sujeitos sociais contemporâneos,
como veremos no decorrer desta tese.
24
Que necessidades sociais foram criadas para que nossos desejos, fantasias, nossas
relações cotidianas fossem tão facilmente utilizadas e re-significadas para o atendimento dos
apelos capitalistas? Por que ouvimos os ―apelos das mercadorias‖? Poderíamos dizer que
ouvimos o ―chamado do mercado‖ porque falamos sua língua, melhor, porque ele fala a nossa
língua, mas para que falemos a mesma linguagem (para que tenhamos os mesmos símbolos),
foi necessário que nossa fala fosse modificada, que nossas necessidades fossem recriadas a
partir de mediações que, em alguns casos, subverteram culturas inteiras.
Assim, quando uma mercadoria chega ao mercado é porque a necessidade dessa
mercadoria já foi anteriormente criada, e criada a partir de determinadas relações sociais ou da
deterioração destas. Importa aclarar que ao falarmos de relações sociais não eliminamos nem
os elementos de manipulação, de hegemonia ou de violência que podem ser (e em muitos
casos são) constitutivos destas relações. A criação destas necessidades envolve elementos
ideológicos que têm atualmente na imagem seu principal meio
12
.
Heller (1998b: 57/8. Tradução nossa
13
) chama a atenção de que na análise do
significado atribuído por Marx às necessidades ―refinadas‖ ou ―induzidas‖ é possível afirmar
que Marx tenha descoberto o ―problema‖ das necessidades manipuladas ou da ―manipulação
das necessidades‖. Esta interessante contribuição de Heller para o debate sobre necessidades a
partir de Marx, onde aponta a ―descoberta‖ que este faz das ―necessidades manipuladas‖
funcionou como um ponto de referência para alguns argumentos que desenvolvemos nesta
tese. Desta forma, afirma Heller a partir dos aportes de Marx, que uma determinada
necessidade não se converte em ―manipulada‖ por suas qualidades concretas, mas através dos
seguintes fatores:
a) novos objetos de necessidades e, por conseguinte, necessidades novas cada vez,
aparecem ali onde a produção de determinadas mercadorias (e das necessidades
correspondentes) é mais rentável do ponto de vista da valorização do capital; b) a
verdadeira meta consiste, efetivamente, na satisfação das necessidades de uma ―força
essencial estranha‖; a criação e a satisfação de necessidades individuais, mesmo que
se apresente ao indivíduo como fim, somente constitui na realidade um meio nas mãos
dessa ―força essencial‖; c) o aumento das necessidades pertencentes a um conjunto
bem determinado e a orientação do particular em satisfazê-las, em detrimento do
12
Um destes elementos ideológicos está na desconstrução da memória. No Brasil isto é feito tanto pela história
oficial (através da educação formal) quanto pela mídia, em especial, pelas telenovelas, minisséries, programas
de auditório e outros do gênero. A desconstrução da memória coletiva e mesmo da memória pessoal é um
elemento ideológico fortíssimo de massificação da subjetividade e da criação de necessidades que vão de
encontro a estruturas culturais já consolidadas ou que, mesmo não sendo, sobrevivem como resistências.
Abordaremos este argumento em nossas considerações finais, onde observaremos que, a reconstrução da
memória coletiva e pessoal é uma das formas de resistência atual ao processo de mercantilização da
subjetividade e da própria vida.
13
Todas as citações referentes à Heller (1998b), em português, são traduções nossa.
25
desenvolvimento de necessidades que, ainda que não sirvam para a valorização do
capital ou inclusive a obstacularizam, são determinantes para a personalidade humana,
tem lugar de acordo com o mecanismo da produção capitalista (assim a expansão dos
bens de consumo individuais provoca a contínua introdução de novos produtos e
desenvolve as necessidades correspondentes de tal modo que se converte em um freio
para a necessidade de tempo livre e impede seu desenvolvimento); d) a liberdade
individual é, por conseguinte, aparente: o particular elege os objetos de sua
necessidade e plasma as necessidades individuais de acordo não com sua
personalidade, mas sobretudo com o lugar ocupado por ele na divisão do trabalho; e)
em determinado aspecto, o indivíduo estará efetivamente mais rico (terá mais
necessidades e objetos de necessidades); mas este enriquecimento é unilateral e não
limitado por outras necessidades. Dado que o fim não é o desenvolvimento múltiplo
do indivíduo, o particular se converte em escravo desse conjunto restrito de
necessidades.
Dos fatores apontados acima, destacamos como fundamental para nossos argumentos,
tanto que as necessidades criadas no capitalismo funcionam como meio de valorização do
capital, quanto que a satisfação destas não conduz ao enriquecimento do indivíduo, ao
contrário, implica em um ciclo que o transforma em “escravo” destas e de novas
necessidades. Ao que acrescenta Heller, que a situação tem mudado desde a época de Marx e
que ―as necessidades manipuladas na atualidade não são somente as peculiares da classe
dominante, mas, ao contrário, as da maioria da população, ao menos nos países capitalistas
desenvolvidos‖ (Ibidem). Interessa-nos, como já indicamos, apreender que elementos são
atualmente constitutivos deste movimento e constituem sua substância.
Que meios são acionados na criação destas necessidades? Que instrumentos
funcionam como impulsionadores da criação deste campo de necessidades? Os argumentos
que desenvolvemos nesta tese indicam que tais necessidades são frutos de relações sociais
diversas que atravessam desde a produção de mercadorias até sua distribuição e consumo.
Assim temos, tanto a obsolescência artificial das mercadorias como um exemplo a ser
considerado, a deterioração de determinados serviços, até a busca por uma experiência
―singular‖ no consumo de determinadas mercadorias como forma de preenchimento de um
vazio subjetivo ou mesmo de tornar visível uma ―imagem‖ que esteja de acordo com o
―tempo presente‖.
Qual o lugar, neste movimento de construção de novas necessidades, da propaganda,
do marketing, do ―apelo ao consumo‖, da mídia? Estes constituem ―os meios e as
mediações
14
que contribuem para realizar a ligação entre o consumo, a circulação, a troca, a
14
Meios e mediações não implicam em simples ―porta-vozes‖, não são puros instrumentos de transmissão de
uma mensagem, mas implicam a constituição de relações específicas de poder e portam um significado que
tem sentido se articulado com as relações de poder que imperam na sociedade de classes. Chauí (2006: 45) ao
26
produção de mercadorias e as necessidades sociais relacionadas a estas mercadorias, ou seja,
são necessários para que o ciclo se complete, são, em outros termos, uma expressão e veículo
do fetiche, mas ao mesmo tempo, como dissemos acima, são meios de assegurar e de garantir
(incentivar e autorizar) ideologicamente a criação de determinadas necessidades
15
. É a partir
desta concepção que os abordaremos neste trabalho.
Assim, estes meios (publicidade, propaganda, mídia de forma geral) funcionam
como um enorme ―espelho‖ onde todos nos miramos e asseguramos que estamos de acordo
com o nosso tempo. Como espelho distorcido, estes meios asseguram que a imagem diga mais
de nós do que nós mesmos somos. Se nos convencemos de que a imagem que temos de nós
mesmos é a que melhor nos apraz, nos deixa ―felizes‖ e, principalmente, pode ser admirada e
invejada pelo ―outro‖ não questionamos o que proporciona essa imagem, não questionamos o
real, mas para nos contentarmos com a imagem é preciso criar a necessidade da imagem como
substituta do real, este também é um dos elementos que nos interessa discutir.
Para Birman (2001) a subjetividade forjada nas últimas décadas no Ocidente, expressa
uma fragmentação, onde o eu se encontra situado em posição privilegiada. Entretanto este eu
não se configura, como nos primórdios da modernidade nas noções de ―interioridade e
reflexão sobre si‖, mas este ―autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor
da exterioridade. Com isso, a subjetividade assume uma configuração decididamente
estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição
estratégia em sua economia psíquica‖ (Id.: 23). O olhar do outro funciona apenas como meio
(como espelho) para reforçar um eu narcísico, é assim que ―Os destinos do desejo assumem,
pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte
intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas. Esse é o trágico
cenário para a implosão e a exploração da violência que marcam a atualidade‖ (Birman, 2001:
24). Este também é um espaço fértil de disseminação da superficialidade e descartabilidade
das relações sociais e predomínio do fetiche da imagem.
No que diz respeito ao ―fetiche da imagem‖ não é que a imagem que observamos neste
imenso espelho, esta espetacularização da sociedade conforme Debord (1997) diga de nós o
falar do ―lugar‖ dos meios digitais na contemporaneidade diz que estes ―potencializam de maneira nunca antes
vista o poder do capital sobre o espaço, o tempo, o corpo, a psique humanos‖.
15
Maria Rita Kehl (2004), fala do poder que a publicidade tem hoje como veículo do ―imperativo do gozo‖, do
qual os adolescentes são, segundo ela, as maiores vítimas. Kehl reforça o argumento de que a
contemporaneidade capitalista produz um tipo de sujeito que tem o ―gozo eterno‖ como um elemento central
da subjetividade e, como já dissemos, a publicidade é o porta-voz deste estilo desenfreado de vida, do no
limites‖. Retornaremos este debate na terceira parte da tese.
27
que somos, mas a questão é que criamos a necessidade de não nos vermos como somos, mas
de nos contentarmos com o desejo de sermos, a distorção do que somos basta para sentirmos
que já mudamos em alguma coisa, mesmo que seja no reflexo.
Para Birman (2001: 168) ―Na cultura do espetáculo, o que se destaca para o indivíduo
é a exigência infinita da performance, que submete todas as ações daquele. De novo aqui se
confunde o ser com o parecer, de maneira que o aparecimento ruidoso do indivíduo faz
acreditar no seu poder e fascínio‖. Não se trata aqui, entretanto, de qualquer performance,
mas esta é marcada pelo ―narcisismo funesto em seus menores detalhes, o que importa é que o
eu seja glorificado, em extensão e em intenção. Com isso, o eu se transforma numa majestade
permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da cena social‖ (Idem).
Mas esta ―aparência‖ traz consigo, conforme nos indica Birman (2001): o mal-estar
ou, conforme Kehl (2004): o vazio. Com estes, o ―mal-estar‖ e o vazio, a necessidade de fuga,
que se realiza atualmente, não só, mas em especial, no consumo de drogas, na violência
presente nos grandes centros urbanos e inclusive na sua banalização e espetacularização, no
uso desenfreado de medicamentos que anulem qualquer ―sensação desagradável‖, da dor à
tristeza, da solidão à desesperança, dentre outros ―sintomas‖.
É neste complexo de questões que desenvolvo argumentos que confirmem minha
hipótese de trabalho e traga elementos para o debate sobre a criação de um “campo especial
de necessidades mercantis na contemporaneidade a partir do fetiche da mercadoria.
28
Percurso investigativo e dinâmica da exposição
A pesquisa que desenvolvi no doutorado continuou um percurso teórico que iniciei
com minha dissertação de mestrado, intitulada: “O potencial teórico-crítico da categoria
fetichismo no mundo contemporâneo”. Na ocasião preocupava-me entender não a
validade teórico-crítica da categoria
16
fetichismo diante das atuais transformações do mundo
contemporâneo, como também apontar elementos que me direcionassem a um futuro estudo
sobre as especificidades das expressões fenomênicas do fetiche nesta fase do capitalismo.
Nesta busca, além de traçar um rápido percurso pelo debate que se gesta em torno da teoria da
alienação, aproximei-me de aportes que me permitissem identificar formas de expressão do
fetiche na contemporaneidade.
No debate sobre a alienação, apropriei-me da concepção que a entende como um
fenômeno que transcende os próprios limites do capitalismo, posto que é anterior a este e
inclusive permaneceu em sociedades que implantaram uma outra forma de produção (como as
do socialismo real). Alienação que conota, como ressalta resumidamente Netto (1981: 69) ―...
exatamente esta fratura, este estranhamento, esta despossessão individual das forças sociais
que são atribuídas a objetos exteriores nos quais o sujeito não se reconhece‖. Alienação que é
realizada na sociedade burguesa através de uma forma peculiar: o fetichismo. Assim ―O
fetichismo implica uma alienação, realiza uma alienação determinada e não opera
compulsoriamente a evicção das formas alienadas mais arcaicas‖ (Netto; 1981: 75).
Foi no estudo do fetichismo, mais especificamente de algumas formas de expressão do
fetiche na contemporaneidade (as formas mercadoria e dinheiro) que encontrei o elo para dar
continuidade no doutorado às investigações que desenvolvi no mestrado. O enveredar teórico
que realizei pela categoria ―fetiche da mercadoria‖ através da elucidação de elementos
16
Enquanto categoria crítico-analítica, o fetichismo se apresenta como mediação para se apreender o real e isto
se quando se abandona a ―falsa posição do pensamento burguês para com os objetos‖ (cf. Lukács) e,
nestes termos, reiteramos que, a um pensamento que tenda a adotar a aparência como essência o cabe tal
mediação. Ao pensamento que se propõe a ir à raiz dos problemas, que tem, como nos diz Lukács, como
―finalidade prática apreender a inversão fundamental do conjunto da sociedade‖ esta mediação é possível.
Entretanto: ―(...) a mediação seria impossível se a existência empírica dos próprios objetos não fosse uma
existência mediatizada que assume a aparência de imediatidade apenas porque, e na medida em que, por um
lado, falta a consciência de mediação, e, por outro lado, porque os objectos (justamente por isso) foram
arrancados ao complexo das suas determinações reais e colocados num isolamento artificial‖ (Lukács; 1974:
182). Discutir o potencial crítico-analítico da categoria fetichismo na atualidade é acima de tudo, identificar
elementos na realidade que nos permitam uma apreensão a partir desta categoria. Implica em que ela expresse
em termos reflexivos processos contemporâneos constitutivos da realidade. Processos, importante que se diga,
que são moventes e movidos (dinâmicos).
29
constitutivos desta na atualidade, como: a criação de novas necessidades sociais “o mundo
do descartável”; o poder da marca “o consumismo fiel”; o “roubo do tempo e a
apropriação do espaço” e “a luta do capital pela apropriação da consciência dos
homens”; bem como pelo fetiche do dinheiro, não como fenômenos separados, mas
intrinsecamente relacionados, trouxeram-me as inquietações que investiguei e aqui exponho.
Nossa investigação, desta forma, teve como ponto de partida o estudo do fetichismo,
para daí chegarmos às formas atuais de sua expressão e mais especificamente a criação do que
chamamos de um ―campo de necessidades especiais‖ ligadas diretamente a estas formas. Na
investigação recorremos à literatura que trata das questões apontadas e a outras fontes como
revistas, artigos, matérias e resultados de pesquisas disponíveis na internet, bem como, a
alguns filmes e documentários.
Devido à complexidade da temática e a sua interlocução com a filosofia e a psicanálise
tivemos, em alguns momentos, dificuldades teóricas em ―lidar‖ com categorias que são
comumente utilizadas nas ciências sociais, mas que expressam fenômenos que são
estudados (dentro da ―divisão científica do saber‖) em outros campos. As dificuldades
residiram, em especial, com as categorias que se situam no campo da psicanálise. Nestes
casos, recorremos à literatura destes outros ―ramos do saber, mas com as limitações
esperadas quando não nos encontramos inseridos diretamente no debate. Entretanto,
utilizamos as categorias quando, mesmo sem o aprofundamento específico do debate, a sua
utilização não trazia prejuízos à compreensão dos argumentos aqui apresentados, como no
caso das concepções de ―desejo‖ e ―fantasia‖.
Em nossa exposição partimos de alguns aportes teóricos para o entendimento das
necessidades humanas como históricas e socialmente constituídas para, a partir daí e da
mediação com a discussão sobre o fetichismo da mercadoria e do dinheiro e sobre o cotidiano,
elucidar elementos do que chamamos ―campo especial de necessidades‖ e configurá-lo.
Apresentamos a tese em três partes (cada uma com um ou mais capítulos), que
consideramos constituírem um complexo de questões articuladas entre si, além da introdução
e conclusão. A ordem de apresentação destas três partes seguiu o entendimento de que o
debate apresentado na primeira era pressuposto para os argumentos da segunda e assim por
diante.
Desta forma, na primeira parte da exposição Das necessidades humanas
apresentamos o debate sobre as necessidades humanas como social e historicamente
30
construídas. Traçamos também algumas considerações sobre a relação entre necessidades e
capitalismo ou de como as necessidades sociais criadas no capitalismo são atravessadas pela
(e decorrentes da) relação capital-trabalho, portanto, expressam na sua constituição e
atendimento as contradições presentes nesta relação. Destacamos ainda alguns elementos
sobre a produção de necessidades radicais como própria da contradição capital-trabalho e
expressão de sua dialética. Esta primeira parte da tese nos deu elementos para argumentar que
o que estamos chamando de ―campo subjetivo‖ de necessidades especiais não se constitui em
artifícios superficiais de indução ao consumo, mas expressam e reforçam mudanças nas
relações sociais contemporâneas.
A partir daí, discutimos em uma segunda parte, intitulada Das mercadorias, do tempo
e das imagens”, a produção de mercadorias, bem como sua estetização e desenvolvimento na
sociedade capitalista. Aqui traçamos considerações sobre o fetiche da mercadoria e do
dinheiro, buscamos suas expressões contemporâneas bem como sua relação com a estetização
das mercadorias e a produção de ―novas necessidades‖. Apresentamos ainda o debate sobre os
impactos da obsolescência artificial na vida dos homens contemporâneos, a discussão sobre
―tempo do capital, tempo da vida‖ e, por fim, o debate sobre a imagem como expressão
privilegiada do fetiche na sociedade contemporânea. O debate apresentado aqui visa
evidenciar que a dinâmica que atravessa a produção de mercadorias também atravessa, e cada
vez mais, a produção e reprodução dos indivíduos contemporâneos. Assim, o objetivo central
nesta segunda parte da tese é investigar tanto a estetização da mercadoria, como um dos
recursos do capital para garantir a realização do valor, quanto os rebatimentos desta dinâmica
na constituição de necessidades especificamente capitalistas e sua interferência na
organização e significação da vida dos indivíduos burgueses contemporâneos.
Na Parte III: “Dos desejos e fantasias do sujeito” apresentamos argumentos que
fundamentam a constituição de um campo especial‖ de necessidades sociais a partir de
elementos dos desejos e fantasias na contemporaneidade. Nesta parte discutimos a relação do
cotidiano com a estetização das mercadorias e em especial, o que estamos chamando de
―mercantilização da vida‖ e ―massificação de subjetividades‖. Apresentamos alguns exemplos
a partir do debate sobre ―propagandas‖ e ―programas de TV‖ para se pensar a constituição
tanto do ―campo especial de necessidades‖ quanto seus rebatimentos na subjetividade dos
homens contemporâneos.
E, por fim, em nossas conclusões apontamos alguns elementos que nos permitem
identificar fissuras e possíveis saídas, destacando que o interesse em estudar a constituição de
31
um campo de necessidades especiais confirma-se por entendermos que a criação deste
evidencia elementos importantes da produção e reprodução dos homens contemporâneos.
Portanto, mais que estimular o consumo (ou além de) este movimento reafirma e visa manter
mudanças culturais que têm influências marcantes nas formas de organização social e de
resistência ao imperativo do capital. Desta forma, entendê-lo é também lançar luz sobre uma
das formas de controle do capital, controle exercido através da ―apropriação das consciências‖
dos homens contemporâneos.
32
PARTE I
DAS NECESSIDADES HUMANAS
CAPÍTILO 1 - NECESSIDADES HUMANAS: social e historicamente produzidas
Pássaros proibidos
Nos tempos da ditadura militar, os presos políticos uruguaios não podem falar
sem licença, assoviar, sorrir, cantar, caminhar rápido nem cumprimentar outro
preso.
Tampouco podem desenhar nem receber desenhos de mulheres grávidas,
casais, borboletas, estrelas ou pássaros.
Didaskó Pérez, professor, torturado e preso por ter idéias ideológicas,
recebe num domingo a visita de sua filha Milay, de cinco anos.
A filha traz para ele um desenho de pássaros.
Os censores o rasgam na entrada da cadeia.
No domingo seguinte, Milay traz para o pai um desenho de árvores.
As árvores não estão proibidas, e o desenho passa.
Didaskó elogia a obra e pergunta à filha o que são os pequenos círculos
coloridos que aparecem nas copas das árvores,
muito pequenos círculos entre a ramagem:
- São laranjas? Que frutas são?
A menina o faz calar:
- Shhhh.
E em tom de segredo explica:
- Bobo. Não está vendo que são olhos?
Os olhos dos pássaros que eu trouxe escondidos para você.
GALEANO, Eduardo. In: Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2006.
1.1 Contribuições teóricas para se pensar as necessidades sociais a partir de sua
historicidade
Interessa-nos aqui trazer elementos que nos permitam uma apropriação do significado
histórico das necessidades sociais no capitalismo, para apresentarmos argumentos sobre a
construção mercantil de determinadas necessidades sociais contemporâneas, as ligadas aos
desejos e as fantasias. Partimos de pressupostos teóricos, apontados por Marx nos
Manuscritos Econômicos e filosóficos, nos Grundrisse e em O Capital, retomados por Heller
(1998b) em Teoría de las necesidades en Marx e por Mészáros (2002) em Para além do
Capital. Além disso, utilizaremos algumas contribuições de Pereira (2006) no que tange ao
debate sobre necessidades sociais básicas.
A que nos referimos quando falamos de necessidades? Que elementos nos permitem
considerar as necessidades humanas como histórica e socialmente produzidas? É possível se
33
falar em necessidades naturais, como aquelas que garantem a reprodução biológica dos
homens? E, por fim, pode-se pensar em um conjunto de necessidades básicas que sejam
objetivas e universais? Estas questões, em especial, orientarão o debate apresentado neste
item.
Quando pensamos em necessidades geralmente o fazemos a partir do seu oposto, ou
seja, da sua satisfação, portanto, temos como referência um conjunto de bens que garantam a
produção e a reprodução dos indivíduos (determinados indivíduos de determinadas
sociedades). Neste caso, pensamos as necessidades como algo dado, como se desde sempre
existissem e o debate recai sobre a forma de melhor atendê-las individual ou coletivamente.
As necessidades humanas surgem quando o homem passa a produzir e da forma como
ele produz os bens necessários a sua reprodução, e neste movimento, produz a sua própria
existência. É a produção de sua existência que produz e reproduz as necessidades e, por outro
lado, são as necessidades engendradas em um longo processo de transformação do homem em
ser social e daí por diante, que impulsionam a produção de sua própria existência. Desta
forma, as necessidades também são frutos de determinadas relações sociais e culturais e,
portanto, são históricas.
Daí cada sociedade tem seu ―sistema de necessidades‖ constituído historicamente e,
dentro deste ―sistema‖ impera uma dinâmica muito particular constituída pelas relações
sociais e movimentos próprios desta sociedade. Desta forma, mesmo quando falamos de
―sistema de necessidades‖ (para Heller, estrutura de necessidades), não estamos com isso
dizendo que um bloco homogêneo de necessidades identificado em cada organização
social. No capitalismo, este sistema é mediado, dentre outros elementos, fundamentalmente
pela relação entre o capital e o trabalho, portanto, pela luta de classes, o que dissolve qualquer
possível homogeneidade, tanto na formulação quanto no atendimento das necessidades.
Ainda dentro das sociedades capitalistas há que se considerar os elementos culturais na
constituição destas necessidades. Se há, como veremos mais adiante, uma tendência à
uniformização e padronização destes elementos, esta é fruto da dinâmica global de
desenvolvimento do próprio capitalismo.
Há, por outro lado, mediado pelas relações sociais, um limite inferior de provimento
de bens necessários à subsistência dos indivíduos, limite este que lhe garante a própria vida,
em condições humanas. Ou seja, em todas as sociedades, um limite inferior onde os
homens podem chegar, em termos de provimento de suas necessidades, para que se
34
reproduzam socialmente como homens. Este limite não é natural, mesmo que se iguale a pura
reprodução biológica dos indivíduos.
A questão que surge quando falamos em limite inferior de necessidades sociais é
quanto à qualificação destas. Como identificá-las? E, por outro lado, é possível considerar
estas necessidades como objetivas e universais?
Segundo Pereira (2006) um conjunto de necessidades que podem ser consideradas
objetivas e universais e, portanto, atravessariam as diversas organizações sociais, este
conjunto de necessidades representaria um limite a ser seguido e não deveriam ser igualados
ao limite natural, de pura reprodução biológica. No argumento de Pereira esta consideração
(da existência de necessidades objetivas e universais) evitaria relativismos e possibilitaria um
tratamento diferenciado à proteção social. Voltaremos mais adiante a este debate.
Ao resgatar o debate sobre as necessidades sociais em Marx‖, Heller (1998b; 80/84)
identifica que Marx emprega o conceito de necessidades sociais em vários sentidos, que são
segundo a autora: - como ―necessidades socialmente produzidas‖ as necessidades de
homens particulares, necessidades ―humanas‖, diferentes das necessidades consideradas por
ele como ―naturais‖; 2º - como uma categoria de valor positivo, a necessidade do comunismo,
do ―homem socializado‖; - como média das necessidades dirigidas a bens materiais em
uma sociedade ou classe e indicam uma demanda efetiva
17
; e 4º- como satisfação social - ou
às vezes comunitária das necessidades. Segundo Heller, esta última é uma interpretação não
econômica que serve para demonstrar que os homens possuem necessidades que, além de
serem produzidas através de relações sociais
18
, são também unicamente suscetíveis de
satisfação mediante a criação de instituições sociais relativas a elas.
No desenvolver do nosso trabalho interessa-nos, em especial, as duas últimas
concepções de necessidades sociais, entendendo-as como socialmente criadas e passíveis de
mediação do mercado e, neste caso, também passíveis de alienação na forma capitalista.
17
Heller (1998b: 82. Tradução nossa) destaca que para Marx ―A ‗necessidade social‘ referida a demanda é,
portanto, mera aparência que não expressa as necessidades sociais ‗reais‘ da classe trabalhadora e, inclusive,
as transfigura em seu contrário‖. É assim que para Marx a satisfação das necessidades sociais através do valor
de troca constitui a forma mais característica do fenômeno da alienação: a quantificação do não quantificável.
Utilizaremos em nossa tese a concepção de ―necessidades alienadas‖ para expressar estas necessidades.
18
Entendemos que estas necessidades as quais Heller se refere, que podem ser caracterizadas desde a criação de
laços sociais, solidários até mesmo o direito ao cuidado (no caso de crianças e idosos), à educação, à saúde e
etc., são cada vez mais mercantilizadas e cada vez menos atendidas via instituições sociais de caráter não-
mercantil.
35
Consideramos, desta forma, a existência de um sistema de necessidades
correspondente a determinadas organizações sociais e atravessado pelas contradições da
sociedade que o constitui. Este sistema possui níveis diferenciados de produção e atendimento
das necessidades. Os diversos elementos que passaremos a abordar a partir de agora têm como
referência esta concepção.
1.2 “Você tem sede de quê?/você tem fome de quê?” - necessidades básicas:
universais ou particulares de determinadas sociedades?
Do que necessitamos para viver dignamente como pessoas com capacidades de criar,
pensar e sonhar? De bebida e comida? De ―pão‖ e arte? Do que precisamos no tempo
presente?
Como apontamos no início deste capítulo, o debate sobre necessidades sociais envolve
uma questão que diz respeito ao que Marx chamou, inicialmente, de ―necessidades naturais‖.
Iniciaremos este item discutindo sobre o conjunto de necessidades voltadas para a
garantia da reprodução básica ou elementar dos indivíduos de determinada sociedade,
interessa-nos aqui, a sociedade capitalista, de forma mais específica o que Pereira (2006)
chama de necessidades básicas.
Iniciemos com Marx. Para entendermos qual o significado deste tipo de necessidade
dentro do pensamento de Marx e, portanto, que aportes poderíamos tirar dpara discutirmos
a contemporaneidade, cabe ressaltar o caráter histórico e social da constituição das
necessidades.
Dizer que as necessidades humanas são histórico-sociais implica em negá-las como
naturais. Entretanto, o próprio Marx em uma classificação ―histórico-filosófico-
antropológica‖ (Heller, 1998b: 28) considera as necessidades como sendo de dois tipos, as
necessidades naturais e as socialmente determinadas. As primeiras corresponderiam, dentro
desta classificação às necessidades físicas ou necessidades necessárias (veremos que o próprio
Marx qualifica esta última distanciando-a da mera reprodução física), e as segundas
corresponderiam às necessidades sociais (em sentido amplo, como destaca Heller).
Heller (1998b: 27) deixa claro que Marx não supera por completo um conceito
naturalista de necessidades apesar de tentá-lo e ensaiá-lo com freqüência (em alguns casos,
apesar do uso do termo necessidades naturais, o significado se distancia da concepção
36
naturalista). No entanto, dentro deste limite um avanço significativo quando se observa o
tratamento dado às necessidades nos Grundrisse e no Capital, ao que observamos que quando
Marx trata de desenvolvimento das ―plenas capacidades dos homens‖, não o entende como
uma necessidade natural, mas como uma construção social e histórica, possível com a
superação positiva da alienação capitalista.
As necessidades sociais devem ser entendidas, desta forma, como portadoras de
especificidades históricas, ou seja, estas são dinâmicas e se constituem e reconstituem com o
movimento histórico das sociedades e internamente a estas. Assim, mesmo as necessidades
mais elementares que Marx, em algumas passagens, denomina de ―naturais‖ têm uma
dimensão histórica e social.
O que Marx denomina nos Grundrisse de necessidades naturais consiste na
manutenção da vida humana, na reprodução biológica do indivíduo. O termo ―necessidades
naturais‖ não é apropriado para expressar estas necessidades, como inclusive aponta Heller.
Não é a necessidade em si que a caracteriza como social, mas a forma histórica de cria-la e
atendê-la. Em outros termos, as necessidades que expressam a reprodução biológica do
indivíduo são sociais porque o modo de constituição e satisfação destas atribui-lhes um
caráter social e lhes recriam como social. Assim, as necessidades que os homens têm nas
diferentes sociedades: de comer, vestir, abrigarem-se e etc., são respondidas historicamente e
recriadas historicamente de diferentes formas, mesmo que biologicamente a reprodução destes
homens seja inviável se não as atende.
A própria Heller (1998b: 31) chama a atenção para a incoerência em considerar as
necessidades que atendem a reprodução biológica do indivíduo como um conjunto de
necessidades independentes em contraposição às sociais, estas últimas como socialmente
determinadas. Desta forma, no entender de Heller (1998b: 32), deve-se considerar as
necessidades como estrutura das necessidades e não como necessidades naturais e
necessidades sociais. E esta estrutura constitui relações sociais, o que indica que existem
necessidades socialmente produzidas. Utilizaremos, como já indicamos anteriormente, no
lugar de estrutura das necessidades, o termo ―sistema de necessidades‖.
Assim, para a autora em questão ―necessidades naturais‖, nos termos de Marx, não
constituem um conjunto de necessidades, mas um conceito limite. Portanto;
As ―necessidades naturais‖ se referem à mera manutenção da vida humana
(autoconservação) e são ―naturalmente necessárias‖ simplesmente porque sem sua
satisfação o homem não pode conservar-se como ser natural. Estas necessidades não
37
são idênticas as dos animais, posto que o homem para sua autoconservação necessita
também de certas condições (calefação, vestimentas) que para o animal não
representam uma ―necessidade‖. Portanto, as necessidades necessárias para a
manutenção do homem como ser natural são também sociais (é conhecida a afirmação
dos Grundrisse que diz que a fome que se satisfaz com gafo e faca é distinta da
satisfeita com carne crua): os dois modos de satisfação fazem social a necessidade
mesma. (Heller, 1998b: 31).
Heller trabalha aqui com a concepção de que o que atribui caráter social às
necessidades é a forma histórica de sua satisfação e não as necessidades mesmas. Quando nos
referimos às necessidades elementares ou básicas dos homens, isto pode ser verdadeiro,
entretanto, quando pensamos, como a própria Heller sugere, não nas necessidades de forma
fragmentada, mas em uma ―estrutura de necessidades‖ (ou sistema de necessidades)
observamos que não somente a forma de satisfação é histórica e produzida socialmente, mas a
constituição das próprias necessidades, a necessidade em si.
Consideramos ainda que Heller, apesar da interessante crítica que faz a Marx quanto
ao uso do termo ―necessidades naturais‖ como aquelas necessidades que atenderiam a
manutenção natural do homem, acaba ela mesma, reproduzindo um equívoco que, no nosso
entendimento, consiste em ainda ter como referência para se contrapor à existência de
―necessidades naturais‖ a existência de um ―ser natural‖. Heller nega, desta forma, a
concepção de ―necessidades naturais‖, mas acaba afirmando a existência de um ―ser natural
que teria suas necessidades de reprodução satisfeitas socialmente. Este elemento traz alguns
prejuízos a sua concepção.
A reprodução biológica do homem não pode servir de parâmetro para que este seja
considerado como ―ser natural‖, não há, mesmo se pensando no limite, um ser natural, o
homem é um ser social e mesmo a sua reprodução biológica é social. Mesmo como limite de
existência não é possível se pensar, quanto mais na contemporaneidade, em natureza no
sentido puro, nem em ser natural, ainda que no sentido proposto por Heller. Se pensarmos nos
limites impostos atualmente como reprodução biológica aos homens constatamos que, em
alguns casos, populações inteiras são lançadas ao nível da reprodução que pode ser
considerado, dentro dos próprios limites culturais da sociedade capitalista, como desumano,
mas que é fruto das contradições sociais. Um outro elemento que se acrescenta no
capitalismo, elemento que abordaremos mais adiante, é que mesmo em se tratando de
reprodução biológica, qualquer mediação, por mais elementar que seja, passa,
necessariamente, pelo mercado (direta ou indiretamente).
38
Entretanto, ao se referir ao ―conceito limite‖, Heller chama atenção para a
necessidade, inclusive política, de que este não seja negligenciado, afim de não cairmos num
relativismo e de descartarmos reivindicações de garantia de condições humanas de
sobrevivência. Neste sentido, afirma a autora que a instituição de um conjunto separado de
‗necessidades naturais‘, em nossa opinião, não se insere de forma orgânica na teoria filosófica
geral das necessidades de Marx (…)‖. Ao que acrescenta;
A nosso ver as ―necessidades naturais‖ não constituem um conjunto de necessidades,
senão um conceito limite: limite diferenciado segundo as sociedades superando o
qual a vida humana não é reproduzida como tal; em outras palavras, o limite da
simples existência (a morte massiva de fome na Índia ou no Paquistão expressa
precisamente essa superação). Seria puro aristocratismo em nosso mundo ao menos
eliminar esse conceito limite das discussões sobre as necessidades. Por isto não o
chamarei de ―necessidades naturais‖, mas de limite existencial para satisfação das
necessidades. (Heller, 1998b: 33).
Não há, desta forma, como observa Heller, necessidades naturais, propriamente ditas,
mas um limite existencial para a satisfação das necessidades
19
, concepção com a qual
concordamos. É a partir deste elemento que Heller se apropria do avanço que o próprio Marx
realiza desta concepção em suas obras. Assim as ―necessidades necessárias
20
para a
manutenção do homem como ser natural são também sociais‖ como nos indica a autora.
(Heller, 1998b: 31).
Como qualificaríamos então o que Heller passa a chamar de limite existencial para a
satisfação das necessidades? E como são criadas estas necessidades? Aqui reside a
ambiguidade dos argumentos de Heller. Por considerar que há um ―ser natural‖, a autora em
questão considera que as necessidades atendidas neste limite são postas pela reprodução deste
―ser natural‖, portanto, as necessidades seriam naturais (mesmo Heller, negando esta
categorização de forma bastante incisiva) e sua satisfação seria social. Entretanto,
consideramos que os argumentos da autora, podem ser retomados para o debate em questão,
na medida em que identificamos seus limites e procedemos à crítica a concepção de ―ser
natural‖.
19
Esta discussão, apesar de aparentemente abstrata é fundamental para debatermos como no capital este limite
pode ser reduzido a condições subumanas (por exemplo, pessoas comendo lixo), como resultado de relações
sociais e não de aspectos naturais.
20
As necessidades necessárias ―são aquelas necessidades surgidas historicamente e não dirigidas à mera
sobrevivência, nas quais o elemento cultural, o moral e o costume são decisivos e cuja satisfação é parte
constitutiva da vida normal dos homens pertencentes a uma determinada classe de uma determinada
sociedade‖. O prejuízo a concepção de Heller, como indicamos, é a consideração da existência de um ser
natural. (Heller; 1998b: 33/34).
39
Em se considerando, desta forma, a inexistência de um conjunto de ―necessidades
naturais‖ e, além disso, a inexistência de um ―ser natural‖ poderíamos pensar em um conceito
universal e objetivo de necessidades sociais básicas, ou seja, de necessidades que garantam a
manutenção do homem como ser social?
Em relação à configuração social das necessidades básicas, necessidades que
garantiriam a reprodução do indivíduo, recorreremos a Pereira (2006) para trazermos mais
elementos para o debate. A autora, ao formular sua crítica ao conceito de mínimos sociais
elabora interessante resgate da concepção de necessidades humanas como parâmetro para se
pensar as ―necessidades básicas‖. Ainda na introdução do seu trabalho Pereira (2006: 16), ao
se referir ao mínimo necessário à reprodução do indivíduo em diferentes organizações sociais,
diz:
O mínimo de subsistência, portanto, de acordo com o modo de produção em vigor,
podia ser uma parca ração alimentar para matar a fome dos necessitados, uma veste
rústica para protegê-los do frio, um abrigo tosco contra as intempéries, um pedaço de
terra a ser cultivado em regime de servidão, uma renda mínima subsidiada ou um
salário mínimo estipulado pelas elites no poder.
No parágrafo citado a autora destaca que a concepção de ―mínimo social
21
‖ norteadora
de políticas de provisão social é residual, arbitrária e elitista acrescentando que esta é
constituída à margem da ética, do conhecimento científico e dos direitos vinculados à justiça
social distributiva. Retomaremos mais adiante esta questão, em especial por considerarmos,
apesar das contribuições apontadas pela autora neste debate, que um limite na sua
argumentação, quando não considera a necessidade social (no capitalismo) como produzida
não por elementos políticos (que envolvam correlações de forças e luta de classes), mas,
fundamentalmente, por elementos econômicos: a mercantilização das próprias necessidades (e
estes, por sua vez, envolvendo as contradições entre capital e trabalho). Assim, ressaltamos
21
Potyara Pereira discute a diferença entre mínimo e básico como sendo fundamental para se pensar e formular
uma política de proteção social diferenciada. Neste sentido, a autora diz que: ―mínimo e básico são, na
verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o primeiro tem a conotação de menor, de menos, em sua acepção
mais ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social, o
segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação
indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta. Por conseguinte, a nosso ver, o básico que na LOAS
qualifica as necessidades a serem satisfeitas (necessidades básicas) constitui o pré-requisito ou as condições
prévias suficientes para o exercício da cidadania em acepção mais larga‖. (Pereira, 2006: 26). O básico para
Pereira (Id.: 35) é ―(...) direito indisponível (isto é, inegociável) e incondicional de todos, e quem não o tem
por falhas do sistema socioeconômico terá que ser ressarcido desse déficit pelo próprio sistema‖. Voltaremos
mais adiante a este debate, posto que, mesmo concordando com a proposição de Potyara em resgatar o caráter
social e coletivo de básicos em oposição ao aspecto individual de mínimo uma questão que diz respeito à
mediação do mercado, não como opção política (como por vezes aparece em seus argumentos, como por
exemplo, considerar como falhas do sistema socioeconômico o não provimento do ―básico‖), mas como
necessidade da própria dinâmica do capital.
40
que a mediação mercantil está presente não no atendimento (satisfação) das necessidades
sociais, mas em especial, na sua constituição, entendimento este fundamental para nossa tese.
Pereira (2006: 83) considera, desta forma, a existência de um conjunto de necessidades
sociais, que constituiriam ―as necessidades humanas básicas‖, sendo estas categorias objetivas
e universais e que devem ser satisfeitas concomitantemente. São elas, segundo a autora, a
saúde física e a autonomia.
O argumento de Pereira (2006: 38) reside na importância de elaboração de um
conceito de necessidades humanas básicas como pré-requisito à construção de políticas
sociais. Segundo ela a negação deste conceito implica em uma lacuna teórico-conceitual que
fundamente e justifique a existência de políticas de proteção social de cunho universal. A
autora argumenta que influentes correntes de pensamento, incluindo aqui Heller e Marx
22
,
―que rejeitam a idéia de que existem, de fato, necessidades humanas básicas comuns a todos e
objetivamente identificáveis, cuja satisfação poderia ser planejada e gerida de forma
sistemática e bem sucedida. E esta rejeição tem andado de mãos dadas com um ceticismo
geral, vigoroso e renitente sobre a possibilidade de se ter, do ponto de vista teórico, um corpo
de conhecimentos coerentes e objetivos sobre a matéria.‖. Como pudemos observar
anteriormente, nem Heller, nem Marx tem o tratamento teórico com as ―necessidades sociais‖
que Pereira lhes atribui. Heller considera, como já destacamos, a existência de uma estrutura
das necessidades que inclui as que seriam direcionadas a reprodução básica dos indivíduos e
Marx atribui esta característica ao que ele chama de necessidades necessárias, mas ambos
consideram que estas necessidades são social e historicamente produzidas, de onde podemos
deduzir que portam particularidades. estar no nosso entendimento as diferenças com a
concepção de Pereira.
O que me parece ser uma lacuna nos argumentos da autora é não considerar que as
necessidades, mesmo as básicas, por serem uma produção social são, portanto, no capitalismo,
mediadas pelo mercado. Há, na proposição de Pereira uma sobrevalorização do aspecto
político. A autora, por exemplo, não acentua, em muitos dos seus argumentos que as
necessidades básicas, consideradas por ela como as de saúde física e autonomia, são mediadas
pelo mercado, não na sua satisfação, mas na sua produção. Tanto é assim que, definirmos
hoje o que implica saúde física é considerar aspectos sociais, culturais e econômicos que têm
na sua constituição elementos históricos impensados há algumas décadas atrás.
22
À respeito cf. Pereira (2006: 43/44).
41
A questão, entretanto, persiste. Poderíamos pensar em um conjunto de necessidades
básicas que sejam universais e objetivas?
Ainda segundo Pereira (1998), as necessidades básicas não constituem um limite, nem
um nimo, não devendo ser consideradas como suficiente para garantir condições dignas de
vida, mas uma base sobre a qual e a partir da qual se atendam outras necessidades. Esta base
pode e deve ser considerada, segunda a autora, como universal e objetiva.
Concordo com Pereira de que exista um conjunto de necessidades produzidas
socialmente que possam ser consideradas básicas na garantia da existência dos indivíduos,
caso contrário, como poderíamos pensar em elementos garantidores de condições dignas de
reprodução humana? Entretanto, se um conjunto de necessidades que podem ser
consideradas básicas, a satisfação destas necessidades comporta elementos de particularidade
sócio-cultural, elementos que não podem ser negligenciados. Podemos dizer que a estrutura
das necessidades assume um caráter universal: no sentido de garantir a reprodução humana,
mas não as necessidades em si, não o seu conteúdo. Desta forma, qualquer política social que
vise atender às necessidades sociais básicas deve levar em conta tais particularidades.
Considerando assim a existência de necessidades sociais básicas com uma estrutura
universal e particularidades sócio-culturais, corroboramos com Pereira no sentido de que sem
esta base é insustentável qualquer política social.
O que nos interessa neste debate é demarcar que apesar da existência deste campo de
necessidades ditas básicas, parcela substantiva da sociedade sobrevive sem o seu atendimento
e apesar disso o capital ainda encontra espaço para a criação de um campo subjetivo de
necessidades sociaisque influencia inclusive a vida de milhões de miseráveis que não têm
sequer a possibilidade de suprirem as suas condições de reprodução básicas.
Além disso, ressaltamos que é fundamental para os argumentos que desenvolvemos
nesta tese entendermos que não só a satisfação ou atendimento das necessidades sociais
(sejam elas básicas ou não) é atravessado por relações contraditórias (decorrente da luta de
classes), mas, fundamentalmente, a produção das necessidades.
42
CAPÍTULO 2 - NECESSIDADES E CAPITALISMO OU A RELAÇAO CAPITAL/
TRABALHO PRODUZINDO NECESSIDADES SOCIAIS
Esperemos
Há outros dias que não têm chegado ainda
Que estão fazendo-se
Como o pão ou as cadeiras ou o produto
Das farmácias ou das oficinas há fábricas de dias que virão
Existem artesãos da lama
Que levantam e pensam e preparam
Certos dias amargos ou preciosos
Que de repente chegam à porta
Para premiar-nos com uma laranja
Ou assassinar-nos de imediato.
Pablo Neruda
O capitalismo subverteu de forma radical todo o sistema de necessidades anterior a
ele. Desta forma, a necessidade ―verdadeira‖ que o capitalismo cria é a necessidade do
dinheiro (como mediador universal), todas as outras nela se reconhecem e dela decorrem. Em
outras palavras, para o capital importa que as necessidades sociais possam ser satisfeitas (e
sejam também criadas) a partir de relações mercantis, pela mediação do dinheiro. Se há,
entretanto, outras necessidades que não estão subsumidas à dinâmica mercantil, elas são
frutos dos antagonismos presentes no processo de produção e reprodução do capital e
ultrapassam seus limites, tanto na sua criação quanto na sua satisfação. Marx (1993: 151)
expressa esta subversão das necessidades no capitalismo, nos seguintes termos:
Eu, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho nenhuma necessidade, i. é, nenhuma
necessidade real e realizando-se de viajar. Eu, quando tenho vocação para estudar,
mas não tenho dinheiro para isso, não tenho nenhuma vocação para estudar, i. é,
nenhuma vocação eficaz, nenhuma verdadeira [vocação]. Pelo contrário, se eu não
tiver realmente nenhuma vocação para estudar, mas tiver vontade e dinheiro, [então]
tenho uma vocação eficaz para isso (grifos do autor).
A análise e a crítica das necessidades, desta forma, têm lugar no capitalismo porque é
com ele que se dá sua crítica prática, ou seja, a necessidade de sua própria crítica. É esta nossa
referência neste capítulo.
Neste sentido, com o capitalismo as necessidades assumem a forma de demanda
solvente
23
e, como tal, estas se expressam no mercado. É esta forma de expressão das
23
Ou seja, demandas que podem ser satisfeitas através do mercado, as únicas que realmente importam no
capitalismo. Neste sentido, uma diferença quando se fala em necessidades humanas em um sentido mais
amplo e necessidades sociais específicas. Aquelas necessidades que podem ser atendidas através da relação de
compra e venda são consideradas as ―verdadeiras‖ necessidades no capitalismo (tornam-se demanda solvente),
43
necessidades que cria a exigência prática de sua crítica. Não é que não existissem
necessidades sociais antes do capitalismo e nem que estas não existam para além deste, mas
no capitalismo as necessidades são tanto produzidas e mediadas quanto satisfeitas pela
mediação do mercado e pelas relações de classes. As necessidades que não podem ser
satisfeitas via mercado, que não se constituem como necessidades alienadas, constituem-se
em necessidades radicais e expressam tanto as contradições constitutivas da sociedade do
capital quanto a necessidade de superação desta.
A expressão das necessidades como ―demanda solvente‖ é uma forma de alienação,
uma expressão da alienação capitalista.
Nas palavras de Marx (1994: 129) nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844:
―A necessidade do dinheiro é, por isso, a verdadeira necessidade produzida pela economia
nacional e a única necessidade que ela produz‖. Assim, nestes termos, ―A quantidade do
dinheiro torna-se cada vez mais a sua única qualidade [Eigenschaft] poderosa; assim como
reduz todo o ser à sua abstração, reduz-se no seu movimento próprio a ser quantitativo. A
desmedida e o descomedimento tornam-se a sua verdadeira medida‖. Se a necessidade do
dinheiro é assim, a ―verdadeira necessidade‖ produzida na sociedade capitalista, todas as
outras nela se espelham e por ela são mediadas.
Heller (1998b) no resgate que faz dos significados diversos que Marx atribui às
necessidades a fim de reconstruir uma ―Teoria das necessidades sociais‖ aponta quatro
aspectos para analisar, a partir de Marx, a alienação das necessidades no capitalismo, quais
sejam: 1) relação meio-fim; 2) qualidade e quantidade; 3) empobrecimento (redução) e; 4)
interesse.
Em relação à inversão meio-fim, Heller (1998b: 54) destaca que para Marx no
desenvolvimento alienado todo fim se converte em meio e todo meio em fim. Assim, em
―condições humanas livres‖ o fim máximo do homem seria o outro homem, em condições
alienadas esse objetivo máximo também se transforma em meio, ―o homem se converte em
um simples meio para o outro homem; um meio para a satisfação de seus fins privados, de sua
avidez‖ (Idem). Neste caso, o máximo da expressão da alienação é o desaparecimento da
comunidade autêntica, dado que a relação mercantil se converte na única pseudo-comunidade.
por isso importa cada vez mais que qualquer necessidade possa ser ―mercantilizada‖, ou seja, atendida via
mercado.
44
Portanto, ―fins e conteúdos sociais (incluindo a vida comunitária) se convertem em meios
para objetivos privados de indivíduos particulares‖. (idem: 56).
O capital subverte qualidade em quantidade e é o dinheiro, ou a relação monetária que
determina esta inversão. Quanto a isto Heller (1998b: 58/9) aponta que: ―as necessidades
dirigidas à posse de bens podem aumentar infinitamente: nenhuma outra necessidade põe
limite ao seu crescimento‖. Isto se dá porque a possessão é diferente do uso e do gozo
imediato, portanto, o incremento das necessidades torna-se quantitativo: ―Não posso possuir
de tal forma que chegue ao ponto de não desejar possuir ainda mais; quero ‗ter‘ mais,
inclusive, quando as qualidades concretas dos objetos não satisfazem imediatamente nenhum
tipo de necessidade converto-me em indiferente a estas qualidades concretas‖ e, além disso,
acrescenta Heller (1998b; 58/9): ―O que possuo não ‗desenvolve‘ em mim necessidades
novas, heterogêneas, mas as mutila‖. Ao que resgata Heller de Marx que a verdadeira riqueza
consiste no desenvolvimento de necessidades qualitativamente distintas. É assim que, para
Marx, o capitalismo quantifica o mundo e transforma tudo que possa se submeter a esta
quantificação em valor de troca: ―Pois o dinheiro não pode ‗limitar‘ a qualidade,
quantificar as necessidades qualitativas e atrofiar o não quantificável, senão que pode
inclusive, quantificar o não quantificável e transformar as necessidades qualitativas em seu
contrário‖. (Heller, 1998b: 63). É, sobretudo, sobre este aspecto (quantificar o não
quantificável) que desenvolvemos nossos argumentos, apontados de forma mais específica na
segunda e terceira parte.
Ainda nas palavras de Heller (1998b: 64/5) ―A forma de expressão mais significativa
do empobrecimento das necessidades (e das capacidades) é sua redução e homogeneização.
Ambas caracterizam tanto a classe dominante quanto a classe trabalhadora, mas não da
mesma forma‖. A indústria cultural talvez tenha sido o melhor meio de massificação de
necessidades e expressa bem o que Heller aponta neste argumento. Como destaca Marx nos
Manuscritos de 1844, todas as necessidades se reduzem à necessidade de ter,
homogeneizando-se. Entretanto, a satisfação destas necessidades se de maneira diferente
para as diferentes classes, ―Para as classes dominantes este ter é possessão efetiva, consiste na
necessidade dirigida à possessão de propriedade privada e de dinheiro em medida cada vez
maior‖. Por outro lado, a necessidade de ter do trabalhador afeta a sua mera sobrevivência:
vive para poder manter-se‖ (Ibidem). Esta manutenção do trabalhador é historicamente
construída e, portanto, varia com o tempo e a dinâmica da sociedade. Este elemento é
45
importante, inclusive, para se entender a possibilidade de manipulação das próprias
necessidades.
Por fim, ao falar do interesse, Heller (1998b: 66) destaca que este não constitui para
Marx uma categoria filosófico-social de caráter geral. Assim, ―O interesse como motivo da
ação individual não é mais que expressão da redução das necessidades à avidez: na
generalização filosófica do conceito de interesse se reflete o ‗ponto de vista da sociedade
burguesa‘‖. Portanto, ―interesse coletivo‖ só existe para Marx nos marcos do fetichismo
capitalista e não como expressão do real.
Desta forma, sobre a concepção de necessidades no capitalismo, Heller (1998b: 24)
aponta que na opinião de Marx:
(...) a redução do conceito de necessidade econômica constitui uma expressão da
alienação (capitalista) das necessidades, em uma sociedade na qual o fim da produção
não é a satisfação das necessidades, mas a valorização do capital, na qual o sistema de
necessidades está baseado na divisão do trabalho e a necessidade só aparece no
mercado, sobre a forma de demanda solvente.
A partir desta citação podemos deduzir algumas questões que, se não forem bem
esclarecidas, podem trazer equívocos interpretativos, questões estas que a própria Heller ajuda
a elucidar.
Em primeiro lugar Marx considera que as necessidades humanas o sociais e
históricas, mesmo as que, como vimos acima, ele classifica nos Manuscritos de 1844 e nos
Grundrisse como naturais. Em segundo, a forma social das necessidades na sociedade
capitalista é a forma alienada, posto que o capitalismo não produz apenas mercadorias, mas
produz as necessidades destas e as produz como expressão da alienação
24
. Entretanto, não são
estas as únicas formas das necessidades que cabem na dinâmica capitalista, apesar de serem
sua melhor expressão, contraditoriamente, no desenvolvimento do próprio capitalismo
desenvolve-se um conjunto de necessidades que não se integra ao capitalismo e, portanto, são
contrárias à sua dinâmica. Estas são caracterizadas como necessidades radicais. Diríamos que
a própria necessidade de superação do capitalismo é um exemplo desta afirmação.
24
Heller destaca que (1998b: 26): ―Para poder analisar as categorias de necessidades alienadas (não são acaso
fenômenos de alienação a necessidade de valorização do capital, o sistema de necessidades imposto pela
divisão de trabalho, a sucessiva aparição das necessidades no mercado, a limitação das necessidades do
trabalhador aos ‗meios necessários para a vida‘ ou a manipulação das necessidades?) deve intuir-se a categoria
positiva de valor do ‗sistema de necessidades não alienadas‘ cuja completa expansão e realização fica situada
por nós em um futuro no qual a economia estará também subordinada a este sistema de necessidades
‗humano‘‖. Assim, considerar a alienação das necessidades implica também em considerar a possibilidade de
superação desta alienação. A questão se sempre haverá um conjunto (reduzido) de necessidades que sempre
serão alienadas não é colocada por Heller, nem abordada por nós nesta tese.
46
O entendimento do desenvolvimento histórico das necessidades sociais e da dinâmica
que estas assumem na sociedade capitalista é fundamental para elucidarmos a relação entre
produção e consumo. Em outros termos, o ―desenvolvimento‖ das necessidades sociais na
sociedade burguesa está na base da sua dinamicidade e da construção de elementos
específicos de alienação nesta sociedade. O que nos interessa aqui é entender o
redimensionamento que estas assumem na sociedade produtora de mercadorias. Neste sentido,
nos diz Heller (1998b: 23) que:
O desenvolvimento da divisão do trabalho e da produtividade cria, junto com a
riqueza material, também a riqueza e a multiplicidade das necesidades; porém as
necesidades se repartem sempre em virtude da divisão do trabalho: o lugar ocupado no
seio da divisão do trabalho determina a estrutura da necessidade ou ao menos seus
limites. Esta contradição alcança sua culminação no capitalismo, onde chega a
converter-se (…) na máxima antinomia do sistema.
A alienação das necessidadesse torna a forma que estas assumem no capitalismo,
assim, destaca Heller (1998) que na opinião de Marx, a redução do conceito de necessidade à
necessidade econômica constitui uma expressão da alienação capitalista ―em uma sociedade
na qual o fim da produção não é a satisfação das necessidades, mas a valorização do capital,
na qual o sistema de necessidades está baseado na divisão do trabalho e a necessidade
aparece no mercado, sobre a forma de demanda solvente.‖ Tal redução implica em que a
necessidade ―primeira‖ e ―universal‖ que cria a sociedade capitalista seja a necessidade do
dinheiro (enquanto dinheiro e enquanto capital-dinheiro) e é a partir desta que todas as
outras se realizam, ou em alguns casos parecem se realizar.
É neste sentido que, como apontou Marx nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, na sociedade burguesa até o livre desenvolvimento dos sentidos humanos tem que
ser transformado em ―necessidades práticas‖ e passíveis da mediação do dinheiro. O ser é
substituído pelo ter. Com a constituição da classe trabalhadora enquanto tal e a venda da força
de trabalho como único meio de reprodução material desta classe, suas necessidades foram
reduzidas à mera sobrevivência. Do ponto de vista do capital, a produção e reprodução dos
trabalhadores passam a implicar produção material e técnica de uma mercadoria especial, do
ponto de vista do trabalho, produção e reprodução da vida. Esta contradição se expressa tanto
na luta histórica pela redução da jornada de trabalho e aumento de salários dos trabalhadores,
quanto pela luta por direitos sociais.
Assim posto, a mediação do dinheiro para realização das necessidades e a transgressão
destas no sentido de subjugá-las ao valor de troca, de um lado; e a luta para que estas
garantam a reprodução da vida, por outro, expressam a contradição de classe que atravessa a
47
produção e satisfação destas necessidades. É neste sentido que a sociedade burguesa cria ao
mesmo tempo riqueza e pobreza; ostentação e luxo e mera reprodução da vida humana como
partes constitutivas do seu ―sistema de necessidades‖.
Heller (1989b) destaca que na sociedade capitalista uma disjunção entre ―interesse
geral‖ e ―necessidade social‖, entretanto tal disjunção não aparece como tal, ao contrário,
necessidade social e interesse geral aparecem como iguais. Há, segundo ela, uma fetichização
do conceito de ―necessidades sociais‖ o que implica em que este apareça na sociedade de
forma fetichizada, sem as contradições que lhe são inerentes, como se fosse uma construção
social consensual. Cabe ressaltar aqui que ―interesse social‖, como apontamos, pode ser
utilizado enquanto ―conceito‖, uma forma fetichista, uma vez que o próprio movimento que
leva a uma transgressão das necessidades no capitalismo impede que se construa, de fato, um
―interesse social‖. Assim, o conceito de interesse geral aparece como isento de contradições e
como ―construção coletiva‖ que até admite diferenças, configurando-se como a expressão
fetichista das necessidades sociais no capitalismo.
Nestes termos, a produção orientada pelo valor de troca e, portanto, direcionada para a
obtenção do lucro, exige um redimensionamento das necessidades humanas e pressupõe uma
reorientação no ―uso‖ como particularidade dos produtos do trabalho humano. Nas palavras
de Mészáros (2002: 606);
Para tornar a produção de riqueza a finalidade da humanidade, foi necessário separar o
valor de uso do valor de troca, sob a supremacia do último. Esta característica, na
verdade, foi um dos grandes segredos do sucesso da dinâmica do capital, que as
limitações das necessidades dadas não tolhiam seu desenvolvimento. O capital estava
orientado para a produção e a reprodução ampliada do valor de troca, e portanto
poderia se adiantar à demanda existente por uma extensão significativa e agir como
um estímulo poderoso para ela.
Desta forma, a sociedade mercantil exige uma transgressão das necessidades humanas
nunca dantes vista. É neste sentido que a sociedade pode orientar sua produção a partir da
―produção de necessidades‖ determinadas, ou orientar suas necessidades a partir da produção
de mercadorias. De outro modo, a produção de necessidades orientadas para a reprodução
ampliada do valor de troca, implica em que a produção seja em grau cada vez maior,
produção destrutiva, é assim que Mészáros (2007) destaca que do ponto de vista do ―processo
de realização do capital‖ ―consumo e destruição são equivalente funcionais‖.
Entretanto, como tendência do processo de desenvolvimento capitalista da produção, o
aumento da produtividade do trabalho teve como seu reverso o problema da realização do
valor produzido. Uma das saídas encontradas para este problema, em especial no pós-guerra,
48
uma vez que a corrida por novos mercados, por si só, não era mais uma saída viável
25
, foi à
redução planejada do ―tempo de vida das mercadorias‖ e a ―criação de mercados de consumo
intensivo‖ alimentados pela ideologia do medo, do terror e da possibilidade de guerras. No
primeiro caso os bens de consumo duráveis se deteriorariam cada vez mais rápido e o ciclo
produção/distribuição/consumo se daria em menos tempo, no segundo o direcionamento da
produção para a indústria da guerra (armamentista) é um exemplo a considerar. Mészáros
(1989: 97) ressalta a este respeito que:
(…) a inovação real dos desenvolvimentos do após-guerra neste contexto pode ser
apontada com precisão na passagem do padrão tradicional de consumo para um tipo
muito diferente, no qual predominam os interesses do complexo militar-industrial. O
novo sistema é caracterizado pela subutilização institucionalizada tanto de forças
produtivas e de produtos, por um lado, quanto por outro, pela crescente, antes
contínua do que súbita dissipação ou destruição dos resultados da superprodução,
através da redefinição prática da relação oferta/demanda no próprio processo
produtivo convenientemente reestruturado. É precisamente esta importante mudança
na relação entre produção e consumo que habilita o capital a afastar, por enquanto, os
colapsos espetaculares do passado, como o dramático craque de Wall Street em 1929.
Por esta via, no entanto, as crises do capital não são radicalmente superadas em
nenhum sentido, mas meramente estendidas‘, tanto no sentido temporal, como no
que diz respeito à sua localização estrutural no conjunto global.
Como destacado por Mészáros, a manipulação das necessidades no capitalismo, ou a
possibilidade de que estas sejam criadas e recriadas com o objetivo de atender o valor de troca
abriu um campo de manobra ao capital que significou uma saída, por um determinado
período, de algumas crises. Entretanto, este movimento traz em si um limite estrutural, ou
vários limites, expresso, sobretudo, na autodestrutibilidade do próprio capital. A produção do
descartável também é a produção do lixo em demasia, a produção de armas também é a
produção da guerra, a produção do medo também é a produção da violência e a produção e
reprodução do capital também é a produção dos potenciais elementos de sua superação.
Mészáros (2002: 605) ao falar da relação entre necessidade e produção de riqueza no
capitalismo, destaca que:
(...) não é mais crível que a disjunção de necessidade e produção-de-riqueza que
vem a ser uma característica necessária da geração de riqueza sob o domínio do
capital possa sustentar a si própria indefinidamente, mesmo nos países de
capitalismo mais avançado e privilegiado; ainda menos que possa satisfazer ―no
momento apropriado‖ (graças a seu glorificado ―dinamismo‖) as necessidades
elementares da vasta maioria da humanidade que agora tão insensivelmente despreza.
25
O que Mészáros chama atenção é que era necessário muito mais que novos mercados para ―realizar o valor
produzido‖, neste caso, a produção de novas necessidades e a redução do tempo das mercadorias foi a ―saída
tímida‖ encontrada, que não duraria muito tempo.
49
O autor acima citado destaca ainda que o fato de o capital se reproduzir desde o início
com a ―completa subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor-de-troca‖,
leva a ―criação‖ de necessidades que são em si uma contradição com a existência da própria
humanidade.
Assim, a inviabilidade da sustentação do modo como o capital orienta a produção dá-
se não somente pela questão da realização do valor, mas da chamada produção destrutiva.
Neste sentido, a produção destrutiva implica em colocar em risco toda a humanidade, mas,
por outro lado, em garantir, pelo menos por algum tempo, a reprodução do capital, uma vez
que, aliada à produção destrutiva, a destruição passa a ser produtiva, do ponto de vista do
próprio capital. Portanto, o que é, do ponto de vista da totalidade (ou do humanamente
viável), considerada como produção destrutiva: as armas nucleares, sementes geneticamente
modificadas, as guerras como ―produto‖ e não como resultado (de tensões sócio-políticas
mundiais) e a produção ―em massa‖ de alguns bens duráveis; para o capital é uma saída
(mesmo que seja à curto prazo) para a crise de superprodução. É fato que isso por si não
tem trazido o efeito esperado e novas buscas m sido feitas no sentido de encontrar não
somente uma saída tímida, mas uma saída para o alto, uma recuperação que implique
crescimento e segurança, nas palavras de Mészáros (1989: 102), tal saída (para o alto) é
improvável:
Em forte contraste com a articulação social do capital, predominantemente produtiva,
na época de Marx, o capitalismo contemporâneo atingiu o estágio em que a disjunção
radical entre produção genuína e auto-reprodução do capital não é mais uma remota
possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais devastadoras implicações para o
futuro. Pois, hoje, as barreiras à produção capitalista são suplantadas pelo próprio
capital na forma que assegura sua própria reprodução em tamanho sempre maior e
em constante crescimento inevitavelmente como auto-reprodução destrutiva, em
oposição antagônica à produção genuína.
Ao que se considera ainda que;
(…) os limites do capital não podem mais ser conceituados como meros obstáculos
materiais para um incremento maior da produtividade e da riqueza sociais, e assim
como uma trava ao desenvolvimento, mas como um desafio direto à própria
sobrevivência da humanidade. E, em outro sentido, os limites do capital podem se
voltar contra ele, enquanto controlador todo-poderoso do metabolismo social, não
quando seus interesses colidam com o interesse social geral de incrementar as forças
da produção genuína (o primeiro impacto de tal colisão pôde ser sentido, de fato,
muito tempo), mas somente quando o capital não é mais capaz de assegurar, por
quaisquer que sejam os meios, as condições de sua auto-reprodução destrutiva,
causando assim o colapso do metabolismo social global. (Idem).
50
Como apontamos anteriormente as necessidades sociais produzidas no capitalismo são
atravessadas, tanto em sua produção quanto em seu atendimento, por relações de classes, pela
contradição capital/trabalho. Assim, o mesmo movimento que produz, por exemplo, novas
necessidades mercantis, traz em potência o germe da superação destas mesmas necessidades.
O desenvolvimento radical desta potência é condição para a superação do próprio capitalismo.
Cabe ressaltar que, no caso das necessidades que aqui estão sendo consideradas como
ligadas aos desejos e fantasias uma disjunção tamanha entre sua produção (e seu conteúdo)
e a possibilidade de sua satisfação que estas não são satisfeitas nem por aqueles que detêm
recursos para se apropriarem das mercadorias que satisfariam tais necessidades e este é um
dos elementos contemporâneos que buscamos destacar nesta tese. Esta disjunção ocorre posto
que, mesmo sendo a necessidade uma relação entre sujeito e objeto, na atual fase do
capitalismo o sistema de necessidades é cada vez mais reconstituído com elementos
subjetivos que estão vinculados aos desejos e fantasias e não ao objeto em si, portanto, o
consumo do valor de uso que promete satisfazer determinada necessidade não o pode fazer,
pois esta só pode ser satisfeita na relação sujeito-sujeito.
2.1 Produção, circulação e consumo de mercadorias no capitalismo: a produção
determina o consumo e o consumo determina a produção.
(...) minha especialidade é viver - era a legenda
de um homem (que não tinha renda
porque não estava à venda).
E.E. Cummings
Marx (1978b) ao discorrer sobre as mediações produção/circulação/distribuição e
consumo destaca que o consumo produz duplamente a produção: primeiro ―porque o produto
não se torna produto efetivo senão no consumo‖ e, segundo, ―porque o consumo cria a
necessidade de uma nova produção, ou seja, o fundamento ideal, que move internamente a
produção, e que é a sua pressuposição‖.
Produção e consumo não constituem duas instâncias distintas e separadas, ligadas por
uma ―ponte‖ (distribuição/troca), como concebiam os economistas vulgares e como é corrente
considerar-se ainda hoje.
51
A produção é ―imediatamente consumo‖ e o consumo imediatamente produção,
portanto, momentos indissociáveis do mesmo processo. Quanto à mediação
produção/distribuição/consumo, Marx (1978b: 109) nos diz que:
A produção é, pois, imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente, produção.
Cada qual é imediatamente seu contrário. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um
movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos
materiais cria e sem os quais não teria objeto. Mas o consumo é também mediador da
produção ao criar para os produtos o sujeito, para o qual são produtos. O produto
recebe seu acabamento final no consumo. Uma estrada de ferro em que não se viaja e
que, por conseguinte, não se gasta, não se consome, não é mais que uma estrada de
ferro dynamei, e não é efetiva. Sem produção não consumo, mas sem consumo
tampouco há produção.
Desta forma, tanto a produção engendra o consumo, quanto este, a produção. No
primeiro caso, tal fato dá-se pela produção fornecer o material do consumo e gerar no
consumidor a ―necessidade dos produtos, que, de início, foram postos por ela como objeto‖.
No segundo, ―o consumo engendra a disposição do produtor, solicitando-lhe a finalidade da
produção sob a forma de necessidade determinante‖ (Marx; 1978b: 110). Assim, a produção
não é imediatamente consumo, nem este só, imediatamente produção; ―cada um, ao
realizar-se, cria o outro‖. Esta interessante passagem de Marx nos ajuda a entender por que é
imprescindível, quando da dificuldade em se estender o consumo e, portanto, garantir a
realização do valor, que se criem necessidades especiais, necessidades estas, como as que
abordamos nesta tese, mas não só, que garantam tanto as mediações produção-consumo,
quanto à produção do próprio sujeito para o consumo, para o qual os produtos se
apresentam como tais.
Marx (1978b: 112) pontua ainda que entre a produção e o consumo se interpõe à
distribuição e, desta forma, estes dois momentos ocorrem em tempos diferentes (e espaços) o
que acentua a possibilidade de crises (de superprodução).
A economia vulgar, não só considerava a distribuição como esfera autônoma, marginal
e exterior à produção, como também via de forma fetichizada a renda da terra, o salário e o
lucro, como rendimentos oriundos da terra, do trabalho e do capital (correspondentes à
distribuição e produção). Nestes termos, ―as relações e os modos de distribuição aparecem
apenas como o inverso dos agentes de produção‖. Ou seja, a distribuição parece como
resultado do lugar que ocupa o indivíduo na sociedade e o ―lugar‖ que ocupa parece ser algo
tão natural quanto o é a força do vento que move moinhos. Marx (Ibid: 113), ao criticar esta
proposição destaca:
52
Na sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e
assim como que afastada da produção, e, por assim dizer, independente dela. Contudo,
antes de ser distribuição de produtos, ela é: primeiro, distribuição dos instrumentos de
produção, e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de
produção, o que é uma determinação ampliada da relação anterior.
Na crítica ao programa de Gotha, Marx (s.a.: 215) diz a respeito da distribuição que:
A distribuição dos meios de consumo é, em cada momento um corolário da
distribuição das próprias condições de produção. E esta é uma característica do modo
mesmo de produção. Por exemplo, o modo capitalista de produção repousa no fato de
que as condições materiais de produção são entregues aos que não trabalham sob a
forma de propriedade do capital e propriedade do solo, enquanto a massa é
proprietária apenas da condição pessoal de produção, a força de trabalho. Distribuídos
desse modo os elementos de produção, a atual distribuição dos meios de consumo é
uma conseqüência natural. Se as condições materiais de produção fossem propriedade
coletiva dos próprios operários, isto determinaria, por si só, uma distribuição dos
meios de consumo diferente da atual.
A consideração da distribuição como campo autônomo, tão comum em nossos dias e
propagada, como fundamento da ―justa distribuição‖ é um argumento que não encontra eco
quando entendemos a distribuição dos meios de produção de riqueza como antecedendo e
diretamente vinculada a ―distribuição da renda‖. Assim: ―Considerar a produção sem ter em
conta a distribuição, nela incluída, é manifestadamente uma abstração vazia, visto que a
distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição que constitui, na origem, um fator
da produção‖. (Ibid.: 113).
Por fim, em relação à troca, Marx considera que esta, na medida em que é ―momento
mediador entre a produção e a distribuição determinada por ela e o consumo, na medida em
que, entretanto, este último aparece como momento da produção, a troca é também
manifestadamente incluída como um momento da produção‖. (Ibid.: 115).
Portanto, produção, distribuição, intercâmbio e consumo, não são idênticos, mas
―todos eles são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade‖ (Ibid.: 115),
unidade que se modifica com a modificação de um dos seus termos, havendo, portanto, ―uma
reciprocidade de ação‖ entre ―os diferentes momentos‖. Posto que: ―Este é o caso para
qualquer todo orgânico‖ (Ibid: 116).
Heller (1998b: 43) ao discutir a alienação das necessidades a partir de Marx destaca
que:
A necessidade do homem e o objeto da necessidade estão em correlação: a
necessidade se refere a todo momento a algum objeto material ou a uma atividade
concreta. Os objetos ―fazem existir‖ as necessidades e, inversamente, as necessidades
aos objetos. A necessidade e seu objeto são ―momentos‖, ―lados‖ de um mesmo
53
conjunto. Se em vez de analisar um modelo estático analisamos a dinâmica de um
―corpo social‖ (pressupondo que esse corpo admita uma dinâmica), então a primazia
corresponde a produção: é a produção a que cria novas necessidades. Com efeito,
também a produção que cria novas necessidades se encontra em correlação com as
existentes: ―As diversas conformações da vida material depende em cada caso,
naturalmente, das necessidades desenvolvidas, e tanto a criação como a satisfação
destas necessidades é um processo histórico‖.
Não podemos negligenciar o estudo da distribuição e do consumo, ou dos fenômenos
que se processam neste campo. A mediação entre produção e consumo, é importante não
para apreensão do ciclo do capital na sua totalidade, como para se contrapor criticamente aos
defensores do mercado como espaço supremo do ordenamento equilibrado da sociedade
capitalista. Entrementes, é importante pontuar que, para Marx (1978b: 114) todas as
discussões que se gestam em torno da distribuição e do consumo ―se reduzem, pois, em última
instância, a saber de que maneira as condições históricas gerais afetam a produção e qual é a
relação desta com o movimento histórico em geral‖, o que traz implicações sérias quando nos
propomos a estudar os processos relativos à distribuição ou troca na atualidade sem sairmos
da superfície da questão.
Além deste aspecto, a mediação entre produção e consumo, na forma apontada por
Marx, ajuda-nos a elucidar as crises de superprodução e os recursos utilizados pelo capital
para realizar os valores produzidos, recursos que são cada vez mais agressivos, apesar de sua
aparente inofensividade, como veremos adiante.
54
2.2 “A gente não quer comida, a gente quer bebida, diversão e arte”: necessidades
radicais como expressão da contradição capital/trabalho
Nos resíduos e no virtual estão as necessidades radicais,
necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade,
necessidades insuportáveis, que agem em favor das transformações
sociais, que anunciam as possibilidades contidas nas utopias, no
tempo que ainda não é, mas pode ser. Para isso é preciso juntar os
fragmentos, dar sentido ao residual, descobrir o que ele contém como
possibilidade-não realizada. Nesse sentido é que ele encerra um
projeto de transformação do mundo: “Terminaremos pela decisão
fundadora de uma ação, de uma estratégia: a reunião dos „resíduos‟,
sua coalizão para criar poeticamente na práxis, um universo mais
real e mais verdadeiro (mais universal) do que os mundos dos
poderios especializados”.
(José de Sousa Martins; 2008: 107).
As necessidades radicais consistem, grosso modo, a um conjunto de necessidades que
se gestam no interior do próprio capitalismo, como parte do seu ―sistema de necessidades‖,
mas que não podem ser atendidas dentro do próprio capitalismo, visto que o seu atendimento
implica na criação de elementos para a superação do próprio sistema, na direção da
emancipação humana.
O debate sobre ―necessidades radicais‖ traz inúmeros ―nós” ainda não resolvidos
teoricamente. Além do real conteúdo das necessidades parece-nos que a principal questão que
o debate apresenta é sobre quem porta historicamente as capacidades de realização destas (na
citação acima Martins nos oferece interessantes pistas para se pensar esta última questão).
Seguindo o percurso aberto pelos autores aqui utilizados, em especial Lefebvre e
Heller, Martins (2008: 131/2) em entrevista a revista Memória traz algumas polêmicas ao
discutir onde reside a verdade da História, com uma crítica aos que a reduzem apenas aos
conflitos sociais. Martins diz: ―Numa perspectiva verdadeiramente dialética é necessário antes
de tudo ter em conta que a chave explicativa que sentido ao curso da História está na
contradição entre o homem e sua obra, na relação alienada entre aquilo que ele quer e aquilo
que ele faz; no desencontro que cria necessidades sociais que são necessidades radicais, isto é,
necessidades que podem ser satisfeitas mediante profundas transformações sociais, como
sugerem Lefebvre e Heller‖. Ao que acrescenta Martins que ―O simples conflito fabril pode
não estar revestido das implicações profundas desse desencontro, uma vez que a greve pode,
em muitas circunstâncias, ser apenas conflito de interesses e não mediada e propriamente
55
conflito de classe. Nem todo conflito envolve a radicalidade pressuposta na concepção de que
é do conflito que nasce a história‖. (idem). Assim, Martins (2008) indica que se busque nos
resíduos às necessidade radicais e afirma que para isso é preciso juntar os fragmentos, dar
sentido ao residual, descobrir o que ele contém como possibilidade-não realizada. Nesse sentido é que
ele encerra um projeto de transformação do mundo”.
Se a luta de classes pode se expressar de várias maneiras, a radicalidade da história e,
portanto, as necessidades radicais também podem ser gestadas de diversas formas e em
diversos espaços. Martins encerra a entrevista afirmando que: ―Todos estão procurando o
sujeito típico ideal e o protagonista mítico, que, no fundo, é irreal‖. (Idem: 132). O autor
indicado traz uma polêmica sobre qual seria o sujeito histórico da revolução, polêmica que
questiona as concepções que defendem que reside em um sujeito histórico (o operário) a
possibilidade de revolução social. A crítica de Martins (2008) é importante para se apreender
à constituição real do que chamamos classe trabalhadora e a importância dos que não se
inserem no chamado ―mundo do trabalho‖, nos processos de revolução social. Por outro lado,
aproveitamos as contribuições que Martins nos apresenta para demarcar que as necessidades
radicais devem ser buscadas no real, nas relações concretas das diferentes sociedades.
Mas em que consistem as necessidades radicais?
Heller ao discutir as necessidades radicais a partir de Marx aponta que este descobre
duas vias para explicá-las: uma ligada ao dever, de que o comunismo deve ser realizado e a
outra onde a coletividade se converte em sujeito, diríamos que ligada à consciência de classe.
Esta segunda concepção, com a qual concordamos, converge para o que aponta Martins nas
citações acima. Nesta possibilidade, na qual a coletividade se converte em sujeito, afirma
Heller: ―O dever mesmo é coletivo, posto que no limite da alienação capitalista despertam nas
massas sobretudo no proletariado necessidades (as denominadas necessidades radicais)
que encarnam esse dever e que por sua natureza tendem a transcender o capitalismo
precisamente em direção ao comunismo‖ (Heller, 1998b: 87). As palavras da autora em
questão, a meu ver, ainda portam um aspecto determinista que merece destaque e crítica,
entretanto, aponta alguns elementos interessantes para se entender, a partir de Marx, em que
consistem as chamadas ―necessidades radicais‖.
A citação abaixo de Heller (1998b: 90) nos ajuda a entender este debate. Segundo a
autora:
Para poder funcionar na forma característica da época de Marx, para poder subsistir
como ―formação social‖, o capitalismo, no interior de sua estrutura de necessidades,
56
incluía algumas de impossível satisfação em seu seio, segundo Marx as necessidades
radicais são momentos inerentes da estrutura capitalista das necessidades: sem elas,
como dizíamos, o capitalismo não poderia funcionar: este em conseqüência, cria cada
dia necessidades novas. As ―necessidades radicais‖ não podem ser ―eliminadas‖ pelo
capitalismo porque são necessárias para seu funcionamento. Não constituem
―embriões‖ de uma formação futura, senão ―acessórios‖ da organização capitalista: a
transcende não o seu ser, senão sua satisfação. Aqueles indivíduos nos quais surgem
as “necessidades radicais” já no capitalismo são portadores do “dever coletivo”.
Como observamos na discussão sobre necessidades sociais, estas são construídas como
sistema de necessidades históricas. E no capitalismo as necessidades assumem a forma de
alienadas. As necessidades radicais também surgem dentro deste sistema e são, como aponta
Marx, inerentes ao capitalismo, fazem parte de sua dinâmica interna. É desta forma que, no
sistema de necessidades capitalista se inserem (são criadas) tanto as necessidades alienadas
quanto as necessidades radicais, entretanto, discordamos de Heller de que estas últimas são
―acessórios da organização capitalista‖, são mais que isto, podem inclusive se tornar de fato
embriões de uma formação futura, o que o implica que ―devam‖ ser realizadas (inclusive
por determinados sujeitos, aqueles indivíduos nos quais surgem as necessidades radicais‖); a
realização ou não das necessidades radicais depende de elementos históricos e não é uma
premissa da humanidade.
Como se manifestam na contemporaneidade as chamadas necessidades radicais?
Podemos dizer que atualmente estas necessidades não são criadas como radicais,
mas podem ser transformadas em radicais. Estas se expressam em elementos que negam a
dinâmica própria do capital e caminham na construção da emancipação humana. A principal
necessidade radical apontada por Marx é a própria necessidade de superação do capitalismo
(esta necessidade se explicita atualmente nas contradições apontadas por Mészáros (2007)
como expressão do limite estrutural do capital
26
: como, por exemplo, a contradição entre
produção e destruição; produção do tempo livre e sua alienação; expansão do emprego e
geração do desemprego e etc.).
Entretanto, à medida que se acirram as contradições capitalistas algumas necessidades
sociais funcionam como instrumentos, para a classe trabalhadora, de construção desta
radicalidade, mesmo que não sejam em si, necessidades radicais: como, por exemplo, a
necessidade de ter uma vida saudável nas grandes cidades, de viver sem medo, de ter acesso a
determinados bens e serviços e etc. Se as necessidades radicais são impossíveis de serem
satisfeitas dentro da dinâmica do próprio capitalismo, o são por portarem as contradições
26
Conferir introdução da tese.
57
do próprio capitalismo e expressarem em si a luta de classes, portanto, cabe àqueles que estão
subordinados aos imperativos do capital construir as condições reais que permitam a
realização histórica destas necessidades.
O acirramento das contradições capitalistas na contemporaneidade, pontecializa, desta
forma as necessidades radicais. Iamamoto (2008: 125), na análise que faz sobre capital
fetiche, questão social e serviço Social‖, destaca que:
O predomínio do capital fetiche conduz à banalização do humano, à descartabilidade e
indiferença perante o outro, o que se encontra na raiz das novas configurações da
questão social na era das finanças. Nesta perspectiva, a questão social é mais do que
as expressões de pobreza, miséria e ―exclusão‖. Condensa a banalização do humano,
que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do trabalho social e dos
sujeitos que o realizam na era do capital fetiche. A subordinação da sociabilidade
humana às coisas ao capital-dinheiro e ao capital-mercadoria , retrata, na
contemporaneidade, um desenvolvimento que se traduz como barbárie social.
Como atesta Iamamoto se as novas configurações da questão social expressam ―a
imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações
sociais que o impulsionam‖ (idem: 144) é aqui também que vamos encontrar os elementos
potenciais do que consideramos como necessidades radicais ou, em outros termos, aqui reside
potencialmente a radicalidade do sistema. Assim posto, neste movimento contemporâneo de
imposição do capital fetiche;
(…) desenvolvem-se, em níveis sem precedentes históricos, em um mercado mundial
realmente unificado e desigual, as forcas produtivas sociais do trabalho aprisionadas pelas
ações sociais que as sustentam. Potencia contradições sociais de toda natureza, que
impulsionam as necessidades radicais (Heller, 1978: 87-113): aquelas que nascem do
trabalho e motivam uma práxis que transcende o capitalismo e aponta para a livre
individualidade social emancipadora das travas da alienação da sociabilidade reificada
cujas bases materiais estão sendo, progressivamente, produzidas no processo histórico em
curso. (Iamamoto, 2008: 144).
É, desta forma, que o entendimento dos meandros da questão social na
contemporaneidade nos permitirá desvendar elementos potenciais que impulsionem e
permitam a realização das necessidades radicais. Elementos estes presentes na luta cotidiana
daqueles que ―dispõem apenas de sua força de trabalho para sobreviver: além do segmento
masculino adulto de trabalhadores urbanos e rurais‖, também ―os velhos trabalhadores, as
mulheres e as novas gerações de filhos da classe trabalhadora, jovens e crianças, em especial
negros e mestiços‖ (Iamamoto; 2008: 145). As necessidades radicais, como nos indica
Martins (2008) expressam-se nos diversos espaços de emergência das contradições
capitalistas, portanto, é na realidade, no vivido que estas são gestadas.
58
PARTE II
DAS MERCADORIAS, DO TEMPO E DAS IMAGENS
CAPÍTULO 3 - O “MARAVILHOSO” MUNDO DA MERCADORIA: sua estetização e
desenvolvimento no capitalismo contemporâneo
O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca.
Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tão pouco fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tão pouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Ferreira Gullar
Neste capítulo abordaremos em especial o processo de estetização das mercadorias a
partir do seu fetichismo. Esta opção teórica tem sua justificativa na necessidade de
entendermos o desenvolvimento histórico de recursos estético-ideológicos utilizados pelo
capital como forma de garantir a realização do valor produzido (e a reprodução do próprio
59
capital) e com isto a criação de necessidades mercantis específicas a determinadas épocas e
determinadas classes.
O objetivo central neste capítulo é investigar tanto a estetização da mercadoria, como
um dos recursos do capital para garantir a realização do valor, quanto os rebatimentos desta
dinâmica na constituição de necessidades especificamente capitalistas e sua interferência na
organização e significação da vida dos indivíduos burgueses contemporâneos.
Entendemos que a ―estética da mercadoria‖ não é o único elemento de influência na
―determinação‖ de padrões de comportamentos e definição de necessidades na sociedade
burguesa e, provavelmente, nem o mais importante, mas é, sem dúvida, um elemento de
relevância contemporânea a ser considerado e, conforme a dinâmica capitalista o tem
demonstrado, um elemento eficaz na ―padronização da sensualidade e do comportamento
humanos‖ no que diz respeito ao consumo de determinados bens.
São estas mediações que procuraremos elucidar no referido capítulo. Neste sentido,
concordamos com Haug (1997: 135) quando afirma que: ―Dizer que a estética da mercadoria
padroniza sobremaneira a sensualidade humana significa apenas lançar luz de parte da
sedução sobre o modo como as pessoas são levadas a assumir comportamentos conformes ao
sistema na sociedade capitalista‖.
Outro elemento eficaz e importante na ―determinação e padronização de
comportamentos‖ é o político, que também tem sua estética e que, em alguns momentos
históricos, faz uso dela como um recurso indispensável de ―divulgação‖ e ―propaganda‖,
como o foi, por exemplo, no fascismo e em governos de ―cunho populistas‖, e como continua
sendo, mas de forma diferenciada (muito mais próximo da ―estética da mercadoria‖) em
tempos contemporâneos. Em nosso estudo abordaremos como o afirmamos, apenas os
elementos estético-ideológicos ligados à produção de mercadorias que, obviamente, também
tem seu lado político.
Destacamos que, como apontamos na primeira parte desta tese, sempre que nos
referimos à ―determinação e padronização do consumo e de comportamentos‖, o entendemos
como resultado de um processo anteriormente posto: a existência da necessidade deste
movimento e não como simples reflexo ou efeito. Nenhum elemento estético ou mesmo
político ―padroniza‖ comportamentos de forma mecânica, unilateral, como se o indivíduo, o
sujeito social, fosse um mero receptor de mensagens, um autômato. Este movimento só ocorre
a partir da confluência de determinados elementos econômicos, sócio-cultuais e políticos que
60
portam também suas contradições e, portanto, não se de forma homogênea e sem negações
ou resistências
27
.
No que tange a este debate na contemporaneidade, encontramos em Harvey (2005:
257) contribuições bastante interessantes para discutir mudanças de padrões de consumo.
Segundo ele com a transformação política-econômica do capitalismo do final do século XX,
houve uma mudança significativa nos ―usos e significados do espaço e do tempo‖. Dentre os
vários aspectos que envolvem estas mudanças o autor citado destaca que ―a aceleração do
tempo de giro da produção envolve acelerações paralelas na troca e no consumo‖. Desta
forma, nos indica Harvey (2005: 258), que a aceleração ―generalizada dos tempos de giro do
capital‖ tem ―influência particular nas maneiras pós-modernas de pensar, de sentir e de agir‖.
No que diz respeito ao consumo, Harvey aponta elementos importantes que confluem com o
que aqui apresentamos. Para ele:
Dentre os muitos desenvolvimentos na arena do consumo, dois têm particular
importância. A mobilização da moda em mercados de massa (em oposição a mercados
de elite) forneceu um meio de acelerar o ritmo de consumo não somente em termos de
roupa, ornamentos e decoração, mas também numa ampla gama de estilos de vida e
atividades de recreação (...). Uma segunda tendência foi a passagem do consumo de
bens para o consumo de serviços não apenas os serviços pessoais, comerciais,
educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e
distrações. (Harvey, 2005: 258).
Desta forma, por entendermos que a ―padronização do consumo e de
comportamentos‖ está ancorada em transformações sócio-políticas e, fundamentalmente, em
transformações econômicas, consideramos que, dentre outros aspectos, é possível
apreender o movimento ao qual nos referimos no início deste capítulo: de estetização da
mercadoria, a partir do seu fetichismo, portanto, a partir da contraditoriedade presente na
produção das mercadorias e, nas próprias mercadorias, enquanto bens portadores de valor de
uso e valor de troca, contraditoriedade que é nada mais que a expressão das contradições do
próprio sistema produtor de mercadorias. Daí o percurso que propusemos nesta segunda parte
da tese. Partiremos da mercadoria, forma particular dos bens na sociedade burguesa, até
chegarmos aos impactos que ―o tempo do capital‖, expresso de forma marcante na
―obsolescência artificial‖ das mercadorias, provoca no tempo de vida dos indivíduos
contemporâneos. Para fazermos este percurso passaremos pelo fetiche da mercadoria, do
dinheiro e do capital-dinheiro, bem como pela estetização da mercadoria no capitalismo em
suas diferentes expressões.
27
que se pensar também em termos de negação de homogeneidade quanto a este processo, na idéia de
conflito como atravessando e constituindo o indivíduo. A este respeito conferir Fontes (2005).
61
Aclaramos inicialmente que estamos entendendo como fetichismo da mercadoria o
movimento de mascaramento da forma social de produção das próprias mercadorias e,
portanto, das relações sociais que estão na base desta produção, das relações capital/trabalho.
Para Marx o ―caráter misterioso‖ atribuído às mercadorias no processo de fetichização não
decorre nem do seu valor de uso, nem tampouco dos fatores determinantes do seu valor, mas,
―é da própria forma mercadoria que provém o caráter misterioso da mercadoria (...)‖. Esse
fetichismo é decorrente ―do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias‖
(Marx; 1994: 80).
A este processo, insuprimível dos ―produtos do trabalho‖, que são gerados como
mercadorias‖, Marx denominou de fetichismo. E é com esta concepção que trabalharemos na
tese. Concepção que funciona como ponto de partida e a partir da qual buscamos investigar as
novas formas de expressão deste movimento na dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Destacamos, por outro lado, que utilizamos a terminologia ―estética da mercadoria‖ a
partir de Haug (1997), da sua ―Crítica da estética da mercadoria‖, entretanto, acrescentamos
aos elementos que Haug considerava como significantes a esta concepção outros
perceptíveis de forma marcante na contemporaneidade. Para tal incursão recorreremos, em
especial, a alguns aportes de Fredric Jameson
28
(2004 e 2004b) e de David Harvey (2005).
Em seu livro ―Crítica da Estética da mercadoria‖, que trata de uma análise sociológica
―do destino da sensualidade e do desenvolvimento das necessidades no capitalismo‖, Haug
(1997: 15) considera como ―estética da mercadoria‖
29
―um complexo funcionalmente
determinado pelo valor de troca e oriundo da forma final dada à mercadoria, de manifestações
concretas e das relações sensuais entre sujeito e objeto por elas condicionadas‖. Desta forma,
a ―estética da mercadoria‖ não constitui um aparato ideológico desvinculado do processo de
produção de mercadorias e que poderia, portanto, prescindir dele, mas, ao contrário, tem sua
raiz fincada na garantia de que este processo seja, continuamente, necessário e refeito através
da realização do valor produzido.
28
Jameson (2004) traz interessantes contribuições para a temática que desenvolvemos na tese, entretanto,
algumas polêmicas, apontadas por diversos críticos de suas obras, em torno das suas concepções sobre o ―pós-
modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio‖. Destacamos que tais polêmicas não inviabilizam a
recorrência a sua obra para trabalhar com questões contemporâneas que são por ele muito bem analisadas.
29
Haug faz a ―crítica da estética da mercadoria‖ analisando estas relações como formas de acesso ao lado
―subjetivo da economia política capitalista‖, diz ele, que isto é possível ―na medida em que o subjetivo
representa ao mesmo tempo o resultado e o pressuposto do seu funcionamento‖. Assim, ―a crítica da estética
da mercadoria examina esferas funcionais ecomicas concretas, com base nas quais pode-se esclarecer com
mais exatidão certos processos de padronização do afeto‖ (1997: 16).
62
Outro elemento importante a destacar é que, por se tratar de ―relações sensuais entre
sujeito e objeto‖, está posta a necessidade de que a estetização da mercadoria seja alimentada
de elementos subjetivos dos próprios sujeitos, em outras palavras, que o objeto seja percebido
(identificado) para ser desejado.
A estética da mercadoria corresponde assim não apenas à forma desta se mostrar, não
apenas ao design da mercadoria, ao seu corpo, mas, a um complexo de elementos
funcionalmente determinados. Estes elementos, conforme veremos mais adiante, vão desde a
aparência da mercadoria, seu invólucro, sua forma, até recursos propagandísticos que
estimulam o seu consumo. É neste movimento entre sujeito e objeto que se impõe a
sensualidade e a recorrência a elementos sensíveis como instrumento do capital para criar
novas necessidades mercantis.
As contribuições de Jamenson, por outro lado, nos ajudam a pensar o complexo de
elementos culturais que estão à disposição do capital, na sua fase tardia, como veículos da
estetização da mercadoria. A este respeito Jameson (2004: 30) destaca que: ―O que ocorreu é
que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência
desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam
novidades (de roupas a aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma
posição e uma função estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao
experimentalismo‖.
Entendemos a ―estetização das mercadorias‖ como fenômeno ligado à sua própria
produção, portanto, como parte da dinâmica contemporânea de reprodução do capital,
elemento este fundamental para a nossa análise.
Ainda sobre a ―produção estética‖ acrescenta Jameson (2004: 30):
Tais necessidades econômicas são identificadas pelos vários tipos de apoio
institucional disponíveis para a arte mais nova, de fundações e bolsas até museus e
outras formas de patrocínio. De todas as artes, a arquitetura é a que está
constitutivamente mais próxima do econômico, com que tem, na forma de
encomendas e no valor de terrenos, uma relação virtualmente imediata. Não é de
surpreender, então, que tenha havido um extraordinário florescimento da nova
arquitetura pós-moderna apoiado no patrocínio de empresas multinacionais, cuja
expansão e desenvolvimento são estritamente contemporâneos aos da arquitetura. (...).
Porém é neste ponto que devo lembrar ao leitor o óbvio, a saber, que a nova cultura
pós-moderna
30
global, ainda que americana, é expressão interna e superestrutural de
30
Jameson (2004: 16) compreende a pós-modernidade como própria do capitalismo tardio, como, segundo suas
próprias palavras, sua lógica cultural. Para ele ―o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem
social totalmente nova (sob o nome de sociedade pós-industrial, esse boato alimentou a mídia por algum
tempo), mas é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio
63
uma nova era de dominação, militar, econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do
mundo: neste sentido, como durante toda a história de classes, o avesso da cultura é
sangue, tortura, morte e terror.
O autor acima se refere, em especial, à aproximação entre arte e economia, ou a
produção mercantil da arte, a produção estética mercantilizada. Apesar de tratarmos aqui, não
desse movimento em si
31
, mas da recorrência a elementos estéticos na produção, circulação e
consumo de mercadorias, os aportes de Jameson lançam luz a alguns aspectos da questão que
procuramos entender.
Jameson traz contribuições interessantes e polêmicas para se pensar a expressão
cultural do capitalismo na sua fase atual. Partindo da teoria de Mandel de que vivenciamos a
fase tardia do capitalismo, o autor elabora sua teoria de que a expressão ou lógica cultual
desta fase de ―capitalismo tardio‖ é o pós-modernismo
32
. Desta forma, para Jameson
(2004:13/14): ―O pós-modernismo é o que se tem quando o processo de modernização está
completo e a natureza se foi para sempre. É um mundo mais completamente humano do que o
anterior, mas é um mundo no qual a ‗cultura‘ se tornou uma verdadeira ‗segunda natureza‘‖.
As contribuições deste autor para se a pensar a cultura como ―segunda natureza‖ nos
traz alguns aportes para a questão que nos propusemos nesta tese. Entretanto, é interessante
capitalismo.‖ Jameson (2004) destaca de forma acentuada em sua teoria seu vínculo teórico-conceitual com
Mandel, quanto a sua classificação do capitalismo atual, como uma terceira fase do capitalismo, sua fase mais
avançada e mais pura - o capitalismo tardio. Entretanto, reside justamente uma das críticas a este autor,
segundo Ana Lúcia Gazzola, na introdução (p. 11) que faz ao livro de Jameson (2004b), ―Espaço e Imagem;
teorias do pós-moderno e outros ensaios‖, ―Jameson constrói uma teoria da sociedade atual cujo modelo
pressupõe interconexões complexas entre modos de subjetividade e experiência, formas culturais, condições
sociais e históricas e estágios do desenvolvimento econômico.‖, entretanto, acrescenta Gazzola (p. 12): ―(...)
alguns críticos consideram insuficiente sua elaboração do novo estágio do capitalismo multinacional,
argumentando que ele não oferece mediações adequadas entre o econômico, o cultural e o político. Termina,
assim, por apresentar uma concepção reducionista, mecanicista e com implicações economicistas das
mudanças históricas e dos fenômenos culturais. Tais leituras da obra de Jameson criticam sua concepção
unificada e integrada tanto da cultura contemporânea quanto das culturas das sociedades tradicionais, e o fato
de que ele termina por operar dentro dos limites do modelo de base e superestrutura‖. Apesar de procedentes
as críticas que Gazzola apresenta em relação à Jameson, consideramos a contribuição que o autor traz para se
pensar a constituição cultural da fase tardia do capital e, em relação a este aspecto, Jameson fomenta debates e
traz argumentos com os quais concordamos e nos ajudam a reforçar nossa hipótese de trabalho.
31
Mesmo sabendo que não como não recorrer a ele no estudo que desenvolvemos, este não é o objeto de
nossa pesquisa. Entendemos que em termos analíticos podemos proceder ao ―recorte‖ entre ―produção
artística mercantilizada‖ e estetização da mercadoria, na realidade, estes dois movimentos são partes da
―expressão cultural‖ do capitalismo tardio e estão interligados entre si.
32
Jameson (2004: 23) assinala, em relação à passagem do moderno para o pós-moderno que, ―a preparação
econômica do pós-modernismo, ou do capitalismo tardio, começou nos anos 50, depois que a falta de bens de
consumo e de peças de reposição da época da guerra tinha sido solucionada e novos produtos e novas
tecnologias (inclusive, é claro, a da mídia) puderam ser introduzidas‖. Falando ainda da medição entre
capitalismo tardio e sua lógica cultural Jameson (2004: 25. grifos do autor) acrescenta: ―(...) a expressão
capitalismo tardio traz embutida também a outra metade, a cultura, de meu título; essa expressão é não só uma
tradução quase literal da outra expressão, pós-modernismo, mas também seu índice temporal parece chamar
a atenção para mudanças na esfera do cotidiano e da cultura‖.
64
notar que, postulada a eliminação da natureza enquanto tal, Jameson leva-nos a interpretação
de que não haveria mais lugar para o estranhamento, portanto, para a alienação. Ele considera
como ―hipótese histórica mais geral: que conceitos como ansiedade e alienação (e as
experiências a que correspondem, como em O grito) não são mais possíveis no mundo do
pós-moderno. (...). Essa mudança na dinâmica da patologia cultural pode ser caracterizada
como aquela em que a alienação do sujeito é deslocada pela sua fragmentação‖ (2004: 42).
Jameson atribui à expressão cultural um poder de mudar a dinâmica da sociedade que
esta não tem, ao analisar, neste caso específico, a superação de temas (de uma determinada
estética), como a superação de relações que não se constituem nem se resolvem neste âmbito.
Senão vejamos o que diz Jameson (2004: 38) sobre a análise de O gritode Edvard Munch:
O grito certamente é uma expressão canônica dos grandes temas modernistas da alienação,
da anomia, da solidão, da fragmentação social e do isolamento um emblema programático
virtual do que se costuma chamar a era da ansiedade‖
33
.
Se enquanto temas, a alienação, a ansiedade, o isolamento fazem parte da fase anterior
do capitalismo, como sugere Jameson; a sua superação prática ainda não se concretizou, posto
que estas expressões, enquanto realidades, não estão circunscritas na lógica cultural do
capitalismo, mas advém da própria dinâmica de produção e reprodução do capital (que como
o próprio autor destaca, permanecem na contemporaneidade), que também incorpora sua
―lógica cultural‖, mas não se resume à ela. Entendemos a partir de Marx, que o estranhamento
não é um fenômeno da simples relação homem e natureza (stricto sesu), mas homem e
natureza, esta última enquanto comportando o próprio homem e, desta forma, suas relações
sociais diversas, como Marx deixa claro nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos.
Por outro lado, pensar a cultura como uma segunda natureza, a partir de alguns aportes
teóricos que Jameson apresenta, nos permite apreender o estranhamento do homem também
com esse mundo cultural que é sua expressão contemporânea, que é inteiramente humano
e, ao mesmo tempo lhe é estranho. Interessante ouvir Jameson (2004; 13/14) a respeito da
cultura nesta fase tardia do capitalismo:
De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais
importantes para se detectar o pós-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera (a
esfera da mercadoria) uma aculturação do Real imensa e historicamente original, um
33
A questão é que o próprio Jameson é insistente em demonstrar que a sua concepção de pós-modernismo, e é
isso que o diferencia de outras análises, não o considera como um estilo, nem como expressão de uma era pós-
industrial, mas como uma lógica cultural do capitalismo na sua fase tardia, portanto, parte da dinâmica do
próprio capitalismo. Desta forma, o autor analisa a superação destes temas (modernos) como expressão de sua
superação (negativa) real.
65
salto quântico no que Benjamim ainda denominava a ―estetização‖ da realidade (ele
achava que isso dava em fascismo, mas nós sabemos que é apenas divertido: uma
prodigiosa alegria diante da nova ordem, uma corrida às compras, nossas
―representações‖ tendendo a gerar um entusiasmo e uma mudança de humor não
necessariamente inspirado pelos próprios objetos representados). Assim, na cultura
pós-moderna
34
, a própria ―cultura‖ se tornou um produto, o mercado tornou-se seu
próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o
constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma
crítica a mercadoria e um esforço de forçá-la a se auto-transcender.
Quanto ao ―Pós-modernismo‖, em relação ao movimento descrito acima, Jameson
(Idem) considera como seu traço ―o consumo da própria produção de mercadorias como
processo‖, ou seja, ―O ‗estilo de vida‘ da superpotência tem, então, com o ‗fetichismo‘ da
mercadoria de Marx, a mesma relação que os mais adiantados monoteísmos têm com os
animismos primitivos ou com as mais rudimentares formas de idolatria, na verdade, qualquer
teoria sofisticada do pós-moderno deveria ter com o velho conceito de ‗indústria cultural‘ de
Adorno e Horkheimer uma relação semelhante à que a MTV ou os anúncios fractais têm com
os seriados de televisão dos anos 50‖. Para que a cultura fosse consumida como produto, foi
necessário que suas formas de expressão se transformassem e se adequassem às relações
mercantis e, portanto, produzidas de maneiras diferenciadas.
Apesar das polêmicas, utilizaremos nesta tese, algumas contribuições de Jameson
quanto à lógica cultural do capitalismo tardio e suas reflexões sobre a imagem como
expressão privilegiada desta lógica cultural.
As contribuições de Harvey
35
para pensarmos alguns elementos aqui discutidos, dizem
respeito à sua compreensão de uma nova experiência de espaço e tempo na
contemporaneidade.
Segundo Harvey (2005) a experiência do tempo e espaço experimentados na
contemporaneidade, em especial com a passagem do fordismo à acumulação flexível, se fez
sentir de maneira contundente também nas relações de troca e de consumo e para além destas,
34
Jameson (2004: 32) enfoca, como ele mesmo destaca, no Livro ―Pós-modernismo: a lógica cultural do
capitalismo tardio‖, os seguintes elementos que ele considera constitutivos do s-moderno: ―Uma nova falta
de profundidade, que se vê prolongada tanto na ‗teoria‘ contemporânea quanto em toda essa cultura da
imagem e do simulacro; um conseqüente enfraquecimento da historicidade, tanto em nossas relações com a
história pública quanto em nossas novas formas de temporalidade privada, cuja estrutura ‗esquizofrênica‘
(seguindo Lacan) vai determinar novos tipos de sintaxe e de relação sintagmática nas formas mais temporais
de arte; um novo tipo de matriz emocional básico que denominarei de ‗intensidades‘ -, que pode ser mais
bem entendido se nos voltarmos para as teorias mais antigas do sublime; a profunda relação constitutiva de
tudo isso com a nova tecnologia, que é uma das figuras de um novo sistema econômico mundial; e após um
breve relato das mutações pós-modernas na experiência vivenciada no espaço das construções, algumas
reflexões sobre a missão da arte política no novo e desconcertante espaço mundial do capitalismo tardio ou
multinacional‖.
35
Sobre a concepção deste autor sobre o que chama de ―condição pós-moderna‖ conferir – Harvey (2005).
66
como já destacamos, na maneira de pensar, sentir e agir atuais. Desta forma, os impactos deste
movimento tanto no domínio da produção quanto do incentivo ao consumo e no consumo
final das mercadorias, inserem-se no complexo de elementos do que estamos aqui
denominando de ―estetização da mercadoria‖. Para Harvey (2005: 258), no que diz respeito à
produção de mercadorias, o ―efeito primário‖ desta nova experiência de espaço e tempo foi a
ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e rápidos
e outras comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres, embalagens,
guardanapos, roupas etc.)‖. Estes dois elementos estão presentes, como o indicaremos de
forma mais específica mais adiante, também nas relações sociais diversas, portanto, por meio
destes ―mecanismos de aceleração do giro de bens no consumo‖, as pessoas também ―foram
forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência
instantânea‖ em suas próprias relações pessoais e cotidianas.
Harvey (2005 259/60) destaca ainda, nas suas análise sobre esta questão, o papel que a
publicidade passa a ter neste processo, assim, nos indica o autor que a publicidade a partir de
então não parte da idéia de informar ou promover no sentido comum, esta volta-se agora
para a manipulação dos desejos e gostos através de imagens que podem ou não ter relação
com o produto a ser vendido. Ao que nos remete a discussão sobre o alcance ideológico do
aparato que atualmente se encontra a disposição daqueles profissionais que aparentemente
têm o objetivo de incentivar o consumo de determinada mercadoria.
Para discutirmos as questões apontadas acima, partimos, do fetiche da mercadoria,
conforme o apresenta Marx, por entendermos que a ―crítica da estética da mercadoria‖ tem
sentido se elucidar a contraditoriedade da própria mercadoria e, também, a contradição
36
nela
refletida do próprio sistema. Este elemento é de fundamental importância em nossa análise,
pois nos permite não cair na armadilha do próprio fetiche, qual seja, ficar na superficialidade
dos fenômenos e creditar a esta o status de leitura fiel do real.
36
Heller (1998; 94/5) ao se referir ao que ela considera uma das ―concepções sobre contradição de Marx
destaca que: ―As antinomias que se expressam no capitalismo constituem as antinomias da produção de
mercadorias desenvolvidas. A estrutura da primeira parte do livro primeiro de O Capital (mercadoria-
dinheiro-capital) se baseia no desenvolvimento destas antinomias. A mercadoria é valor de uso e valor de
troca. Ambos constituem desde o início (da mercantilização do produto) antagonismos de caráter antinômicos,
a mercadoria não representa a unidade dos antagonismos, senão a forma em que estes podem atuar; a forma
mercadoria é o germe das antinomias do capitalismo, as contem em embrião‖.
67
3.1 A mercadoria forma particular dos bens na sociedade burguesa
“Vocês não reconhecerão mais as frutas pelo sabor‖.
(Brecht, Der Dreigroschenproze; In Haug, 1997).
A mercadoria, forma elementar da riqueza ―das sociedades onde rege a produção
capitalista‖, aparece aos nossos olhos como se se produzisse sozinha e como se fosse ―com
seus próprios pés‖ ao mercado. Ao -la observamos suas propriedades, seu valor de uso, as
características que lhes são atribuídas através de recursos ideológicos e seu preço, que lhe
parece tão intrínseco como as primeiras. A mediação que se estabelece entre a mercadoria e
sua produção é ―apagada‖, desaparece na circulação e no consumo.
As mercadorias, entretanto, não se fazem sozinhas, tampouco caminham com seus
próprios pés em direção ao mercado. Por outro lado, a produção das mercadorias na sociedade
capitalista, sua circulação e consumo acompanham o movimento dinâmico de reprodução do
próprio capitalismo (posto que são parte dele) e sofrem, através deste processo, mudanças
substantivas.
Não são as características físicas, palpáveis, perceptíveis das mercadorias que lhe
atribuem um determinado valor
37
. Mas, ao nos depararmos com elas, é essa aparência, essa
imediaticidade, que se mostra a nós, são as mercadorias por si só, sem passado, aparentemente
sem mediações com qualquer forma de relação social que nos saltam aos olhos e se
apresentam ao nosso alcance, ao alcance de quem as deseja e pode comprar.
Assim, ―a primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente
compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheia de sutilezas
metafísicas e argúcias teleológicas‖ (Marx; 1994: 79). Como não cabe ao comprador
ultrapassar a aparência daquilo que compra não lhe convém descobrir o segredo da
mercadoria: as mediações
38
entre produção, distribuição e consumo.
37
Referimo-nos aqui a determinação do valor segundo Marx e de como no mercado este valor aparece como se
fosse determinado pelas características das mercadorias e não pelo tempo de trabalho socialmente necessário
para produzi-las.
38
Mas ―o enigma da mercadoria‖ não está presente apenas quando com ela nos deparamos no mercado. Muitos
foram os que, ao estudá-la, não conseguiram ultrapassá-lo. A Economia Política, apesar de seus esforços, não
conseguiu desvendar os seus ―segredos‖. Smith e Ricardo perseguiram no decorrer de suas obras o objetivo de
construir um padrão de medida do valor da mercadoria. Ricardo avança ao considerar o trabalho como padrão
de medida do valor, entretanto, procura até o final de sua vida um ―padrão invariável de medida‖ (A respeito
ver: RICARDO, David. Valor absoluto e valor de troca. In Napoleoni, Claudio. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1991). Para os economistas clássicos o valor era externo à mercadoria. Por não apreenderem a diferença entre
trabalho concreto e trabalho abstrato consideravam o valor como categoria natural e eterna. Diferente dos
68
A mercadoria, para Marx, é um objeto externo ao homem, um objeto que deve
satisfazer suas necessidades, direta ou indiretamente, provenham elas ―do estômago ou da
fantasia‖. Nestes termos, é portadora de valor de uso e valor de troca
39
(substância e
quantidade de valor); esses dois fatores são decorrentes da mercadoria ser fruto de trabalho
humano; trabalho que possui duplo caráter: trabalho útil (concreto) e trabalho abstrato
40
.
Este duplo caráter do trabalho permite apreendermos a mercadoria pelo ângulo da
qualidade e da quantidade, ou da sua utilidade e da sua relação quantitativa com valores de
uso diferentes, pressupostos para qualquer relação de troca mercantil. De forma geral: ―Todo
trabalho é de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa
qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias‖ (Marx, 1994:
54). Além disso, temos que: ―Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de
trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e
concreto, produz valores de uso‖ (Idem).
O trabalho concreto, desta forma, confere à mercadoria o seu valor de uso e
corresponde ao conjunto diferenciado de trabalhos úteis, nestes termos existiu nas diferentes
sociedades. O trabalho abstrato, por outro lado, surge com as sociedades produtoras de
mercadorias, é ele que imprime na mercadoria o seu valor. Valor este que ―representa trabalho
humano simplesmente, dispêndio de trabalho humano em geral‖ (id: 51) e é determinado pelo
tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso.
41
Clássicos (mas a partir deles), Marx busca a ―essência da mercadoria‖ e considera o valor como realidade
social e, portanto, histórica.
39
Marx estabelece, ao analisar a mercadoria, a distinção entre valor de troca e valor. O primeiro decorre de uma
relação entre dois valores de uso diferentes, refere-se, portanto, a uma relação de quantidades entre qualidades
diferentes. O segundo é a cristalização do trabalho humano, é uma realidade social e não um padrão de
medida, como consideravam os clássicos. O valor de troca, assim, se constitui na forma do valor, no veículo
do valor, é através dele que trabalhos socialmente necessários à produção de determinadas mercadorias,
expressos em valores de usos diferentes podem ser permutados entre si. A distinção entre valor e valor de troca
e entre valor e o preço torna possível que coisas que não tenham um valor (pois não são frutos de trabalho
humano) possam ter um valor de troca e assim serem consideradas como mercadorias.
40
Esta distinção é considerada por Marx fundamental para entender não o processo de trabalho, como as
relações de trabalho no modo de produção capitalista. A Economia Clássica apesar de considerar o valor de
troca da mercadoria como decorrente do trabalho, não conseguia apreender o duplo caráter do trabalho
(concreto e abstrato) materializado na mercadoria, nem tampouco, como assinalamos, a diferença entre
valor de troca e valor.
41
Marx destaca que o tempo de trabalho necessário muda com qualquer variação na produtividade, tal variação
pode ser determinada pela destreza média dos trabalhadores, desenvolvimento da ciência e sua aplicação
tecnológica; organização social, etc. Entretanto, é importante destacar que a produtividade altera o valor, na
medida em que altera o tempo de trabalho necessário para a produção deste. Marx (Apud ROSDOLSKY;
2001: 98) afirma que: o que determina o valor não é o tempo de trabalho que foi incorporado nos produtos,
mas o tempo de trabalho necessário para produzi-los hoje. (...) segundo a lei econômica geral de que os
custos de produção diminuem constantemente e o trabalho vivo se torna cada vez mais produtivo [...] uma
69
Marx (1994: 47) destaca ainda que; ―uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor. É
o que sucede quando sua utilidade para o ser humano não decorre do trabalho. Ex: o ar, a terra
virgem (...)‖, além disso, ―uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser
mercadoria‖. Entretanto, para ser mercadoria um determinado bem tem que ter valor de uso e
valor de troca.
O que sabemos da mercadoria quando a vemos à nossa ―disposição‖ no mercado? Que
atende nossas necessidades (provenham elas do estômago ou da fantasia) e que tem um preço.
E este último nos parece uma característica tão natural quanto cremos ser suas propriedades
físicas. Esta naturalização é cada vez mais reforçada por recursos publicitários como forma de
garantir que a mercantilização se mostre como a única forma possível de troca em qualquer
sociedade e, em qualquer relação social, para além das econômicas. O preço, desta forma,
aparece aos olhos do comprador, semelhante à qualidade de vestir de uma roupa; de saciar a
fome de um alimento ou de calçar de um sapato. O preço, ou melhor, o dinheiro é a única
mediação que se estabelece entre a mercadoria e o seu comprador. E a afirmação de que tudo
tem seu preço(incluindo aqui pessoas e relações) é a expressão ideológica do espaço que a
mercantilização alcança na sociedade capitalista.
Assim, a relação de compra e venda apaga todos os vestígios de quaisquer outras
relações, inclusive, as de produção e aparece como uma relação justa e de equalização de
diferenças e possíveis ―desníveis‖ no mercado.
depreciação constante seria o destino inevitável desse dinheiro trabalho de ouro.‖ Marx refere-se aqui a
inviabilidade da proposta do dinheiro-trabalho defendida por Proudhon e seus seguidores. Este aspecto é
importante, pois torna claro o caráter social e médio do valor, bem como a existência da variável tempo,
quando se fala de trabalho socialmente necessário, sem a qual é incompleto o entendimento desta categoria.
Marx nos um exemplo que ajuda a elucidar esta questão, qual seja: o conceito de capital constante não
exclui nenhuma alteração de valor em suas partes componentes. Suponha que o quilo do algodão custe hoje 6
pence e amanhã, em virtude de queda na colheita, suba para 1 xelim. O algodão anterior que continua a ser
elaborado foi comprado por seis pence, mas acrescenta agora ao produto o valor de um xelim. E o algodão
que está fiado e que talvez já esteja circulando no mercado sob a forma de fio, acrescenta também ao produto
o dobro do seu valor original. Verifica-se entretanto, que essa variação de valor não depende do acréscimo de
valor que a fração incorpora ao algodão. Se o algodão anterior não tivesse entrado no processo de trabalho,
poderia ser vendido agora por 1 xelim, em vez de 6 pence. Além disso quanto menos processos de trabalhos
percorrer, mais seguro é esse resultado. É lei da especulação, nessas alterações de valor, jogar com a matéria
prima em sua forma menos elaborada, preferir para isso fio ao tecido e algodão ao fio. A alteração do valor
se origina no processo que produz algodão e não no processo em que funciona como meio de produção, como
capital constante. O valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho que contém, mas
essa quantidade é socialmente determinada. Se muda o tempo de trabalho socialmente exigido para sua
produção e a mesma quantidade de algodão representa em colheitas desfavoráveis maior quantidade de
trabalho que nas favoráveis, - verifica-se uma reação sobre a mercadoria antiga, que não passa de exemplar
isolado de sua espécie, cujo valor sempre se mede pelo trabalho socialmente necessário, isto é, pelo trabalho
necessário nas condições sociais presentes”. (Marx; 1994: 235. Grifos do autor). Ainda a este respeito
conferir Marx (1985: 42).
70
É desta forma que na sociedade capitalista as relações entre proprietários e não
proprietários dos meios de produção aparecem como relações entre os produtores de
mercadorias e, portanto, parecem se realizar através das mercadorias e não entre eles. O
objeto toma o lugar do sujeito, o representa, o substitui e assume, por conseguinte, as
particularidades do próprio sujeito. Em um estágio mais avançado do capitalismo (no atual) o
sujeito se dilui no objeto e o objeto no sujeito de tal forma que é difícil diferenciá-los. Este
fenômeno é explícito quando tratamos de ―garotos (as) propaganda‖ de grandes corporações.
As mediações que se estabelecem no processo de produção e circulação das mercadorias não
se explicitam e a mediação do dinheiro é a única que prevalece.
Quando a forma mercadoria passa a ser preponderante em todos os espaços da
sociedade; quando não só coisas, mas inclusive pessoas e relações adquirem o status de
mercadoria, o dinheiro passa a mediar, praticamente, todas as relações sociais e o fetiche se
―espraia‖ por recantos até então ―imunes‖ a seu ―poder‖, assumindo formas históricas muito
particulares.
Desta forma, entender como se processa o fetiche da mercadoria passa a ser
fundamental para entender como se processam as mediações que transformam relações
sociais diversas em relações mercantis. Partimos deste entendimento para desenvolver o
presente capítulo.
71
3.2 Decifra-me ou te devoro: o fetiche da mercadoria e do dinheiro na
contemporaneidade
3.2.1 O fetiche da mercadoria aportes preliminares para o debate contemporâneo
Coisas são só coisas
servem só pra tropeçar
têm seu brilho no começo
mas se viro pelo avesso
são fardo pra carregar.
Chico César
Que mediações se estabelecem entre a mercadoria e sua produção? De onde provém
seu caráter misterioso? Qual a origem do ―poder gravitacional‖ que ela estabelece com seus
consumidores ou apenas com seus ―admiradores‖?
É certo que este ―mistério‖, como foi destacado no início deste capítulo, provém da
própria forma mercadoria. Esse fetichismo do ―mundo da mercadoria‖, segundo Marx (1994)
é decorrente ―do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias‖.
Em outros termos: ―A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as
características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características
materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto a
relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la
como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho‖. Ou
seja: ―Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas
sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. (...) uma relação social
definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas‖. (Marx, 1994: 81).
A dinâmica e funcionalidade deste processo se mostram mais evidentes (e necessárias)
na atual fase do capitalismo, quando até recursos psicológicos (através da realização de
diversas pesquisas e experimentos, antes mesmo da produção das mercadorias) são utilizados
para garantir a realização do valor produzido. Em reportagem de novembro/2007 a revista ―Le
Mond Diplomatique Brasil‖, Marie Bénilde, na matéria ―Neurociências a serviço do
mercado‖, discute como a investigação da atividade cerebral, demonstrando as áreas que
72
devem ser estimuladas para tornar um produto altamente desejável, vem sendo utilizada cada
vez mais por centenas de empresas como um conhecimento para vender mais
42
.
Entretanto, a mercadoria, para ser vendida, para estar disponível no mercado, precisa
ser produzida e, antes, produzida sob determinadas condições. No sistema capitalista é
necessário, para que se produza mercadoria, que o próprio trabalhador se produza enquanto
mercadoria, que esteja ―disponível‖ no mercado de força de trabalho àquele que disponha de
meios de produção para fazê-lo produzir, que seja ―livre‖ para vender sua força de trabalho e
não disponha de nenhuma ―mercadoria em que encarne seu trabalho‖ para vender, além da
própria força de trabalho, bem como, esteja desprovido dos meios de subsistência.
Em outros termos, torna-se necessário, para ―transformar dinheiro em capital‖ que o
possuidor do dinheiro (possuidor dos meios de produção) encontre no mercado uma
mercadoria especial, a ―única mercadoria que ao ser consumida gere valor (Marx; 1994;
189), a mercadoria força de trabalho.
O processo de consolidação da sociedade produtora de mercadoria, desta forma, teve
como pressuposto concreto a destituição de amplas camadas da sociedade dos meios de
produção necessários à sua subsistência. A violência que caracterizou este processo de
acumulação primitiva deu mostras de que o capital recorreria a estes meios de forma cada vez
mais intensa para garantir sua produção e reprodução.
A forma capitalista de produção de mercadorias exige que o capital assuma o
controle
43
e o comando do processo de trabalho, o que implicou historicamente num processo
violento de apropriação de saberes, de tempos e de espaços dos trabalhadores. Por outro lado,
atualmente é cada vez mais necessário um controle também sobre o consumo das mercadorias
produzidas, como instrumento de incentivar a criação de novas necessidades. O complexo de
elementos utilizados para incentivar a criação destas necessidades é uma forma de exercer
este controle.
42
Destacamos que o ―uso‖ e a divulgação cada vez maior destes ―processos‖ pode tanto dizer respeito ao que de
fato enunciam ou não passar de publicidade, parte do fetiche criado em torno do poder da ―ciência e da
tecnologia‖, de uma forma ou de outra acabam por provocar um efeito na venda e consumo de mercadorias.
43
O controle assume na sociedade capitalista dimensões que vão muito além do processo de produção, atingindo
todos os níveis da vida social e inclusive a subjetividade dos indivíduos. Neste caso, são instrumentos
políticos, ideológicos e até militares que são utilizados como forma de dá concreticidade a esta que é, não uma
simples ação capitalista mas, uma necessidade vital do seu processo de reprodução. Birman (2001) fala de dois
tipos de controle contemporâneos de forte impacto nas atuais formas de subjetivação, quais sejam: o controle
através da disseminação do medo e o controle pelo uso de psicofármacos. Para o autor citado no primeiro caso,
a instauração do medo abre a possibilidade ―de novas intervenções políticas no social, pela mediação do
discurso médico‖. No segundo, a medicalização crescente da população funciona como forma de silenciar as
contradições e conflitos e anestesiar os indivíduos.
73
Em relação ao controle do processo de trabalho, este é correspondente aos diferentes
modos de organizar a produção pelo capitalista, ou seja, de ―organizar‖ o processo de
extração da mais valia.
O controle do capital sobre o trabalho só foi possível quando o primeiro reuniu
trabalhadores no mesmo local de trabalho, de modo que seu tempo de trabalho pudesse ser
imposto e controlado, fixando-se a ―jornada de trabalho coletiva‖. A reunião de trabalhadores
sobre o mesmo teto e a atribuição de atividades do processo de trabalho a trabalhadores
diferentes são fatores do mesmo processo. Para Marx: ―Dentro do processo de produção
conquistou o capital o comando sobre o trabalho sobre a forma de trabalho em
funcionamento, ou seja, sobre o próprio trabalhador. O capital personificado, o capitalista,
cuida de que o trabalhador realize sua tarefa com esmero e com o grau adequado de
intensidade‖ (Marx, 1994: 354).
Entretanto, as formas de controle e comando do capital sobre o trabalho no processo
de produção modificaram-se de acordo com as mudanças por que passou a própria produção
de mercadorias, impulsionada, dentre outras coisas, pelas mudanças constantes na sua base
técnico-material, com vista a sua adequação ao processo de valorização
44
.
O trabalho organizado com base na cooperação
45
e sobre o controle do capital é o
ponto de partida da produção capitalista, mas é com a grande indústria
46
que o capital se
consolida como modo dominante de produção de mercadorias.
44
Marx destaca que, a forma de organização da base técnica possibilita a reorganização da forma de exploração.
Este aspecto é claro em Marx quando analisa a introdução da maquinaria no processo produtivo, e de como
esta possibilita a extração da mais-valia relativa. Entretanto, o desencadeamento deste processo e sua direção e
intensidade são decorrentes da valorização do valor. Em outras palavras se a introdução da maquinaria não
possibilitasse a ampliação da taxa de exploração do trabalho, provavelmente jamais seria introduzida. Isto é
válido para qualquer progresso técnico ou forma de organização do processo produtivo sob bases capitalistas.
Estes elementos podem ser observados na análise que Marx faz da cooperação, manufatura e grande indústria,
em ―O capital‖.
45
Marx considera a cooperação, organizada sob o comando do capital, como o ponto de partida da produção
capitalista. A cooperação, para ele, consiste na; atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no
mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadorias
sob o comando do mesmo capitalista (...)” (Marx, 1994: 370). É importante destacar que, a cooperação não
implicou em alteração no processo de trabalho, o capital se assenta sob uma base técnica já existente,
exercendo, contudo, um comando ―formal‖ sobre o trabalho o que lhe permite a apropriação do produto do
trabalho. Neste momento tem-se, como aspecto importante, o que podemos chamar de objetivação do trabalho
em trabalho social médio; criando simultaneamente o trabalho coletivo, ou uma força produtiva coletiva,
resultado da cooperação de vários trabalhadores. Além deste aspecto a economia dos meios de produção, e a
chamada jornada coletiva, constituem-se em ganhos importantes para o capital, além da apropriação direta do
tempo de trabalho excedente.
46
Com a grande indústria o capital pode ampliar consideravelmente tanto a subordinação do trabalho quanto a
produção de mais valor. Marx referindo-se ao emprego da maquinaria diz que: “Esse emprego, como qualquer
outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte
74
Com a reunião sobre o mesmo teto de uma quantidade maior de trabalhadores, surge a
necessidade de criação de meios de controle e comando mais aperfeiçoados, donde se
constitui a gerência científica
47
, como resposta a esta demanda, tendo como principal objetivo
o controle direto sobre o trabalhador.
Observamos que, com o processo de divisão parcelada do trabalho, desenvolvido,
principalmente, com o capitalismo industrial e posteriormente com a gerência científica, o
controle do processo de trabalho passa das mãos do trabalhador para um grupo organizado de
funcionários dentro da indústria a serviço do capital. Enquanto o trabalhador detinha o
controle do processo de trabalho ele tinha um controle relativo do seu tempo, influenciando
sobre a quantidade de trabalho que seria incorporada ao produto. Quando o capitalista passa a
deter esse controle, não medirá esforços em determinar tal quantidade, ou seja, em (...)
realizar plenamente o potencial inerente à força de trabalho” (Braverman, 1987: 94).
Taylorismo e fordismo passam a ser a base de um processo produtivo que passa a
vigorar na indústria capitalista, a partir do final do século XIX e que tem o objetivo central de
aumentar radicalmente a produtividade do trabalho. O fordismo, entretanto, foi muito mais
que referência e base do processo de produção de mercadorias, Harvey (2005: 121) destaca a
despeito do surgimento do fordismo que:
A separação entre gerência, concepção, controle e execução (e tudo o que isso
significava em termos de relações sociais hierárquicas e de desabilitação dentro do
processo de trabalho) também já estava muito avançada em muitas indústrias. O que
havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do
taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que a produção de massa
significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho,
uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,
modernista e populista.
do dia do trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele
gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valia.” (Marx, 1994: 424).
47
A gerência científica se origina dentro do capitalismo industrial e tem em Taylor seu maior expoente. É
importante destacarmos que a gerência do trabalho (do ―trabalho‖ e não científica), existia antes dos estudos
desenvolvidos por Taylor, mesmo que de forma rudimentar, mas é com Taylor que este controle passa a ser
sistemático. Assim: “O taylorismo se implantou numa guerra aberta e declarada. Mediante a estandardização
forçada e a direção minuciosa, os capatazes impuseram a nova modalidade de trabalho repetitivo e
designaram as tarefas segundo as ordens patronais. Os cronômetros se instalaram sobre os ombros dos
operários qualificados para descobrir seus tempos e movimentos. Com estes índices, logo se elaboraram
tábuas de produção sujeitas a ritmos muito mais intensos. Através do roubo explícito do saber artesanal, o
taylorismo transferiu, em bloco, o conhecimento das operações e os projetos à gerência. A „organização
científica do trabalho‟ (OCT) desenvolveu-se inicialmente nas indústrias metalúrgicas e automobilísticas,
onde o peso das capacidades artesanais era maior” (Katz, 1995: 14). Conferir também Braverman (1987).
75
Corresponde a este modelo de produção de mercadorias uma forma específica de
intervenção estatal, que mesmo sendo variável entre os diversos países (de capitalismo
avançado) tinham em comum a criação de bases para ―um crescimento econômico estável
como um aumento dos padrões materiais de vida através de uma combinação de estado do
bem-estar social, administração econômica keynesiana e controle de relações de salários‖
(Harvey; 2005: 130)
48
.
Mesmo havendo ―desigualdades‖ na disseminação do fordismo/keynesianismo e de
nem todos serem atingidos pelos seus benecios, ―o núcleo essencial do regime fordista
manteve-se firme ao menos até 1973, e, no processo, até conseguiu manter a expansão do
período pós-guerra que favorecia o trabalho sindicalizado e, em alguma medida, estendia os
‗benefícios‘ da produção e do consumo de massa de modo significativo intacta‖. (Harvey;
2005: 134). Desta forma, ―Os padrões materiais de vida para a massa da população nos países
capitalistas avançados se elevaram e um ambiente relativamente estável para os lucros
corporativos prevalecia. quando a aguda recessão de 1973 abalou esse quadro, um
processo de transição rápido, mas ainda não bem entendido, do regime de acumulação teve
início‖. (Idem).
Assim, a partir da década de 1970 inaugura-se um período de reestruturação
econômica e de ―reajustamento social e político‖ com ―uma série de novas experiências no
domínio da organização industrial e da vida social e política‖. Para Harvey (2005) estas
experiências apresentavam-se como os primeiros ímpetos de passagem para um regime de
acumulação novo ―associado com um sistema de regulamentação política e social bem
distinta‖ que ele vai chamar de ―acumulação flexível‖
49
.
Portanto, a forma de controle e comando do capital sobre o trabalho muda com a
―acumulação flexível‖ e a flexibilidade e mobilidade nos tempos e espaços do capital
permitem cada vez mais que ―os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do
trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer maneira enfraquecida por dois surtos
48
Harvey (2005: 132) destaca ainda que ―o fordismo se disseminou desigualmente, à medida que cada Estado
procurava seu próprio modo de administração das relações de trabalho, da política monetária e fiscal, das
estratégias de bem-estar e de investimento público, limitados internamente apenas pela situação das relaçoes
de classe e, externamente, somente pela sua posição hierárquica na economia mundial e pela taxa de cambio
fixada com base no dólar. Assim, a expansão internacional do fordismo ocorreu numa conjuntura particular de
regulamentação político-econômica mundial e uma configuração geopolítica em que os Estados Unidos
dominavam por meio de um sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder‖.
49
Para Harvey (2005: 140) a acumulação flexível ―se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos
mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracterizando-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e,
sobretudo taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional‖.
76
selvagens de deflação, força que viu o desemprego aumentar nos países capitalistas avançados
(salvo, talvez, no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra‖. (Harvey; 2005: 140/1).
Cabe ressaltar que as mudanças ocorridas no processo de organização da produção e,
em escala maior, no processo de acumulação capitalista‖ longe de superarem suas
contradições as tornaram mais acirradas, conforme apontamos, a partir de Mészáros (2002)
na introdução desta tese.
Como discutíamos no inicio deste capítulo, o fetichismo da mercadoria esconde todas
estas mediações necessárias à sua produção e faz parecer que a relação de trocas entre livres
produtores é a única que se estabelece como relação mercantil. O trabalhador aparece como
livre para vender a sua força de trabalho e o capitalista como aquele que detém o dinheiro
para comprá-la e ambos negociam esta mercadoria especial, como qualquer outra mercadoria.
Em relação à venda da força de trabalho é necessário que o trabalhador o faça em
definitivo, visto que: ―A continuidade dessa relação exige que o possuidor da força de
trabalho venda-a sempre por tempo determinado, pois se a vende de uma vez por todas,
vender-sea si mesmo, transformar-sede homem livre em escravo, de um vendedor de
mercadoria em mercadoria‖. (Marx; 1994: 188). Entretanto, mesmo não vendendo sua força
de trabalho em definitivo, o trabalhador está longe de ser livre em uma acepção mais ampla.
As mediações necessárias à produção de mercadorias são escondidas‖ com o
fetichismo, assim, na esfera da circulação, o que se aparece são relações fetichizadas de
liberdade de compra e venda. Portanto, no campo da circulação de mercadorias, na expressão
aparente do sistema, todos parecem livres para comprar e vender e, potencialmente capazes de
consumir. Neste sentido, o discurso de oportunidades iguais esconde as diferenças de classe e
a impossibilidade de extensão do ―modo de vida burguês‖, reforçando o individualismo
liberal e a responsabilização de cada um pelas conquistas‖ sociais e econômicas que obtiver
ao longo da vida.
Quando nos deparamos com uma mercadoria, não podemos ver nada além da
mercadoria, não podemos ver nela de imediato refletida a quantidade de horas gasta na sua
produção, a qualidade do trabalho empregado, a condição na qual a produção se realizou, a
sociabilidade dos trabalhadores, etc. Ninguém, quando compra um produto, o observa por
esse ângulo, e se o fizesse não encontraria respostas, as mercadorias não trazem embutida
uma etiqueta que esclareça sua origem e forma de produção, trazem o seu preço e sua marca.
O fetichismo da mercadoria está em que, essa imediaticidade, a aparência, a mercadoria
77
supostamente sem mediações, se mostre como essência e o que é histórico e social apareça
como natural.
O fetiche, portanto, seja da mercadoria ou qualquer outro, não é um modo de ver as
coisas no capitalismo é a forma social das relações mercantis se produzirem e mostrarem na
sociedade capitalista, a expressão fenomênica do capitalismo. Nesta sociedade não como
ser de outra forma.
3.2.2 O fetiche do dinheiro algumas considerações fundamentais
Dinheiro é um pedaço de papel
(...)
Depois de queimar dinheiro vai pro céu
Como fumaça
Também é fácil rasgar
Como as cartas e fotografias
Aí não se usa mais
Porque dinheiro é um pedaço de papel
(...)
Um pedaço de papel é um dinheiro
Dinheiro é um pedaço de papel
Dinheiro tem valor quando se gasta
Um pedaço de papel é um pedaço de papel
Arnaldo Antunes e Jorge Benjor
Nas palavras de Marx o fetiche se completa na sociedade capitalista na sua forma D-
D‘. O dinheiro gerando dinheiro é o fetiche máximo da sociedade do capital. Tal fetiche
consiste, em que a forma aparencial D-D‘ apague as mediações necessárias à sua própria
existência
50
.
Quanto ao dinheiro, podemos dizer que, decerto, não é uma forma que se desnuda à
primeira vista, como não o é nenhuma ―forma social‖ na sociedade onde rege a produção
50
O capital que rende juros aparece como a forma fetichizada por excelência do dinheiro. Marx (1994: 184/5)
referindo-se a esta forma diz que: ―No capital usurário, a forma D-M-D‘, reduz a dois extremos sem termo
médio, D-D‘, dinheiro que se troca por mais dinheiro, forma que contraria a natureza do dinheiro e por isso
inexplicável do ponto de vista da troca de mercadorias‖. Nestes termos, Marx (1982: 193. Grifos do autor)
destaca que: ―O juro, diferenciado do lucro, representa o valor da mera propriedade do capital, isto é,
transforma a propriedade de dinheiro em si [soma de valor, mercadoria seja ela qual for] em propriedade do
capital e, portanto, mercadoria ou dinheiro para si, em valor que se valoriza a si mesmo‖. O fetiche do capital-
dinheiro consiste em considerá-lo valor que gera valor; corresponde a dar autonomia a este, desvinculando-o
da esfera produtiva e considerando-o não como derivado desta, mas como autônomo e comandando-a, o
fetichismo do capital consiste ―(...) não na ilusão de que o capital também é uma fonte autônoma de
produção de valor, mas principalmente em seu poder efetivo de subordinar o trabalho e as condições de sua
autonomização, crescendo e expandindo sua dominação às várias esferas da vida econômica.‖ (Grespan; 1999:
125).
78
capitalista. Desvendá-lo, implica um desvelamento das próprias relações que engendraram e
dão substancialidade à sociedade do capital. Quando nos afastamos desse movimento, quando
nos aproximamos da pura especulação como meio para descortinar as origens e funções do
dinheiro, quanto mais o consideramos como ―ente sobrenatural‖ ou como forma natural da
sociedade, como valor em si, mais nos emaranhamos no seu fetiche.
Diante dessa forma ―misteriosa‖, que parece destronar o próprio Deus
51
e ajudar os
homens a construírem impérios, que ―corrompe os corações‖ e ―força os contrários a se
abraçarem‖; cabe a pergunta - de onde vem esse estranho ―poder‖, já descrito por Marx e com
peculiar sutileza, por Shakespeare e Goethe, que provoca tanto fascínio aos homens? Por que
ele esconde as relações de exploração do trabalho e assume essa forma fantasmagórica de
valor em si, o que Marx chamou de fetichismo do dinheiro?
São poucas as atividades que atualmente podemos realizar sem a mediação do
dinheiro. É patente que, sem ele, não realizaríamos a complexidade de relações da sociedade
capitalista. Ninguém questiona nas suas atividades cotidianas de onde vem o dinheiro. Claro
está que na cotidianidade não caibam indagações como estas. Nossas relações cotidianas
seriam muito complicadas se tivéssemos que estabelecer todas as mediações entre o dinheiro e
sua origem a cada vez que fizéssemos uso dele.
Se por um lado, não nos questionamos qual a origem do dinheiro, por outro, todos
sabem do seu ―poder‖. Ao nos deparamos com o dinheiro é isso que sabemos: que com ele
podemos adquirir o que desejamos, podemos transmutar o ter em ser; podemos ser o que
temos, ou ter o que não somos. A mediação do dinheiro (a necessidade básica e universal
criada pelo capitalismo) cria a possibilidade de usufruto do que jamais pode ser realizado de
fato, mas esta possibilidade atribui poder a seu detentor.
O dinheiro é uma das formas mais enigmáticas e que melhor representa as relações
mercantis. De certo, nos é difícil imaginar o complexo mundo de trocas sem o seu uso; seja
porque nos encontramos inseridos nele e praticamente todas as nossas atividades, das mais
simples às mais complexas, são mediadas pelo dinheiro e, portanto, acreditamos não ser
possível prescindir dele; seja porque nos custa imaginar relações onde este não se imponha
como necessidade mediadora
52
.
51
Vide a mercantilização que atravessa as instituições religiosas, só para ficarmos em um exemplo.
52
Esta constatação tem apresentado ultimamente algumas exceções, como, por exemplo, os chamados clubes de
trocas, locais onde produtores e consumidores trocam mercadorias fazendo circular moedas alternativas; como
vales, cupons ou operações de débito e crédito. Estas atividades, segundo o ―Estado de São Paulo‖ (16 de
79
Por outro lado, o ―fascínio‖ que o dinheiro provoca no homem, bem como o ―lugar‖
que ocupa nas sociedades fundadas nas relações mercantis e, em especial, na sociedade
capitalista, levou pesquisadores e estudiosos a buscarem conhecer sua origem e seu uso como
―mediador universal‖. Entender de onde vem o dinheiro nos ajuda a compreender a
possibilidade de prescindirmos dele.
O dinheiro não existiu desde sempre, apareceu em um determinado período histórico,
quando o seu uso, sua mediação, foi necessária para o desenvolvimento de determinadas
sociedades. Entretanto, significativas diferenciações quando se trata de explicar sua
origem
53
.
Para Marx, não é possível entender o dinheiro e suas funções
54
, sem entender a forma
simples de produção de mercadorias. Bem como, é a partir da gênese do dinheiro
55
que se
torna possível desvendar o enigma que reveste as concepções que a economia burguesa tem
sobre ele.
março de 2003) movimentavam à época (2003) US$ 10 bilhões por ano no mundo, desses, quase 8 bilhões se
referiam às trocas comercias. Estes dados, entretanto, não fazem com que estas atividades deixem de ser uma
exceção.
53
Rosdolsky (2001: 123), comparando a concepção de Marx à outras, incluindo a da Economia Clássica, sobre a
origem do dinheiro diz: Marx, ao contrário, diferencia claramente a essência do dinheiro, de um lado, e os
serviços que ele, por suas peculiaridades, é capaz de prestar”. Grespan (1999: 69) destaca que: “A troca é
enfocada em O Capital, assim, de um duplo ponto-de-vista: como equação entre os valores de mesma
grandeza, como fazia tradicionalmente a Economia Política; e como relação entre duas mercadorias, que
desempenham, cada qual, um papel diferente na chamada „forma-valor simples‟...‖. A troca, por sua vez,
pressupõe que os trabalhos sejam desenvolvidos de forma privada.
54
A partir da forma geral do valor (Marx, 1994) Marx deduz as funções de medida do valor e de meio de
circulação do dinheiro. Além destas funções, o dinheiro serve como meio de entesouramento; reserva de valor,
meio de pagamento e como dinheiro universal. Cabe ressaltar que: ―A análise do dinheiro no capitalismo não
pode consistir na aplicação direta dos conceitos referentes às suas formas e funções na circulação simples,
propostas por Marx no Livro I de O Capital, devido à dominância da relação capital sobre a relação-dinheiro.
Dois aspectos principais devem ser considerados: em primeiro lugar, as condições em que se realiza a
circulação das mercadorias alteram-se em aspectos decisivos como resultado da dominância do capital sobre o
dinheiro, o que se pode sintetizar dizendo que o sistema de crédito substitui o sistema monetário, alterando o
modo pelo qual o dinheiro realiza as suas funções e as formas sob as quais as realiza; em segundo lugar, o fato
de que o dinheiro aparece sob duas roupagens diferentes no capitalismo, por um lado como simples dinheiro, e
por outro lado como forma do capital. (Germer; 1997: 118. Grifos do autor).‖
55
Historicamente observamos que, os metais preciosos assumiram em diferentes países a forma de equivalente
geral. Smith destaca que, inicialmente, os metais não eram cunhados e não tinham gravação, o que apresentou
alguns inconvenientes quanto a pesagem e a verificação da autenticidade ou qualidade do metal. Uma maneira
encontrada pelos países para resolver esse inconveniente foi, ―fazer uma gravação oficial naquelas
determinadas quantidades de metal que se usavam comumente para comprar mercadorias‖, ou seja, ―o
inconveniente e a dificuldade de pesar esses metais com exatidão deram origem à instituição de moedas, cuja
gravação, cobrindo inteiramente os dois lados da peça e às vezes também as extremidades, visava a garantir,
não somente o quilate, mas também o peso do metal (Smith; 1985: 59/60). Como os metais inicialmente
tinham no peso a expressão do seu valor, cada vez que alguém desejasse adquirir determinada mercadoria; o
ouro, por exemplo, utilizado na troca deveria ser pesado e através de um processo não tão simples, deveria ser
verificada sua qualidade, se realmente correspondia ao que dizia seu possuidor.
80
Marx considera o dinheiro, na sua origem, como uma mercadoria
56
, não uma simples
mercadoria, mas uma mercadoria cujo valor de uso é ser valor de troca universal. Entretanto,
se o dinheiro tem na sua origem a forma de mercadoria, Marx destaca que a expressão deste
enquanto tal é uma forma histórica só possível por ser o dinheiro uma construção social.
O entendimento do dinheiro como ―forma social‖ é o pressuposto para entendermos
seu fetiche. Nestes termos, é importante destacarmos a relação de fetiche e de poder que
permeia o surgimento do dinheiro, para além das relações econômicas propriamente ditas.
Quanto a isto, observa-se que:
O dinheiro surge, por conseqüência, como um poder disruptivo em relação ao
indivíduo e aos laços sociais, que pretendem ser entidades subsistentes. Muda a
fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o
vício em virtude, o servo em senhor, o senhor em servo, a estupidez em inteligência, a
inteligência em estupidez. (...) Como conceito de valor existente e ativo, uma vez que
o dinheiro confunde e permuta todas as coisas, é a confusão e a transposição universal
de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a transposição de todas
as qualidades naturais e humanas. (...) É impetuoso quem pode comprar a coragem,
ainda que seja covarde. Porque o dinheiro não se permuta com uma determinada
qualidade, com uma coisa particular, com uma faculdade humana específica, mas com
todo o mundo objetivo humano e natural, da mesma maneira do ponto de vista do
seu possuidor permuta toda a qualidade e todo o objeto por qualquer outro mesmo
que sejam entre si contraditórios; é a confraternização de coisas incompatíveis; força
os contrários a abraçar-se. (Marx; 2001: 170/171. Grifos do autor).
Se o dinheiro surge como essa força disruptiva na sociedade ao analisarmos suas
funções, observamos como desempenhou papel social determinante na mediação das relações
mercantis, fundamentais para o surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista.
O dinheiro é na sociedade capitalista a unidade mediadora por excelência (seja na sua
forma de dinheiro, seja enquanto capital), é através dele que os homens passam a estabelecer
suas mais diversas relações, uma vez que quase tudo se torna passível de compra e venda. No
56
A partir, especialmente, da década de 1970, com a queda do chamado padrão-ouro, surge de forma mais
acentuada, o debate sobre a materialidade do dinheiro e dentro deste debate o questionamento da chamada
―Teoria do dinheiro‖ de Marx como referencial de compreensão da origem e funções do dinheiro nas
sociedades atuais. Neste sentido, as discussões teóricas são formuladas na direção de considerarem o dinheiro
ou como forma imaterial do valor (cf. Corazza, 1998) ou como mercadoria (cf. Germer, 1997). No debate
sobre a ―desmaterialização‖ do dinheiro, o argumento de que formas não materiais poderiam desempenhar as
demais funções do dinheiro, mas que a função de medida do valor pode ser desempenhada por uma
mercadoria, no caso o ouro, é usado pelos que defendem que o dinheiro ainda é uma mercadoria, nos termos
de Marx. Aos defensores da ―desmaterialização do dinheiro (também com base em Marx) a essência que
define a natureza do dinheiro não é sua materialidade, mas sua capacidade de expressar valor. A respeito do
debate cf. Borba (1982); Germer (1997, 1999, 2000), Corazza (2001), dentre outros. Atualmente com as
formas desenvolvidas do dinheiro, tanto as utilizadas em transações comerciais entre empresas capitalistas,
entre Bancos e entre países, como as que utilizamos comumente, como os cartões de crédito, os cheques, os
débitos automáticos, carecem de uma discussão mais profunda do seu caráter de mercadoria e da determinação
do seu valor de troca.
81
capitalismo, o dinheiro transforma-se em capital para completar seu ciclo de reprodução. De
forma analítica podemos dizer que o fetichismo do dinheiro se expressa nas relações que se
estabelecem entre compradores e vendedores, nas suas relações mercantis cotidianas diversas,
o fetichismo do capital, nas relações entre proprietários e não proprietários dos meios de
produção, de modo concreto não como separá-los na sociedade do capital, estão
imbricados, constituem o mesmo movimento.
O poder que o objeto assume sobre o seu possuidor, levando a que o indivíduo se
confunda com o objeto, onde as propriedades do objeto transfiguram-se em características do
sujeito, ou, por outro lado, que o objeto assuma as características do sujeito é mais intenso
quando ―joga-se‖ com os desejos dos indivíduos. Neste caso, a posse da coisa (ou mesmo a
orientação de suas ações no sentido de -la), faz com que o processo de coisificação do
indivíduo se complete. O objeto não aparece como simples mediador de relações, mas
desempenha um papel ativo, é ele que determinará que relações serão estabelecidas entre os
sujeitos. A prerrogativa de que o homem ―vale‖ o que tem, não é uma ilusão ou questão
moral, no capitalismo é uma realidade necessária. Assim que:
O dinheiro, na medida em que possui a qualidade de tudo comprar, na medida em que
possui a qualidade de se apropriar de todos os objectos, é portanto, o objecto como
possessão eminente. A universalidade da sua qualidade é a omnipotência do seu ser;
por isso ele vale como ser omnipotente. (...) O dinheiro é o alcoviteiro entre a
necessidade e o objecto, entre a vida e o meio de vida do homem. Mas o que me
medeia a minha vida, medeia-me também a existência do outro homem para mim. É
para mim o outro homem. (Marx; 1993: 147. Grifos do autor).
Nestes termos, a necessidade básica que o capitalismo cria é a necessidade do
dinheiro, todas as outras nela se reconhecem e dela decorrem. É neste sentido que Marx
(1994: 84) afirma ainda que é ―porém essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma
dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em conseqüência,
as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência‖.
Nessa forma puramente social, quanto mais os símbolos assumam o lugar das
―moedas-valor‖, mais enigmático se torna o dinheiro, mais fetichizadas se tornam as relações
por ele mediadas. Atualmente, com o uso dos cartões de créditos e de simples operações de
débito e crédito como mediadores das nossas relações mercantis cotidianas, este aspecto é
sobressalente. O dinheiro eletrônico, a compra pela internet e pelos celulares, apaga até os
vestígios do comprador e do vendedor, estes ―desaparecem‖, são simples impulsos
eletrônicos, a ―coisa‖, o dinheiro, se impõe por excelência, se explica por ela mesma.
82
Exemplo interessante do alcance do poder do dinheiro e do seu fetiche está no
crescente endividamento das ―classes médias‖ dos países de capitalismo avançado e dos
periféricos. Neste primeiro caso, antes que a crise imobiliária dos Estados Unidos estourasse,
o sonho da casa própria e a ―facilidade‖ na concessão de crédito levou a classe média
americana a contrair empréstimos que, conforme ficou provado, não puderam pagar. Essa
possibilidade de dispor de um dinheiro, no caso, de um crédito, que está além das
possibilidades econômicas do credor é um ―jogo‖ (transação) financeiro e uma armadilha,
como ficou demonstrado, especialmente, com a crise atual do capital.
Quanto menos corpóreo aparece o dinheiro, mais fantasmagórico se torna, maior
parece ser o seu poder.
O fetichismo do dinheiro (semelhante ao fetiche da mercadoria) consiste em encobrir
as relações sociais que lhe engendram, transformando-as em relações entre coisas, em
mascarar a luta de classes, em ―transformar‖ (na aparência) as relações de subordinação do
trabalho ao capital em relações livres.
O fetichismo do capital-dinheiro, marcante na sociedade contemporânea, é um dos
fenômenos, aliado à outros elementos ideológicos, que escamoteia a contradição sobre a qual
o capital se produz e reproduz - a contradição capital/trabalho: ―tal fetiche se caracteriza não
mais simplesmente pela aparência de vida que confere a coisa inanimada, mas pela força que
exerce sobre as vidas humanas reais ao converter-se em seu objetivo supremo, força criada
pela transfiguração das próprias relações sociais, que configura um ídolo vampirescopara o
qual todos os sacrifícios serão sempre insuficientes‖. (Grespan; 1999: 125).
83
3.2.3 O fetiche do capital-dinheiro dinheiro gerando dinheiro
Se eu tivesse de confrontar-me com indivíduos, e não com mercados,
eu não teria podido me esquivar do problema moral de escolher entre
duas alternativas. Agradeço ao céu por ter me guiado para os
mercados financeiros, onde eu não preciso jamais sujar as mãos (...).
(Soros, apud Toussaint, 2002: 107).
O fetichismo do dinheiro pode ser ―desvelado‖ analiticamente a partir da compreensão
da circulação simples
57
, entretanto, ao analisarmos a produção capitalista de mercadorias,
observamos que, com a transformação do dinheiro em capital seu fetichismo assume novas
expressões, para nós possíveis de serem entendidas a partir da forma de equivalente geral,
mas com uma incursão teórica nestas novas formas, no mundo complexo da produção e
circulação capitalistas.
Para Marx (1982: 191) na sociedade capitalista: ―Em todo caso, a forma considerada
para si [o dinheiro é de fato periodicamente alienado como meio de explorar o trabalho, criar
mais-valia], essa forma é tal que a coisa aparece como capital e o capital como mera coisa, o
resultado inteiro do processo capitalista de produção e circulação como propriedade inerente à
coisa‖.
No capitalismo observam-se tanto o fetichismo do dinheiro quanto o fetichismo do
capital como fenômenos inseparáveis. O capitalismo incorpora o fetiche do dinheiro
(expresso, sobretudo, nas relações individuais de consumo onde se a oposição entre
mercadoria e dinheiro). Entretanto, a expressão máxima de fetiche no capitalismo é o do
capital que rende juros. Para Marx (1982: 190. Grifos do autor):
No capital a juros, ao contrário, completa-se o fetiche. Este é o capital acabado
portanto, unidade do processo de produção e do processo de circulação que, por
isso, num determinado período de tempo traz um determinado lucro. Na forma do
57
Não entendemos a circulação simples como fase menos desenvolvida do capital, mas consideramos que
recorrer a ela para explicar alguns fenômenos do movimento real do capital é um recurso metodológico que
utiliza Marx para deduzir conceitos fundamentais na análise da sociedade capitalista, bem como, para
responder a economistas que concebiam a sociedade capitalista, a partir do funcionamento da circulação
simples. Quando analisamos a economia a partir, unicamente, da circulação simples, ela aparece aos nossos
olhos, como a relação entre vendedores e compradores, entre homens livres, portanto, de forma fetichizada.
Grespan (2002: 117) destaca a este respeito que: “A proposição dos princípios formais da circulação simples
não implica para Marx, portanto, que de fato exista, tenha existido ou venha a existir uma sociedade
estabelecida unicamente sobre eles. Ao contrário, o desenvolvimento de suas determinações leva
necessariamente às condições em que, no intercâmbio entre capital e força de trabalho, estes princípios são
“torcidos” e invertidos. Assim, a conservação deles na esfera da circulação e sua negação pela valorização
são momentos distintos e igualmente válidos na reconstituição marxiana da produção capitalista. Esta
produção, tomada em seu conjunto, envolve tanto as determinações da circulação de mercadorias como as
que as invertem‖.
84
capital a juros permanece apenas essa determinação constitutiva, sem a mediação dos
processos de produção e circulação. No capital e no lucro existe ainda a recordação de
seu passado, embora a diferença entre lucro e mais-valia, uniformização dos lucros de
todos os capitais (por meio) da taxa geral de lucro -, transforme o capital //892/ - de
um modo nada claro numa coisa obscura e num mistério.
O capital que rende juros aparece como a forma fetichizada por excelência do
dinheiro. Marx (1994: 184/5) referindo-se a esta forma diz que: ―No capital usurário, a forma
D-M-D‘, reduz a dois extremos sem termo médio, D-D‘, dinheiro que se troca por mais
dinheiro, forma que contraria a natureza do dinheiro e por isso inexplicável do ponto de vista
da troca de mercadorias‖, ele acrescenta ainda que, ―o capital comercial e o usurário são
formas derivadas (...)
58
‖. Nestes termos, Marx (1982: 193. Grifos do autor) destaca que: ―O
juro, diferenciado do lucro, representa o valor da mera propriedade do capital, isto é,
transforma a propriedade de dinheiro em si [soma de valor, mercadoria seja ela qual for] em
propriedade do capital e, portanto, mercadoria ou dinheiro para si, em valor que se valoriza a
si mesmo‖.
Em meio à panacéia do capital financeiro em crise no ―centro‖ das finanças, as
palavras mais repetidas pelo apologistas do mercado, pelos políticos americanos, pelo
presidente do Banco Central dos Estados Unidos, para acalmar os ânimos dos americanos e
dar um pouco de ―tranqüilidade‖ aos investidores financeiros e que soaram no resto do mundo
como um uníssono, foram: ―confiança no mercado‖, ―esperança no mercado‖, palavras
repetidas enquanto o Estado era chamado para socorrer bancos e empresas que entravam em
processo de falência.
O fetiche do capital-dinheiro consiste em considerá-lo valor que gera valor;
corresponde a dar autonomia a este, desvinculando-o da esfera produtiva, considerando-o não
como derivado desta, mas como autônomo e comandando-a. O fetichismo do capital consiste
―(...) não na ilusão de que o capital também é uma fonte autônoma de produção de valor,
mas principalmente em seu poder efetivo de subordinar o trabalho e as condições de sua
autonomização, crescendo e expandindo sua dominação às várias esferas da vida econômica‖.
(Grespan;1999: 125).
58
Como forma derivada Marx (1982: 198/9. Grifos do autor) entende que: “A forma comercial e a forma a juros
são mais antigas do que a da produção capitalista, do que o capital industrial, forma sica da relação
capital enquanto domina a sociedade burguesa donde todas as outras formas apenas aparecem como
derivadas ou secundárias derivadas como o capital a juros; secundárias, isto é, capital numa função
particular [inerente a seu processo de circulação], como o capital comercial”.
85
A partir, principalmente da década de 1970, onde começa a configurar-se um processo
de redefinição da economia mundial, com a expansão da mundialização do capital, que se
caracteriza pela abertura dos mercados de bens e de capitais,
59
desregulamentação e
flexibilização do trabalho, reestruturação produtiva e privatização de empresas públicas, nota-
se uma ampla financeirização da economia, que implica, dentre outras coisas, no aumento
considerável do fluxo de capitais entre países, em especial de capital especulativo. As
aplicações de curto e curtíssimo prazo se intensificam e, por outro lado, as empresas do setor
produtivo, destinam cada vez mais investimento ao setor financeiro, garantindo além dos
lucros diretos, rendimentos oriundos dessas aplicações financeiras
60
.
Harvey (2005: 181), a respeito deste período que se inaugura, destaca que ―o que
realmente parece especial no período iniciado em 1972 é o florescimento e transformação
extraordinários dos mercados financeiros‖, ao que acrescenta o autor que diferente de fases
anteriores do capitalismo, onde o ―capital financeiro‖ ocupava posição de fundamental
importância para depois perdê-la nas crises especulativas, ―Na atual fase, contudo, o que
importa não é tanto a concentração de poder em instituições financeiras quanto a explosão de
novos instrumentos e mercados financeiros, associada a ascensão de sistemas altamente
sofisticados de coordenação financeira em escala global‖.
Chesnais (2005) considera que há uma configuração contemporânea específica do
capitalismo onde o capital portador de juros encontra-se localizado no centro das relações
econômicas e sociais
61
. Neste sentido;
59
O mercado de força de trabalho não sofre o mesmo processo de abertura que os dois citados, apesar de se
observar uma migração intensa de trabalhadores em busca de empregos nos países centrais, do ponto de vista
institucional observa-se restrições dos governos quanto à entrada de força de trabalho estrangeira, além do que
o desemprego é um fenômeno de nível mundial.
60
Um exemplo deste fenômeno são os Bancos de grandes multinacionais como a Ford, a GM, a VW e outras que
passaram a financiar a compras dos seus próprios carros. Além destes, atualmente toda loja, de departamento à
mercearia de bairro, possui seu cartão de crédito próprio, de sorte que os consumidores são levados a
possuírem diversos cartões e estabelecerem uma relação financeira com locais onde até então apenas
compravam mercadorias.
61
O autor destaca que ―As formas de organização capitalistas mais facilmente identificáveis permanecem sendo
os grupos industriais transnacionais (sociedades transnacionais. STN), os quais m por encargo organizar a
produção de bens e serviços, captar o valor e organizar de maneira direta a dominação política e social do
capital em face dos assalariados. Mas a seu lado, menos visíveis e menos atentamente analisadas, estão as
instituições financeiras bancárias, mas sobretudo as não bancárias, que são constitutivas de um capital com
traços particulares. Esse capital busca ‗fazer dinheiro‘ sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de
empréstimos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações e, enfim, de lucros
nascidos de especulação bem-sucedida. Ele tem como terreno de ação os mercados financeiros integrados
entre si no plano domestico e interconectados internacionalmente. Suas operações repousam também sobre as
cadeias complexas de créditos e de dívidas, especialmente entre bancos‖ (Chesnais; 2005: 35).
86
O capital portador de juros (também designado ―capital financeiro‖ ou simplesmente
―finança‖) não foi levado ao lugar que ocupa hoje por um movimento próprio. Antes
que ele desempenhasse um papel econômico e social de primeiro plano, foi necessário
que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movimento dos capitais e
desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros. Foi igualmente preciso que
recorressem a políticas que favorecessem e facilitassem a centralização dos fundos
não reinvestidos das empresas e das poupanças das famílias. (Chesnais; 2005: 35).
Assim, nos diz o autor acima citado que nesta gica econômica o dinheiro adquire,
―em virtude de mecanismos do mercado secundário de títulos e da liquidez, a propriedade
‗miraculosa‘ de ‗gerar filhotes‘‖, de acordo com o que indicava Marx. Ao que acrescenta
Chesnais (2005: 50) que ―‗O capitalismo patrimonial‘ é aquele em que o entesouramento
estéril, representado pelo ‗pé-de-meia‘, cede lugar ao mercado financeiro dotado da
capacidade mágica de transformar o dinheiro em um valor que ‗produz‘‖.
Como temos considerado, o fetichismo do capital-dinheiro, dentre outros aspectos,
está ligado a financeirização, como marca característica do capital globalizado‖. Da mesma
forma que o fetichismo do dinheiro encobre as relações que lhes dão origem, fazendo parecer
que aspectos sociais são suas qualidades naturais, o fetichismo do capital-dinheiro esconde as
suas relações originárias, dando-lhe aparente autonomia.
A forma fetichizada do capital-dinheiro é a aparente capacidade de criar valor,
portanto, o capital-dinheiro, na forma de capital financeiro aparece como se não entrasse em
antagonismo com o trabalho e como se correspondesse a uma esfera distante e sem conexão
com a produção
62
. Desta forma, como destaca Marx, o capital-dinheiro é a forma mais
acabada do fetichismo, nesta forma o dinheiro aparece como se tivesse o atributo de por si
gerar mais dinheiro.
Como apontamos acima o que nos interessa aqui, além de entender como se expressa o
fetichismo do capital-dinheiro, é entender, por conseguinte, como desvendá-lo, como transpor
esta aparência e conseguir ver o que por trás desta fantasmagórica ―criatura‖ que é o
capital-dinheiro, que não tem cor, cheiro ou corpo, mas continua exercendo um estranho
―poder‖ sobre os homens. Para Bonnet (id. Ibdi. Tradução nossa): (...) a crítica deste
fetichismo das finanças supõe a crítica desta aparência, quer dizer, supõe restituir em nossa
análise a centralidade do antagonismo entre capital e trabalho‖.
62
Como Marx considera que o capital que rende juros e o juros derivam da produção e do lucro, é na produção
que se dá o conflito entre capital/trabalho. O capital financeiro não constitui outro estágio, desvinculado do
capital produtivo, que encerraria uma outra contradição entre capital e trabalho, por isso na forma de juros não
se observa o antagonismo capital/trabalho, o que não significa que ele não exista, mas, somente o
observaremos se buscarmos sua origem, o lucro, a produção de mais valor.
87
No decorrer da nossa exposição buscamos demonstrar que o fetichismo do dinheiro
consiste em transfigurar relações sociais em qualidades naturais e, portanto, encobrir as
relações de produção e com isso transformar as relações entre pessoas em relações entre
coisas. O fetichismo do capital-dinheiro tem o mesmo fundamento, com características
peculiares; confere uma pseudo-autonomização do capital financeiro em relação ao capital
produtivo e encobre a contradição capital/trabalho; fazendo parecer que o dinheiro por si
gera valor.
Quanto menos corpóreo aparece o dinheiro, mais fantasmagórico se torna, maior
parece ser o seu poder.
De onde vem este estranho poder que fascina muitos e parece transpor o próprio Deus
do seu lugar de onipotência? Perguntávamos no início deste item. A resposta a esta questão
encontra-se nas relações sociais que sustentam a existência do capital e do capitalismo como
sistema em permanente movimento.
O entendimento do fetiche como forma social ajuda a entender e explicar os
fenômenos contemporâneos que permeiam a produção, circulação e consumo das
mercadorias, como estando arraigados na necessidade capitalista de realização do valor
produzido e, por outro lado, como fazendo parte de um processo dinâmico de produção e
reprodução da sociedade burguesa e não como indicadores de uma outra organização social.
Entretanto, se tais fenômenos não indicam uma superação do capitalismo ou mesmo seu
abrandamento, importa investigar onde estão os sinais de transitoriedade da dinâmica do
capital.
A partir dos elementos apontados acima, especialmente sobre os fetiches da
mercadoria, do dinheiro e do capital-dinheiro, o que implica trazer elementos para o
desvelamento teórico da contradição inerente ao próprio capitalismo, que entendemos e
apreendemos a ―crítica da estética da mercadoria‖. Neste sentido, como afirma Haug (1997)
empreender a crítica da estética da mercadoria é mergulhar na relação sensual entre sujeito e
objeto, a partir da crítica da economia política.
88
3.3 Crítica da estética
63
da mercadoria: “perversão” e desenvolvimento das
necessidades no capitalismo contemporâneo
Os internautas encontrarão, no endereço virtual, uma lista das
verdades sobre o carro mais querido do Brasil, podendo acrescentar
à ela, nesta etapa, “suas próprias verdades”. Para cada verdade
enviada é possível anexar uma imagem foto, ilustração ou vídeo. Os
usuários poderão mexer nas verdades incluídas na lista,
modificando-as. Em breve, o hotsite terá rankings e promoções para
divertir ainda mais os visitantes. (In,
http://www.portaldapropaganda.com/comunicacao/2007/02/0024).
(Sobre um site criado pela agência de publicidade que divulga o carro
Gol, onde os visitantes podem falar ―suas verdades‖ sobre o carro e
sentirem-se parte da ―família Volkswagen‖).
Como apontamos na introdução deste capítulo a estética da mercadoria é considerada
como ―um complexo funcionalmente determinado pelo valor de troca e oriundo da forma final
dada à mercadoria, de manifestações concretas e das relações sensuais entre sujeito e objeto
por elas condicionadas‖. Assim, não se reduz a um elemento acoplado à mercadoria, mas a
um conjunto articulado de elementos produzidos historicamente como forma de garantir a
realização do valor. Por outro lado, este conjunto de elementos não atribui a mercadoria o
status de ―obra de arte‖.
Apesar de Haug utilizar a terminologia ―Estética da mercadoria‖ de forma substantiva,
para expressar um movimento histórico experimentado na produção, circulação e consumo
das mercadorias, não é o único a associar elementos da estética com a produção mercantil.
Vásquéz (1999: 43), por exemplo, ao discorrer sobre a ―Estética‖, chama a atenção de que a
―relação estética‖ (determinado tipo de relação que o homem estabelece com os objetos) não
se restringe apenas ao objeto estético propriamente dito (a obra de arte), mas pode se dar com
objetos produzidos com outras finalidades (como por exemplo, ―produtos técnicos, industriais
ou usuais da vida cotidiana‖). Para Vásquéz o ponto central dessa concepção é a distinção
entre estético e artístico. Assim ―Estético é o que pode suscitar uma percepção desinteressada;
o artístico compreende os valores diversos que se revelam na obra de arte, compreendido
também o valor estético‖. Esta diferenciação torna possível, para ele, a utilização de
63
Aclaramos, desde já, que não desenvolveremos neste trabalho um estudo sobre estética no sentido mais
aprofundado do termo, em especial na sua relação com o artístico, isto nos exigiria um esforço teórico que não
podemos dispor no momento. Desta forma, não é nosso objetivo a estética no seu ―modo genuíno e original de
manifestação‖, modo que, conforme Lukács (1978: 184): ―podemos encontrar sobretudo na obra de arte, como
objetivação do reflexo estético da realidade, no processo do criador e no comportamento estético-receptivo em
face da arte‖.
89
elementos estéticos em bens produzidos com outras finalidades, que não a artística, no caso
bens industriais: mercadorias. Lukács (1978: 182) ao se referir a peculiaridade da forma
artística, destaca:
Se examinarmos mais de perto a diferença da forma no reflexo estético e no reflexo
científico, na base dos resultados até aqui obtidos, deveremos estabelecer o seguinte.
A forma científica é tanto mais elevada quando mais adequado for o reflexo da
realidade objetiva que ela oferecer, quanto mais ela for universal e compreensiva,
quanto mais ela superar, quanto mais ela voltar as costas para a imediata forma
fenomênica sensivelmente humana da realidade, tal como se apresenta
cotidianamente. (...) Nitidamente diversa é a forma estética genuína e original: ela é
sempre a forma de um determinado conteúdo. Ao afirmarmos isto, não devemos
perder de vista o fato de que a estética como ciência cabe descobrir leis o mais
possível universais, e cabe a crítica aplicá-las a obras singulares (ou grupo de obras
singulares). A estética, a história da arte, a crítica, etc., são precisamente ciências, para
as quais vale essencialmente, o que acima dissemos do reflexo científico da realidade.
Ao que acrescenta Lukács (Idem) a respeito da Obra de arte: ―É aqui evidente que a
forma artística precisamente quando tiver importância estética é a forma específica e
peculiar daquela determinada matéria que constitui o conteúdo de uma obra de arte‖. Ainda ao
discorrer sobre a diferença entre o reflexo científico e o reflexo artístico da realidade, Lukács
(1978: 160/2) destaca que o conhecimento científico e a criação artística se diferenciaram
no curso do longo desenvolvimento da humanidade, processo este que possibilitou a
especialização destes campos e a sua ―superioridade em face da práxis imediata da vida
cotidiana, da qual ambos paulatinamente surgiram‖. Além disso, destaca o autor que nos três
campos da atividade humana: o científico, o artístico e o cotidiano
64
, ―(...) é refletida a mesma
realidade objetiva, que, portanto, é a mesma não como conteúdo mas também em suas
formas, em suas categorias‖, sendo que no artístico destaca-se o particular como categoria
central.
Haug destaca que utiliza o conceito de estética no sentido de cognitio sensitiva, como
conceito para designar o conhecimento sensível. Além disso, acrescenta Haug (1997: 16):
―(...) utilizo o conceito com um duplo sentido, tal como o assunto exige: ora tendendo mais
para o lado da sensualidade subjetiva, ora tendendo mais para o lado do objeto sensual‖.
No entendimento de Haug (Id:16): ―Na expressão ‗estética da mercadoria‘ ocorre uma
restrição dupla: de um lado, a ‗beleza‘, isto é a manifestação sensível que agrada aos sentidos;
de outro, aquela beleza que se desenvolve a serviço da realização do valor de troca e que foi
agregada à mercadoria, a fim de excitar no observador o desejo de posse e motivá-lo à
compra‖, assim a expressão porta em si uma dupla contradição, contradição posta na
64
Para aprofundar a concepção de Lukács sobre arte e cotidiano cf. Lukács (1966).
90
mercadoria e na sua vinculação com elementos da estética. Ao que acrescenta o referido autor
(Id. Ibid): ―Se a beleza da mercadoria agrada à pessoa, entra em jogo a sua cognição sensível
e o interesse sensível que a determina. A transformação do mundo das coisas úteis
desencadeou forças instintivas e meios determinados por suas funções, que padronizam
completamente a sensualidade humana ao mundo das coisas sensíveis‖.
Este movimento, descrito por Haug interessa-nos aqui no sentido de que não se trata
somente do ―mundo das mercadorias‖ propriamente dito (ou do seu consumo), mas espalha-se
para as diversas dimensões da vida do homem, na medida em que estas se mercantilizam
permitindo uma manipulação dos elementos constitutivos do cotidiano e um direcionamento
das necessidades no capitalismo contemporâneo nunca experimentado antes. Os impactos
desta nova dinâmica são mais importantes do que o consumo em si e o estudo da ―estetização
da mercadoria‖, da forma que aqui desenvolvemos, pretende ressaltar este elemento, visto que
parcela significativa da população não tem acesso ao consumo de bens que portam os
elementos aqui apontados, entretanto, estão cada vez mais submetidos, em seus cotidianos, à
lógica mercantil, a lógica que orienta a produção, compra e consumo de mercadorias.
Assim, o que pretendemos colocar como questão para o debate é, não somente como
este complexo se constitui, mas qual o seu impacto na estrutura do cotidiano e, ademais, no
significado das relações sociais e na constituição de um campo especialde necessidades
próprias do capitalismo tardio.
Ademais, entendemos que, devido à subordinação do que se considera como
elementos estéticos (a beleza, por exemplo) ao valor de troca, uma estetização das
mercadorias, por um lado, e, ao mesmo tempo, um esvaziamento e uma banalização destes
elementos estéticos
65
, por exemplo - do belo. Em outros termos, a beleza (enquanto elemento
estético, ou qualquer outro), ao ser assimilada por uma determinada mercadoria lhe atribui um
―valor estético‖ e, ao mesmo tempo, perde os seus próprios ―atributos estéticos‖, portanto,
paralelo a este movimento, chamado por Haug de ―estetização da mercadoria‖ uma
fetichização do ―belo‖, da relação estética em si. Este exemplo é bastante perceptível nos
fragmentos de Obras de Artes (de artistas reconhecidos mundialmente) que são incorporados
a diversas mercadorias disponíveis hoje no mercado, de bancos de automóveis a
65
Kurz (In, O fantasma da arte. In, http://obeco.planetaclix.pt/.) considera, em relação ao esvaziamento de
elementos estéticos, que as formas estéticas nascem mortas na atual sociedade. Jameson (2004) traz por
outro lado, interessante contribuição para se pensar esse esvaziamento como próprio do pós-modernismo, esta
discussão está clara quando das suas contribuições para se pensar o pastiche como próprio desta fase.
91
eletrodomésticos, fragmentos que não se constituem como ―Obra de Arte‖, mas que atribuem
um ―valor estético‖ às mercadorias.
Em se tratando da ―estética da mercadoria‖, este não é um complexo que surge com o
capitalismo contemporâneo, apesar de experimentar nele sua forma até então mais expressiva
e funcional. Apontaremos mais adiante alguns elementos de como este processo se deu
historicamente.
Jameson, nas contribuições sobre o tema (de forma geral), nos remete para o
movimento de mercantilização total da cultura, tendo como expressão sua máxima reificação.
Para ele isto é possível, dentre outros aspectos, por desaparecer na lógica cultural do
capitalismo tardio, o pós-modernismo, a ―fronteira entre a alta cultura e a assim chamada
cultura de massa ou comercial‖, desta forma Jameson (2004: 28) destaca que concomitante a
este movimento se deu ―o aparecimento de novos tipos de textos impregnados das formas,
categorias e conteúdos da mesma indústria cultural que tinha sido denunciada com tanta
veemência por todos os ideólogos do moderno, de Leavis ao New Criticism americano até
Adorno e a Escola de Frankfurt.‖ Ao que acrescenta Jameson (Idem):
De fato, os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio por essa paisagem
―degradada‖ do brega e do kitsche, dos seriados de TV e da cultura do Reader‟s
Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos filmes B hollywodianos, da
assim chamada paraliteratura com seus bolsilivros de aeroporto e suas subcategorias
do romanesco e do gótico, da biografia popular, histórias de mistérios e assassinatos,
ficção científica e romances de fantasia: todos esses matérias não são mais apenas
―citados‖, como o poderiam fazer um Joyce ou um Mahler, mas são incorporados à
sua própria substância.
Jameson (2004: 29) chama a atenção ainda para o entendimento do pós-modernismo
não como um estilo, mas como uma dominante cultural ―uma concepção que margem a
presença e coexistência de uma série de características que, apesar de subordinadas umas as
outras, são bem diferentes.‖ A coexistência destes vários estilos atribui uma heterogeneidade
a este momento cultural, porém, portando uma lógica que está de acordo com a lógica do
próprio capital. Assim, para este autor (Id. 31/32):
O pós-moderno é, no entanto, o campo de forças em que vários tipos bem diferentes
de impulso cultural o que Raymond Williams chamou, certeiramente, de formas
―residuais‖ e ―emergentes‖ de produção cultural têm que encontrar seu caminho. Se
não chegamos a uma idéia geral de uma dominante cultural, teremos que voltar a
visão da história do presente como pura heterogeneidade, como diferença aleatória,
como a coexistência de inúmeras forças distintas cuja efetividade é impossível aferir.
De qualquer modo, foi esse o espírito político em que se planejou a análise que segue:
projetar uma certa concepção de uma nova norma cultural sistemática e de sua
reprodução, a fim de poder fazer uma reflexão mais adequada a respeito das formas
mais efetivas de política cultural radical em nossos dias.
92
Se há uma lógica na heterogeneidade apontada por Jameson, ela passa, sobretudo, pela
mercantilização da arte, por essa nova simbiose entre cultura e economia expressa de forma
emblemática nos financiamentos e patrocínios à arte, em especial a chamada ―nova arte‖.
A mercantilização da arte
66
e a estetização da mercadoria são temas que fazem parte
da agenda atual. O debate do primeiro fora e continua sendo feito como forma de entender
não como, por que e a partir de quando a arte se transforma em mercadoria ou é
atravessada pelo econômico, como também o processo de esvaziamento do conteúdo estético
da obra de arte
67
, mudando radicalmente a relação do homem com esta, que, neste caso, dar-
se-ia cada vez menos através de elementos estéticos, e cada vez mais através da mediação do
dinheiro. O debate e estudo sobre o segundo tema, vem se dando no sentido de identificar
aspectos relevantes que permitam entender a relação entre a mercadoria e elementos da
estética, a estetização da mercadoria como instrumento de realização do valor. Ou seja, em
como vem se configurando, e a partir de quando, o uso ou a recorrência do capital a elementos
considerados estéticos (e não, necessariamente, a arte em si) para realizar o valor produzido.
Nosso debate não se centra nos elementos propriamente econômicos da chamada
estetização da mercadoria, como, por exemplo, os que dizem respeito à influência na
determinação do valor e preço de produção ou ao chamado valor agregado do produto ou
mesmo do chamado ―capital intelectual‖ como componente indispensável deste processo.
Apesar de entendermos estes aspectos como importantes para compreendermos o atual
processo de produção de mercadorias, para debatermos sua estetização optamos por investigar
os elementos contemporâneos do fetiche da mercadoria que têm relação com a indução ao
consumo via criação de novas necessidades mercantis e os rebatimentos deste processo na
constituição de subjetividades.
Vásquéz aponta na Introdução de sua obra ―Convite a Estética‖ que os homens nem
sempre mantiveram com certos objetos o que ele chama de relação estética (portanto, tal
relação é historicamente constituída). Por outro lado, ele diz que a relação estética pode ser
66
De forma mais ampla este tema fora tratado por Horkheimer e Adorno, sobre a tematização da ―Industrial
cultural‖.
67
Adorno (1969) diz a respeito que a Indústria cultural acaba por absolutizar a imitação e ―eis porque o estilo da
indústria cultural, que não tem mais de se afirmar sobre a resistência do material, é, ao mesmo tempo, a
negação do estilo‖ (pp. 166), assim, ―A barbárie estética realiza hoje a ameaça que pesa sobre as criações
espirituais desde o dia em que foram colecionadas e neutralizadas como cultura‖. Adorno faz, neste mesmo
texto, uma discussão do próprio conceito de cultura como portando em si o ―enquadramento‖ a ―tomada de
posse‖.
93
estabelecida com objetos de diversas naturezas, a natural, a artificial, a artesanal ou artística, a
técnica ou industrial.
Portanto, para Vásquéz, poderíamos estabelecer relações estéticas com objetos
produzidos em outras épocas históricas sem finalidade artística
68
(e que hoje as têm), com
objetos produzidos com finalidade artística (as obras de arte) e com objetos produzidos
atualmente com finalidades extra-estéticas, como o são os produtos técnicos, os industriais ou
usuais da vida cotidiana
69
.
O primeiro grupo constitui o domínio do artístico, o segundo da mercadoria.
Entendemos que as relações tanto de produção como de consumo, que se estabelecem nestes
dois grupos de objetos, não se dão da mesma forma apesar de serem cada vez mais próximas
uma da outra. A relação estética que se estabelece neste último grupo torna possível,
segundo Vásquéz, que se fale de um estético técnico, de um estético industrial e de um
estético na vida cotidiana, para além do estético propriamente artístico. Ressaltamos que a
―relação estética‖ a que se refere Vásquéz em relação ao técnico e ao industrial, provoca um
esvaziamento dos elementos estéticos, propriamente ditos.
Como destacamos a ―estética da mercadoria‖ não está relacionada somente ao seu
design, mas também a propaganda, meio de vinculação desta na mídia e a outros elementos
utilizados como recursos que atribuem à mercadoria uma ―realidade fetichizada‖. É a
estetização da mercadoria que permite atualmente que a ―captura da subjetividade‖ do
indivíduo, por meio do próprio fetiche da mercadoria, -se não somente aos que consomem
(ou têm poder de consumo), mas também aqueles que não o têm
70
.
68
Objetos que, segundo Vázquéz (1999: XV) ―(...) dadas as suas funções primordiais e os lugares em que as
exerciam, não suscitavam esse comportamento que corresponde à sensibilidade moderna e, principalmente, à
contemporânea‖.
69
Consideramos, diferente de Vásquéz, que não chegamos a estabelecer uma relação estética, propriamente dita,
com as mercadorias, se consideramos a concepção de estética que apresenta Lucáks (citada anteriormente), o
que há neste caso é uma ―relação sensual entre sujeito objeto‖, relação possível através da incorporação de um
complexo de elementos na produção e distribuição das mercadorias.
70
Não consideramos como único elemento da reificação cotidiana a estetização das mercadorias e,
provavelmente, nem seja o mais importante. Além disso, em relação ao consumo, podemos dizer que em
alguns casos o estímulo a este é tão importante para quem pode, de fato, adquirir uma mercadoria, quanto para
quem não pode. Segundo Edler (2008: 109): ―Não podemos nos iludir. Não somos sujeitos do consumo apenas
quando entramos nos supermercados ou escolhemos, com atenção, o presente para um amigo. Os padrões de
consumo são amplos, interferem em nossa vida mais do que gostaríamos de admitir, e o marketing penetra em
campos da existência que estavam fora do registro das trocas monetárias. Será que hoje, primeira década do
século XXI, algum segmento da vida está a salvo desse registro? Se observarmos a cultura bancária e
empresarial no Brasil, logo perceberemos que a maturidade é vista como sinônimo de desatualização e
obsolescência. E, de acordo com a lei do lixo, o entulho deve ser removido para que possa dar lugar a jovens
bem preparados para exercer as mesmas funções‖.
94
Nosso objeto de estudo surgiu da tentativa de entender os elementos concretos da
reificação na estrutura da vida cotidiana e quais os recursos atuais do capital para, não
realizar o valor produzido, como se imiscuir na cotidianidade dos homens contemporâneos.
Partimos da premissa de que não basta ao capital se apropriar somente do tempo de trabalho
excedente, é cada vez mais necessário e fundamental a apropriação de elementos da
subjetividade da classe trabalhadora.
3.3.1 O “maravilhoso mundo da mercadoria sua estetização
“Por um mundo melhor, compre um Fox”
(Um dos slogans do carro Fox (2008) da Volkswagen)
Como apontado acima a mercadoria, portadora de valor de troca e valor de uso, tem no
seu desenvolvimento histórico, enquanto célula da sociedade burguesa, a necessidade como
sua mola propulsora. Portanto, pensar o desenvolvimento histórico das mercadorias no
capitalismo (sua produção, circulação e consumo) é pensar, concomitantemente, o
desenvolvimento do próprio sistema de necessidades burguesas.
É a necessidade de determinado bem e a não-necessidade (e disponibilidade) deste
mesmo, por indivíduos diferentes, que impulsionam as relações de troca dando início ao
intricado mundo de troca das mercadorias da forma que hoje o conhecemos.
As necessidades, por outro lado, também são frutos de relações sociais particulares, ao
mesmo tempo em que dão origem a estas mesmas relações (conforme vimos no primeiro
capítulo). É desta forma que desde o advento do capitalismo surgem necessidades particulares
de determinadas classes e as próprias necessidades passam a seguir a dinâmica da produção
capitalista.
Entretanto, a mediação do dinheiro na relação de troca, ou, em outros termos, o
dinheiro como ―forma abstrata de riqueza‖ ou como a ―verdadeira necessidade do
capitalismo‖, foi a mais profunda e persistente ―perversão‖ das necessidades na sociedade
burguesa. Este movimento permite, não que o valor de troca desligue-se de cada
necessidade em particular, como, por outro lado, que as próprias necessidades se tornem
produtos mercantis.
Nas palavras de Haug (1997: 24), seguindo o pensamento de Marx: ―Deste modo,
consuma-se uma abstração: o valor de trocas desligou-se também de cada necessidade
95
particular ao se emancipar perante cada corpo particular de mercadorias. Àquele que o possui,
ele concede um poder sobre todas as qualidades particulares, limitado apenas por sua
quantidade‖.
Que o dinheiro, mediador universal da sociedade burguesa porta a capacidade ou ―a
qualidade‖ de todas as demais mercadorias, fora observado, desde Marx, por diversos
estudiosos que seguiram ―a trilha‖ do seu pensamento. Entretanto, a questão a ser colocada é
o que fazer (ou o que vem sendo feito) diante da impossibilidade histórica de que essa
capacidade seja extensiva a todos?
O que fazer quando a promessa de consumo extensivo falhou historicamente e o
capital continua a produzir bens em demasia? Ou seja, o que fazer para que aqueles (a grande
maioria da classe trabalhadora) que não têm e não terão acesso à ―promessa do consumo‖
feita nos momentos ―áureos‖ do capitalismo, continue guiando suas ações na direção de ver
concretizada tal promessa? Abordaremos mais adiante este aspecto histórico que encontrou
diversas saídas (nenhuma definitiva), desde a conquista de novos mercados às guerras, até a
criação das marcas, a redução do tempo de vida das mercadorias, sua estetização e, fenômeno
mais contemporâneo, a criação da necessidade de consumir o ―consumo do outro‖, consumir
―a imagem como produto‖. Por hora voltemos ao desenvolvimento das mercadorias no
capitalismo.
A mercadoria, como o observamos, porta uma contradição que está expressa na sua
dupla dimensão: valor de uso e valor de troca
71
. A mediação do dinheiro possibilita que esta
contradição possa ser transposta no tempo e no espaço, na medida em que ela pode ser
desmembrada em dois movimentos complementares, mas diferentes: compra e venda. Esta
contradição aparece em toda relação mercantil e possibilita que bens e ―relações‖ que não são
inicialmente produzidos como mercadorias venham a se tornar mercantis. Por outro lado, esta
separação, proporcionada pelo dinheiro, leva a que um dos dois movimentos que são
71
Haug resgata de Marx o debate sobre esta dupla dimensão e diz: Da perspectiva do valor de troca, toda
mercadoria é considerada a despeito de sua forma particular mero valor de troca que ainda precisa
concretizar-se (realizar-se) como dinheiro e para o qual a forma do valor de uso significa apenas uma prisão e
um estágio transitório. Da perspectiva da necessidade do valor de uso, o fim do objeto é alcançado quando o
objeto comprado é útil e desfrutável. Da perspectiva do valor de troca, o fim se cumpre quando o valor de
troca aflora sob a forma de dinheiro. (...). Os dois pontos de vista são tão diferentes quanto o dia e a noite. Ao
aparecerem separados, a contradição se evidencia. Essa contradição torna-se determinante na produção de
mercadorias e na história de evolução tanto das mercadorias em si quanto dos métodos de produção.
Separando-se a necessidade da solvência, a contradição torna-se mundialmente válida para partes cada vez
maiores da humanidade; enquanto retardamento da procura solvente, ela também é periodicamente válida para
o capital sob a forma de crise e ameaça retirar a base material da vida das massas trabalhadoras aptas ao
trabalho assalariado‖. (Haug; 1997: 25/6).
96
contrários e complementares se realize em um desnível de tempo em relação ao outro que
pode provocar crises clicas. É também esta separação que leva à criação de um campo
mercantil de necessidades extensivo quando sua realização não o é, em outros termos, leva à
produção e consumo da própria necessidade enquanto mercadoria.
Assim, da perspectiva do valor de troca, importa a realização do valor produzido e não
que este se materialize em um valor de uso específico, em outros termos, ao capital importa
não a produção de determinados valores de uso, mas de valores que possam ser realizados. É
desta forma que uma desconexão histórica entre valores de troca e valores de uso, no
sentido de que, é possível que milhares de pessoas morram de fome e não se produzam
alimentos que saciem suas fomes, mesmo havendo necessidades e condições para isto, só para
citar um exemplo. Esta desconexão leva ao desenvolvimento do dinheiro como riqueza
abstrata até o ponto em que hoje o conhecemos, ou até o estágio do capitalismo ao qual nos
encontramos: do ―capital fetiche‖ e da financeirização da economia.
Em relação ao desenvolvimento das necessidades no capitalismo, a produção da força
de trabalho como mercadoria criou, concomitantemente, um campo de necessidades voltadas
diretamente para esta produção e reprodução, necessidades que iam da garantia de um mínimo
necessário à reprodução física até a formação de um ―conhecimento‖ instrumental adequado
ao desenvolvimento de uma determinada atividade laboral. Este elemento, determinante no
tempo de produção e reprodução da força de trabalho, é o que estabelecerá os parâmetros de
compra e venda da própria força de trabalho.
Se as demais mercadorias devem demonstrar a possibilidade de satisfazer determinada
necessidade, a força de trabalho deve se mostrar apta a desenvolver determinado trabalho ou
incorporar tempo socialmente necessário de produção e capaz de realizar-se enquanto valor de
uso. A necessidade de uma mercadoria está ligada ao seu valor de uso (mas este é
determinado socialmente). Do ponto de vista da compra, ato que antecede o consumo, a
mercadoria deve portar atributos que a mostre propícia a realizar o valor de uso que consiste,
em outros termos, em suprir a necessidade que determinou sua aquisição. Neste sentido, a
manifestação visível da mercadoria, sua aparência, é própria dela, é neste campo que se
manifesta seu fetiche (se manifesta e não se cria). A este respeito Haug (1997: 26) destaca
que:
O aspecto estético da mercadoria no sentido mais amplo manifestação sensível e
sentido de seu valor de uso separa-se aqui do objeto. A aparência torna-se
importante sem dúvida importantíssima na construção do ato da compra, enquanto
ser. O que é apenas algo, mas não parece um ―ser‖, não é vendável. O que parece ser
97
algo é vendável. A aparência estética, o valor de uso prometido pela mercadoria, surge
também como função de venda autônoma no sistema de compra e venda. No sentido
econômico está-se próximo de, e será finalmente obrigatório, em razão da
concorrência, ater-se ao domínio técnico e à produção independente desse aspecto
estético. O valor de uso estético prometido pela mercadoria torna-se então instrumento
para se obter dinheiro. Desse modo, o seu interesse contrário estimula, na perspectiva
do valor de troca, o empenho em se tornar uma aparência de valor de uso, que
exatamente por isso assume formas bastante exageradas, uma vez que, da perspectiva
do valor de troca, o valor de uso não é essencial. Nesse contexto, o aspecto sensível
torna-se portador de uma função econômica: o sujeito e o objeto da fascinação
economicamente funcional. Quem domina a manifestação, domina as pessoas
fascinadas mediante os sentidos. (Haug; 1997: 26-27).
Nestes termos, como destaca Mészáros e Haug, a subordinação do valor de uso ao
valor de troca demonstra esta tendência do capitalismo para o que, o último chama de
―tecnocracia da sensualidade‖ e nós poderíamos chamar em sua expressão contemporânea de
―captura da subjetividade‖ e sua devolução através de apelos sensuais. Este movimento se
expressa historicamente no fato de que (...) com o desdobramento da produção privada de
mercadorias, produz-se essencialmente valores de troca e não ‗meios de sobrevivência‘
essencialmente sociais meios para a satisfação das necessidades sociais -; uma vez que as
qualidades das mercadorias, que correspondem as necessidades dos futuros consumidores,
não passam, portanto, de um meio para atingir um fim a realização do valor de troca- (...).‖ (
Haug, 1997: 27).
O que Marx apontava nos ―Manuscritos Econômicos e Filosóficos‖ e Haug
explorou a partir de uma perspectiva crítica foi a capacidade do capital de se apropriar dos
desejos e fantasias para incitar a compra de mercadorias. Desta forma, Haug (Id. Ibid) resgata
uma importante afirmação de Marx dos manuscritos parisienses: ―Onde quer que haja
carência, necessidade e precisão, surge um proprietário de mercadorias oferecendo os seus
‗amáveis préstimos‘ através de ‗amabilíssimas aparências‘, para logo em seguida apresentar a
conta‖.
O que Haug não aponta é que as próprias necessidades passam a ser, cuidadosamente,
pesquisadas, produzidas e consumidas na sua forma mercantil. A expressão deste elemento na
contemporaneidade só foi possível por haver, de certa forma, um redimensionamento no valor
de uso das mercadorias, no significado que este passou a ter na compra e no consumo.
98
3.3.1.1 Do capitalismo concorrencial ao capitalismo tardio a mercadoria estetizada
3.3.1.1.1 Apelos “sensuais” para realizar o valor a era concorrencial
“Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”.
(Arquimedes)
A era do capitalismo de mercado foi marcada pela livre concorrência e pela
predominância de muitos capitais. Neste momento de ascensão do capital consolidou-se a
formação de grandes mercados nacionais, através da destruição das fronteiras nacionais. Estes
mercados nacionais funcionaram como alicerce para a formação do Estado nacional moderno.
Assim, temos que, a era da livre concorrência, ―(...) caracterizou-se por uma imobilidade
internacional relativa do capital. A concentração do capital era predominantemente nacional;
a centralização, exclusivamente nacional. Mesmo nessa fase, a tendência principal convivia
evidentemente com a tendência oposta de movimentação internacional de capital, mantida
sobretudo por alguns grandes grupos financeiros, e ganhando expressão na importância dos
empréstimos estatais internacionais‖. (Mandel; 1985: 220/1).
A grande indústria capitalista com sua produção em massa e a preços baixos, foi um
dos instrumentos (Mandel, 1985) que possibilitou a criação de um ―genuíno mercado
mundial‖, para todas as mercadorias produzidas e não somente para os bens de luxo o que,
dentre outras coisas, vai impulsionar a passagem desta fase do capitalismo para a fase
monopolista. Ainda nas palavras de Mandel (1985: 219) ―A relação entre a expansão nacional
e a expansão internacional do capital determinou, portanto, desde o começo uma estrutura
combinada que se refletiu nas atitudes contraditórias da burguesia quando chegava ao uso da
força no plano internacional‖.
De forma mais específica, no que se refere ao processo de desenvolvimento da
mercadoria Haug (1997: 28/29) destaca, ao se referir a alguns traços do capital mercantil em
emergência e consolidação, que o especial e o novo exercem função de mercadorias-chave na
abertura de mercados para o comércio capitalista. Além deste aspecto, com o objetivo de
penetrar nos mercados locais ou de conquistar comercialmente regiões que até então
desconheciam a produção na sua forma capitalista, o capital necessitou de mercadorias
especiais. Desta forma:
(...) três grupos de mercadorias causaram muito furor e abriram caminho para a
mudança nas relações mundiais: primeiro, os bens militares; segundo, os produtos
têxteis; e, terceiro, estimulantes e guloseimas. Nada mais que armas de fogo e
aguardente os fortes estímulos da história européia invadem o ―Novo Mundo‖
99
como instrumento de interesse de valorização do capitalismo mercantil. As potências
européias que mediante esse tipo de negócio ascendem e tornam-se potências
mundiais são, pela ordem, Veneza, os Países Baixos e a Inglaterra. (Haug,
1997:28/29).
Ao resgatarmos a história das mercadorias, buscando com isso recuperar ―o sensual‖
neste processo, o identificamos primeiro, quando ainda não se consolidara a ascensão do
capitalismo, nas chamadas mercadorias de luxo. São estas mercadorias que primeiro são
embutidas do elemento ―sensual‖, são elas que primeiro falam a linguagem do ―galanteio
amoroso‖. É assim que (...) um gênero inteiro de mercadorias lança olhares amorosos aos
compradores‖, semelhante aos mesmos olhares ―com os quais os compradores tentam cortejar os seus
objetos humanos do desejo‖. Desta forma, acrescenta Haug (1997: 30): ―Quem busca o amor faz-se
bonito e amável. Todas as jóias e tecidos, perfumes e maquiagens oferecem-se como meio para
representar a beleza e a amabilidade. Do mesmo modo, as mercadorias retiram a sua linguagem
estética do galanteio amoroso entre os seres humano. A relação então se inverte, e as pessoas retiram a
sua expressão estética das mercadorias‖.
assim, uma primeira reação da forma conjunta de uso das mercadorias, e esta é
motivada pela valorização sobre a sensualidade humana. Este movimento é impulsionado
historicamente pela decadência da nobreza e, em contrapartida, pela necessidade de manter
através da aparência, aquilo que esta já perdera.
Este período histórico inaugura-se ainda nos primórdios do capitalismo quando o
nobre em decadência apega-se ao ―luxo‖, ao consumo de bens específicos: desde tecidos
caros e maquilagem até chocolate e confeitos, por exemplo, como um desejo de manter aquilo
que já não tinha: o poder.
A burguesia soube neste momento transitório fazer uso econômico deste ―desejo‖ da
nobreza decadente e garantir sua ruína final. Assim ―a burguesia ascendente empresta
dinheiro à nobreza a juros extorsivos, com o qual esta compra os diversos tecidos suntuosos e
as mercadorias galantes, até que metro a metro as propriedades da nobreza passam às mãos da
burguesia‖. (Haug, 1997: 31).
O que destacamos aqui é que o luxo, o consumo de ―mercadorias sensuais‖ pela
nobreza, não inverte o processo de acumulação primitiva e de consolidação de uma nova
classe em ascensão a burguesia, assim como, atualmente, o consumo de determinadas
mercadorias não transmite a quem as consome aquilo que prometem: a felicidade, a eterna
juventude ou o “lugar social” de quem detém os meios de produção. Mas o capitalista
precisou e precisa constantemente suscitar no outro o desejo pelo consumo, desta forma toda
100
pessoa (Marx apub Haug, 1997: 31) ―especula sobre a possibilidade de criar no outro uma
nova necessidade, a fim de obrigá-lo a um novo sacrifício, de impingi-lhe uma nova
dependência, de induzi-lo a uma nova forma de prazer levando-o assim a ruína econômica‖.
Neste momento foi necessário que o burguês recusasse para si o prazer que suscitava
no nobre decadente. O prazer do burguês estava subordinado a produção, aqui é patente a
figura do avarento, que no capitalismo assume a forma de entesourador
72
. Seus prazeres se
adaptam a sua atividade burguesa: tabaco, café e chá, enquanto o clero e a nobreza se
refestelavam com chocolates e confeitos.
São, por outro lado, estas mesmas mercadorias que para os burgueses representavam o
prazer comedido: tabaco, café e chá, que vão impulsionar setores lucrativos do capital e
funcionar como ―consumo luxuoso‖ para as classes trabalhadoras também emergentes.
Com o desenvolvimento do capitalismo e a transição da burguesia de classe
revolucionária para mantenedora do status quo um redimensionamento na estética da
mercadoria, em especial sua expansão para outras mercadorias que não as de luxo.
Desta forma, as mudanças na dinâmica econômica e sócio-política da sociedade levam
a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista. Neste momento passam
a ser os artigos produzidos em massa (os mais baratos) e não os artigos de luxo que garantem
72
A função de entesouramento, segundo Marx, serviu a propósitos diferentes, quando da consolidação do
capitalismo e em um momento posterior, quando este já se encontrava ―amadurecido‖. Tanto o apego ao
dinheiro na sua forma corpórea e o entesouramento deste, enquanto moeda e, portanto, também na sua forma
corpórea, é possível quando da circulação das moedas metálicas, principalmente as cunhadas em metais
preciosos. Nas palavras de Marx (1994: 145/6): ―Desperta a avidez pelo ouro a possibilidade que oferece de
conservar valor-de-troca como mercadoria, ou mercadoria como valor-de-troca‖. Referindo-se ao
entesouramento na sociedade burguesa, Marx diz que: ―O desenvolvimento do dinheiro como meio de
pagamento acarreta a necessidade de acumular dinheiro, para atender aos débitos nas datas de vencimento. O
entesouramento, como forma autônoma de enriquecimento, desaparece com o progresso da sociedade
burguesa, mas sob a forma de fundo de reserva de meios de pagamentos, se expande com essa sociedade‖.
(Id.: 157). E acrescenta: ―O entesourador sacrifica à idolatria do ouro os prazeres da carne. Esposa o evangelho
da abstenção. Mas pode tirar em dinheiro da circulação o que lhe em mercadoria. Quanto mais produz,
mais pode vender. Diligência, poupança e avareza são suas virtudes cardeais, vender muito, comprar pouco, a
suma de sua economia política.‖ (Id.: 148). Marx refere-se aqui a uma figura peculiar da sociedade produtora
de mercadorias, o entesourador, este orienta suas ações não somente pelo apego ao dinheiro, mas pelas
―regras‖ da sua economia, que é a mesma dos outros entesouradores iguais a ele. A importância do
entesourador e a sua relação com o modo capitalista de produção é destacada na seguinte passagem: ―(...) se
vamos até o fundo da questão, a figura aparentemente mica do entesourador nos parece sob outro enfoque,
pois também nesse caso ‗a acumulação de dinheiro por meio do próprio dinheiro é a forma primitiva da
produção pela própria produção, ou seja, o impulso das forças produtivas do trabalho social, para ultrapassar
os limites das necessidades tradicionais‘. Precisamente por isso, ‗quanto menos desenvolvida esteja a produção
de mercadorias [...] tanto mais importante será o entesouramento, que é a primeira forma na qual o valor de
troca assume uma existência independente como dinheiro[...]‘‖ (Marx apud Rosdolsky; 2001: 139).
101
os grandes negócios. Assim, no âmbito da produção importam neste contexto as seguintes
funções de rentabilidade: a economia de tempo de trabalho, mediante o aumento da
produtividade, o barateamento de partes do capital constante e a diminuição do tempo de
produção mediante a redução artificial do tempo de armazenamento necessário para a
manutenção das mercadorias (Haug, 1997: 33).
A produção em massa não torna possível o mesmo galanteio amoroso prevalecente nos
bens de luxo, que se buscar uma outra forma de conquistar o consumidor, de falar sua
língua: isto aparece mais tarde com as propagandas e depois com o surgimento da marca.
Assim: ―A função da valorização sempre a procura de uma resposta para a questão da
realização encontra expressão justamente na aparência exagerada do valor de uso, impelindo o
valor de troca contido na mercadoria ao encontro do dinheiro.‖ Ao que acrescenta Haug
(1997: 35) ―Ansiosa pelo dinheiro, a mercadoria é criada na produção capitalista à imagem da
ansiedade do público consumidor. Essa imagem será divulgada mais tarde pela propaganda,
separada da mercadoria‖ e a estética da mercadoria passa a ser explorada de forma planejada.
Mandel (1985: 220) ao se referir a passagem da fase concorrencial à fase monopolista
do capitalismo destaca o seguinte: ―Na fase de desenvolvimento imperialista monopolista do
modo de produção capitalista, acrescentou-se uma nova dimensão tanto à relação entre
expansão nacional e expansão internacional, quanto a relação entre as leis de desenvolvimento
capitalista e o uso deliberado da coerção estatais para fins econômicos‖. É assim que ―A
concentração de capital a nível nacional acelerada pela segunda revolução tecnológica e
pelo conseqüente aumento da acumulação do capital necessário a concorrência efetiva dos
setores em crescimento na época levou cada vez mais a centralização do capital‖. Temos
assim uma ampla redução do número dos ―diferentes capitais‖ levando com isso a que um
pequeno número de trustes, empresas e monopólios dominassem setores inteiros da indústria.
Desta forma, ―A divisão completa do mundo, efetivada pelas grandes forças
imperialistas, resultantes elas mesmas da contração da concorrência capitalista no mercado
interno, levou a uma intensificação da concorrência capitalista internacional no mercado
mundial, à rivalidade interimperialista e à tendência à redistribuição periódica do mercado
mundial, inclusive por meio das forças armadas em síntese, por meio de guerras
imperialistas‖. (Mandel, 1985: 220).
Passemos então a análise de alguns elementos do ―desenvolvimento estético das
mercadorias‖ na era dos monopólios.
102
3.1.1.2 Marca e propaganda como instrumentos estéticos de monopolização das
mercadorias: o consumismo fiel a era dos monopólios
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome...estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
(...)
Carlos Drummond de Andrade (do poema: Eu, etiqueta).
O capitalismo monopolista, que historicamente sucedeu o capitalismo concorrencial, é
resultado, dentre outras questões, do aumento qualitativo da concentração e centralização do
capital e caracteriza-se pela formação dos grandes capitais, capacidade de controlar o mercado
por certo período de tempo, criação de um mercado internacional com grande mobilidade de
capitais, dentre outros elementos.
Com as mudanças que experimentou o capitalismo ao entrar na era monopolista
coloca-se em ―patamar mais alto, o sistema totalizante de contradições que confere à ordem
burguesa os seus traços de exploração, alienação e transitoriedade histórica (...)‖ (Neto, 2005,
19). Tem assim que, ―a idade do monopólio altera significativamente a dinâmica inteira da
sociedade burguesa: ao mesmo tempo em que potencia as contradições fundamentais do
capitalismo explicitadas no estágio concorrencial e as combina com novas contradições e
103
antagonismos, deflagra complexos processos que jogam no sentido de contrarrestar a
ponderação dos vetores negativos e críticos que detona‖ (Idem).
Mandel (1985) destaca que a era dos monopólios dividiu-se em duas fases: o período
do imperialismo clássico
73
(situado entre 1890 a 1940) e o período do capitalismo tardio.
Nas palavras de Mandel (1985: 221):
No período clássico do imperialismo, o caráter de concentração do capital tornou-se
cada vez mais internacional. Os investimentos de capital em países coloniais e
semicoloniais tornaram-se parte importante do processo de acumulação, e houve um
aumento constante nas contribuições feitas pelos superlucros coloniais. A mobilidade
internacional do capital avançou a passos largos, pois o Estado clássico burguês se
tinha transformado em obstáculo ao crescimento das forças produtivas. As
dificuldades para continuar expandindo os mercados internos, decorrentes da
monopolização dos principais pontos de venda internos, especialmente da indústria
pesada, forçou cada vez mais o capital a tomar a rota internacional. Mas o período
clássico do imperialismo foi marcado por uma concorrência intensificada entre as
grandes forças imperialistas, onde o controle militar e político sobre zonas geográficas
(o mercado interno mais as colônias) proporcionava a base para a defesa ou expansão
de sua fatia do mercado mundial.
Desta forma, as mudanças pelas quais passa o capitalismo na fase monopolista
aprofundam ainda mais suas contradições e evidenciam algumas tendências apontadas por
Marx, como a concentração e centralização do capital concomitante à busca por lucros cada
vez maiores com controle dos mercados.
Do ponto de vista da nossa temática, importa aclarar que, além de outros elementos, a
era do capitalismo monopolista inaugura, assim, a possibilidade de distinção dos produtos de
massa através da propaganda e da marca. Desta forma, aparece a oportunidade de que os
produtos que eram vinculados a uma marca ou dispusessem da propaganda assumissem a
liderança em detrimentos de produtos desconhecidos. É assim que: ―À medida que o capital
privado se subordina a um determinado valor de uso, a estética da mercadoria ganha não
um significado qualitativamente novo para codificar informações recentes, mas também se
desliga do corpo da mercadoria, cuja representação é reforçada pela embalagem e divulgada
em várias regiões através da propaganda‖. (Haug; 1997: 37). Desta forma, a propaganda se
evidencia como um ―meio para se obter uma posição quase monopolista e compor uma
mercadoria como artigo de marca. Para isso empregam-se todos os meios estéticos
existentes‖. (Idem).
Em se tratando, mais especificamente, da origem das marcas observamos que:
73
A respeito da fase Imperialista cf: Lênin (Imperialismo, fase superior do capitalismo).
104
Os primeiros produtos baseados em marcas apareceram quase na mesma época da
publicidade baseada na invenção, em grande parte graças à outra inovação
relativamente recente; a fábrica. Quando os bens começaram a ser produzidos em
fábricas, não apenas foram introduzidos produtos completamente novos, como os
velhos produtos até alimentos básicos estavam surgindo em formas novas e
surpreendentes. (...) a marca competitiva tornou-se uma necessidade da era da
máquina no contexto da uniformidade manufaturada, a diferença baseada na
imagem tinha de ser fabricada junto com o produto. (Klein; 2002: 29/30).
As marcas surgem, desta forma, como o primeiro movimento autônomo da imagem
das mercadorias, da representação da mercadoria em relação ao objeto mercantil. O
surgimento das marcas como identidade de um produto é uma resposta à competitividade do
capital e à produtividade em escala cada vez crescente.
em 1880 algumas logomarcas corporativas foram aplicadas em produtos fabricados
em massa, como as sopas Campbell‘s, a aveia Quaker, por exemplo. Neste caso, as
logomarcas associadas à publicidade (veículo utilizado para difundir a marca, o ―sentido‖ do
próprio produto) tinham um alcance maior que a própria mercadoria, pois poderiam chegar
até onde a mercadoria em si jamais chegaria, era o fetiche da mercadoria se impondo em sua
forma fantasmagórica, livre das amarras do corpo da mercadoria.
Como apontamos acima, na era do capitalismo monopolista, passam a ser utilizados
como recursos estéticos não tanto os elementos incorporados diretamente à mercadoria para
compor sua aparência, como a forma, o design, mas, sobretudo, elementos relacionados à
propaganda e a marca, desta forma tem-se que ―(...) o decisivo é juntar todas as formas de
comunicação pressupostas numa apresentação que utiliza meios estético-formais, visuais e
lingüísticos para caracterizar um nome‖, (Haug, 1997: 37) é assim que ―(...) A linguagem
específica de uso geral tem no máximo a função de anunciar o nome do truste e de envolvê-lo
numa auréola de reconhecimento. Enquanto os artigos de marca divulgados num local apenas
parecem tão estranhos quanto outras particularidades locais relativas a nomes e dialetos, as
marcas supra-regionais dos grandes trustes deslocam-se para a experiência humana diante da
natureza, assumindo até mesmo o seu lugar.‖ (Idem). Este movimento torna-se cada vez mais
intenso e determinante até chegar à fase contemporânea do capital como fundamental para o
domínio das grandes corporações reconhecidas mundialmente.
Desta forma, parte constitutiva de qualquer produto e, como de forma brilhante
destacou o poeta Drummond, inclusive de pessoas; a marca surge como recurso
propagandístico para garantir a realização do valor, como recurso para enfrentar a
concorrência entre grandes capitais e como forma de atribuir a produtos fabricados em massa,
105
uma familiaridade com o consumidor, familiaridade que até então este só tinha experimentado
no consumo de bens de luxo.
Com o surgimento das marcas e da propaganda como meio de divulgar o produto, o
valor de uso é, de forma determinante, subordinado ao valor de troca. Assim, para algumas
mercadorias, as pessoas não têm mais o conceito de valor de uso, em seu lugar tem o conceito
de marca, ―Essa é a razão essencial para a diminuição radical do conhecimento prático que a
população possui sobre as mercadorias nas sociedades capitalistas-monopolistas‖. Ao que
acrescenta Haug (1997: 37), ―Mediante os artigos de marcas, os monopólios geralmente
monopolizam até mesmo o conhecimento técnico e químico mais simples. O que antigamente
qualquer dona de casa sabia é encoberto pelo manto do saber secreto, e cada vez mais
tornamo-nos dependentes do artigo de marca. ‗Leve simplesmente XY‘‖.
Este movimento assume tais dimensões na atualidade que são necessárias leis
específicas em todo o mundo que garantam a informação referente ao produto de forma clara
na embalagem e o consumidor não seja lesado por algo que se tornou uma constante no
―mundo das mercadorias‖, informações que induzem a conclusões equivocadas ou
simplesmente a omissão de informações importantes sobre determinado produto.
Desta maneira, desde os primeiros produtos ―de marca‖ até hoje ocorreu uma
―evolução‖ no uso da marca como identidade do produto que leva, em alguns casos, a que, no
uso comum, o nome da marca substitua a denominação do próprio produto.
Fontenelle (2002: 284) ao falar da importância da marca e de sua relação com o fetiche
da mercadoria, argumenta que:
(...) a importância da marca publicitária pode ser inserida no debate contemporâneo
sobre o ―fetichismo das imagens‖ - termo que conotaria um desdobramento do
―fetichismo da mercadoria‖. Neste último, (...) a problemática central visa apreender a
perversão das relações humanas que passaram, num sistema de produção social
mercantilizada, a ocorrer através de relações entre ―coisas‖. Acontece que hoje são as
próprias coisas no caso, os produtos que se referem às marcas para ganhar
identidade própria. Ou seja, não basta tomar refrigerante, tem de ser Coca-cola; não
basta fumar cigarro, tem de ser Marlboro; não basta comer hambúrguer, tem de ser
McDonald‘s.
A marca, em alguns casos, deixa de ser coadjuvante, deixa de servir para identificar
(dar nome) a um produto e passa a ser o próprio produto que exige diferentes corpos
materiais, objetos para se corporificar. Desta forma, a imagem (não a marca em si, mas a
representação que esta proporciona) passa a ser fundamental tanto na produção quanto na
circulação das mercadorias, de tal forma que mesmo os produtos ―sem marca‖ precisam ter
106
uma imagem a vender. Importa aclarar aqui que a marca tornou possível que um produto
pudesse se apropriar de diferentes imagens como publicidade e através dessas imagens
assumisse ―o espírito de cada época‖ de cada sociedade. É assim, por exemplo, que a Coca-
Cola pode aparecer em uma época como jovem, em outra como cult, como transgressora,
como rebelde, como moderna e em alguns momentos, como o atual, aparece ―portadora‖ de
todos esses estilos ao mesmo tempo.
Para Klein (2002: 40) ―(...) existiam as empresas que sempre compreenderam que
estavam vendendo marcas antes dos produtos. Coca-Cola, Pepsi, McDonald‘s
74
, Burger King
e Disney‖, para citar algumas. Em outros termos, não tão explorado por Klein, o que
importava era o valor de troca, expresso no potencial que determinada marca representava e,
neste sentido, não importava que produtos vendiam tais empresas: se tênis, refrigerante,
comida enlatada ou a imagem de alguma celebridade.
Se as mercadorias aparecem aos consumidores como se fossem dotadas de vida
própria, de forma fantasmagórica, a associação destas a uma marca amplia sobremaneira a
dimensão de fetiche que as reveste.
Interessa apontar que ―A marca e as promessas mediatas e imediatas do valor de uso
nela contidas não precisam absolutamente referir-se à característica particular da mercadoria
designada por ela‖ (Haug, 1997: 38). Este fator, explorado até o extremo pelo marketing,
possibilita que a mercadoria, ou a marca, quando se trata de grandes corporações, prometam
coisas irrealizáveis do ponto de vista do consumo de um bem.
Fontenelle (2002) no seu estudo sobre o McDonald‘s destaca as brigas legais e o
quanto de dinheiro circulou na constituição desta marca, briga pelo direito de propriedade de
um nome que se constituiria em um dos mais conhecidos mundialmente. Ao se referir a
propriedade de um nome como marca, Haug (1997: 40) destaca que:
O gasto de ―muitos milhões de marcos‖ na elaboração de propaganda de uma marca
que pretende apreender e privatizar uma palavra do vocabulário e da consciência
universal, a fim de fazer dela um nome que caracterize apenas a própria mercadoria, é
considerado pelo capital uma compra absolutamente usual e, evidentemente, o que foi
assim adquirindo, sua propriedade privada. As palavras que se tornaram marcas por
meio da propaganda são consideradas, então, parte dos bens da empresa.
Aqui, assumem importância fundamental aspectos até então assimiláveis aos
produtos de luxo: a embalagem, a denominação, os aspectos externos, o design. A imagem
passa a ser fundamental no estímulo ao consumo.
74
Em relação ao McDonald‘s conferir interessante trabalho de Isleide Fontenelle (O nome da Marca, 2002).
107
Interessa destacar que ―essa imagem reúne ao mesmo tempo a expressão e o
instrumento de ampliação do poder de mercado‖ e ―(...) não está fundamentada nos objetos,
serviços e instalações‖, mas, ―no cálculo da ‗recepção‘ pelas massas consumidoras‖. Este
movimento deságua na ―autonomização‖ da imagem apontada por Debord (1997) e por
Jameson (2004). Desta forma, a marca ―bem sucedida‖ irradia este sucesso para um número
cada vez maior de mercadorias que não tem nenhuma relação produtiva com a origem da
própria empresa. A marca transfere uma ―credibilidade‖ às mercadorias que não precisam, a
rigor, nem mesmo comportar o valor de uso que prometem. Assim, ―A concorrência
deslocou-se para o plano da imagem. Agora uma imagem concorre com outra imagem com
investimentos que chegam a bilhões‖. (Haug, 1997: 43).
Interessante como a ―opinião de massas‖ adquire importância neste momento, o que
levou à necessidade de se criar o significado mesmo de ―massas‖ e a influência direta de
―personalidades‖ através dos seus gostos, preferências, palpites, na ―opinião das massas‖. Em
relação aos produtos, destaca-se que ―De um ponto de vista extremamente formal da técnica
de marcas, qualquer coisa pode ser considerada objeto formador de opiniões‘, que tem sua
realidade no ponto de vista da agência de publicidade a espera de encomendas‖ (Haug, 1997:
43). Assim, a função ideológica da propaganda passa a ser sentida em toda a sua dinâmica, em
especial quando este objeto se trata de pessoas, de nomes que se submetem agora de forma
fetichizada, a aprovação da população.
Aqui surge um outro elemento importante, abordado por Adorno quando trata da
indústria cultural, é preciso formar a opinião das massas, a necessidade da ―formação‖ ou
formatação da ―cultura‖ de massas é patente nesta fase do capital, isto, tanto do ponto de vista
político quando do ideológico e econômico. Chauí (2006) aponta como a influência de
personalidade ou se supostos detentores da ―verdade‖ como médicos, jornalistas, mediadores
de programas de TV, dentre outros, é um recurso usado pela mídia para formar a ―opinião das
massas‖, seguindo um padrão de mercado, estudado e avaliado como o mais propício. Neste
sentido, diz Chauí (2006: 5/6):
As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais
consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, de cuidado
com o corpo (ginástica, cosmético, vestuário, medicamentos), de jardinagem,
carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Os
entrevistados e debatedores, os competidores de tornei de auditório, os que aparecem
no noticiário, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas
preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes
até hábitos sociais. (...) programas de entrevistas no rádio e na televisão que ou
simulam uma cena doméstica um almoço, um jantar ou se realizam nas casas dos
108
entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é
exibida, os hábitos cotidianos são descritos, e comentados, álbuns de família ou a
própria são mostrados ao vivo e em cores.
Fenômeno importante é como este instrumento ideológico usado para realizar o valor
das mercadorias produzidas em massa mostrou-se bastante eficiente na formação da ―imagem
de personalidades políticas‖. A propaganda passou a ser um recurso indispensável na
formação da opinião publica sobre determinados assuntos e pessoas. O exemplo do
fascismo é um caso emblemático. Mas, também o marketing político é, atualmente, uma
unanimidade na ―fabricação‖ de processos eleitorais. Neste sentido ―as operações da
propaganda comercial são empregadas pela propaganda política, dobrando-as aos
procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo‖ (Chauí, 2006: 43). A tarefa do
marketing político‖ é vender, como qualquer outra mercadoria, a imagem do político e
―reduzir o cidadão a figura privada do consumidor‖. E, para que haja uma identificação do
consumidor com o produto - o político - o marketing ―produz a imagem do político enquanto
pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias,
esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação‖. (Idem). A estetização
da política segue os mesmo rumos que a estética das mercadorias em geral.
As marcas e o ―império das imagens‖ parecem que vieram pra ficar, pelo menos
enquanto perdurar a atual fase do capital. Fase em que a estética da mercadoria, complexo
indispensável para a realização do valor, assume uma forma muito mais agressiva e
destrutiva.
3.1.1.3 “Marcas e não produtos” – grandes corporações e imposição das imagens
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos de mercado.
Carlos Drummond de Andrade (do poema: Eu, etiqueta).
Na fase do capitalismo tardio a ―empresa multinacional tornou-se a forma organizativa
determinante do grande capital‖. Esta fase marca, nas palavras de Mandel (1985: 393), ―um
período histórico do desenvolvimento do modo capitalista em que a contradição entre o
109
crescimento das forças produtivas e a sobrevivência das relações de produção capitalistas
assume uma forma explosiva. Essa contradição leva a uma crise cada vez mais acentuada
dessas relações de produção‖.
Mandel (1985: 223/226): destaca ainda que ―As forças que desempenham um papel
muito importante nesse processo, e que nos ajudam a apreender as diferenças quantitativas
entre o desenvolvimento das empresas no período tardio do capitalismo e seu
desenvolvimento no período do imperialismo clássico‖ são as seguintes: 1. a produção passa a
se dar em um número cada vez maior de setores, em escala internacional, tanto pelo limite do
mercado interno quanto pelo volume de capital necessário à produção; 2. as empresas
oligopolistas e monopolistas passam a dispor de um volume maior de capital através dos
surperlucros que realizam, possibilitando seu autofinanciamento e supercapitalização; 3. os
superlucros assumem em geral, nesta fase do capitalismo, a forma de superlucros
tecnológicos; 4. forças sócio-políticas e econômicas provocaram um declínio relativo das
exportações de capital para regiões subdesenvolvidas; 5. é reforçada a tendência
contemporânea de substituir as exportações de mercadorias pelas exportações de capital, com
o objetivo de evitar as restrições alfandegárias e; 6. os investimentos diretos no exterior são
incentivados através da especialização e ―racionalização‖ do controle do capital, permitindo
aos capitalistas especializarem-se cada vez mais na área da atividade reprodutiva ―pura‖.
A entrada na fase tardia do capitalismo implicou em mudanças substantivas na
sociedade, mudanças estas que inauguram, conforme destacamos rapidamente na introdução
desta tese, a ―predominância do capital portador de juros no centro das relações econômicas e
sociais‖ (Chesnais, 2005). Esta predominância no processo de acumulação ―envolve a
economia e a sociedade, a política e a cultura, vincando profundamente as formas de
sociabilidade e o jogo das forças sociais‖ (Iamamoto, 2008: 107).
Chesnais (2005) chama atenção a que a reconstituição
75
do capital portador de juros e
a mundialização financeira a que ela conduz pode ser compreendida a partir da ―crise do
modo de regulação fordista‖ (denominação dos economistas da Escola de Regulação),
considerada pelos marxistas como ―o ressurgimento das contradições clássicas do modo de
produção capitalista mundial, a saber, a superprodução e o sobre-investimento‖ (Chesnais,
2005: 38. nota 4). Portanto, indica o mesmo autor; ―A reconstituição de uma massa de
75
O autor em questão destaca que no início dos anos 80 o capital portador de juros reaparece e aumenta o seu
poder, acompanhado pelo ressurgimento de mercados especializados, como os ―mercados de títulos de
empresas ou mercados de obrigações. Eles garantiram ao capital portador de juros os privilégios e o poder
econômico e social particular associado ao que se chama de liquidez‖. (Chesnais, 2005: 37).
110
capitais procurando se valorizar fora da produção, como capital de empréstimo e de aplicação
financeira, tem por origem o esgotamento progressivo das normas de consumo e a baixa
rentabilidade dos investimentos industriais (fator visível nas estatísticas)‖. (Idem). Estes dois
últimos elementos estão na origem da busca por novos padrões de consumo que garantam a
realização do valor produzido.
Harvey (2001: 140), por sua vez, destaca que em meados dos anos 60 o fordismo
dava indícios de ―problemas sérios‖, o que vai culminar com o surgimento de uma ―série de
novas experiências no domínio da organização industrial e da vida social e política‖,
experiências estas que, segundo ele ―podem representar os primeiros ímpetos da passagem
para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de
regulamentação política e social bem distinta
76
‖. O novo regime de acumulação, marcado por
um confronto direto com a rigidez do fordismo é considerado por Harvey (Id) de ―acumulação
flexível‖ e caracteriza-se ―pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas
altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional‖. Assim, a
acumulação flexível:
Envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual, tanto em setores
como em regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego
no chamado ―setor de serviços‖, bem como conjuntos industriais completamente
novos em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a ―Terceira Itália‖, Flandes,
os vários vales e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades
dos países recém industrializados). Ela também envolve um novo movimento que
chamarei de ―compressão do espaço-tempo‖ no mundo capitalista os horizontes
temporais da tomada de decisões privada e publica se estreitaram, enquanto a
comunicação via satélite e a queda dos custos de transportes possibilitaram cada vez
mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variado.
(Harvey, 2001: 140).
A esta fase do capitalismo correspondem uma determinada forma de produção e de
consumo de mercadorias (como destaca Harvey), bem como, novas configurações da questão
social. No que tange as mudanças na arena do consumo, Harvey (2005), como apontamos
anteriormente, destaca: a mobilização da moda em mercados de massa (em oposição a
mercados de elite) e a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços.
O que se observa a partir de então é que as dificuldades em realizar o valor
impulsionam cada vez mais o desenvolvimento de técnicas e meios de incentivar o consumo,
76
Há uma polêmica quanto à emergência ou não de um novo regime de acumulação. Cf. Harvey (2001),
Chesnais (2005) e Husson (2001).
111
que recorrem, dentre outros aspectos, a elementos estético-ideológicos com forte influência na
―padronização de comportamentos‖. Importante esclarecer que estas técnicas e meios, mesmo
que tenham um impacto direto sobre o consumo não são suficientes para evitar, por exemplo,
as crises de superprodução, entretanto, o impacto que esta dinâmica (forma de consumir,
desejo de consumo, apropriação de elementos dos desejos e fantasias dos sujeitos e devolução
via propaganda) tem nos indivíduos sociais, consumidores ou não, influencia sobremaneira a
forma como reagirão a aspectos importantes e contraditórios das relações sociais e mesmo
como reagirão diante das crises e das promessas de saída das crises feitas pelos ―apologistas
do capital‖.
Em relação ao desenvolvimento‖ das marcas, objeto deste item, observa-se que
mesmo que estas tenham surgido para dar identidade a um produto ou a determinados
produtos, ―desligam-se‖ cada vez mais do corpo das mercadorias específicas e vinculam-se
cada vez mais às grandes corporações. Este movimento é possível graças à contradição
inerente à própria mercadoria, contradição abordada anteriormente e que separa dois
movimentos opostos: compra e venda, no tempo e no espaço. Em outras palavras, as marcas
hoje representam não a mercadoria X ou Y, mas corporações X e Y que vendem uma
multiplicidade de mercadorias e serviços e em alguns casos: estilos de vida, modo de ser e
pensar, tipos de comportamento. A Nike, por exemplo, não vende apenas tênis, mas vende
roupas esportivas, promove shows, financia bandas de rock, times de basquete, jogadores de
futebol, maratonistas, exposições de arte e etc. A coca-cola divulga a si mesma como um
―modo de ser‖.
Para Fontenelle (2002), as marcas, atualmente, autonomizam-se a tal ponto que se
tornam um enigma indecifrável. Por outro lado, ela aponta que, o mais importante como
recurso de imposição da imagem não são as propagandas em si, pois estas mudam
constantemente o seu conteúdo, mas a ―marca‖ enquanto identidade que deve permanecer e
por si só, parecer dotada de significado.
Fontenelle diz ainda que há um processo de transmutação ―da marca‖, onde se observa
que, ―num dado momento a marca usa elementos da realidade social para construir sua
imagem; em um outro, é a própria realidade social que se refere à marca para definir a si
mesma‖ (Fontenelle; 2002: 280). Neste sentido, a autora em questão diz que esse processo
―tem sua gênese em um conceito mais antigo e que já vem de uma longa história que culmina
na ‗sociedade das imagens‘ contemporânea: ele responde pelo nome de fetichismo‖ (Idem).
112
No produto de marca encontra-se sobrevalorizado o que é em si um pressuposto da
sociedade capitalista, que o valor de troca se sobreponha ao valor de uso. A imagem se torna
suficiente para a aceitação de determinada mercadoria, as características particulares da
mercadoria dissolvem-se em um nome, um símbolo, uma marca. Nas palavras de Klein
(2002:31):
No final da década de 1940 surgiu a consciência de que uma marca não era apenas um
mascote, um slogan ou uma imagem impressa na etiqueta do produto da empresa; toda
a empresa podia ter uma identidade de marca ou uma ‗consciência corporativa‘, como
na época foi denominada esta efêmera qualidade. Com a evolução dessa idéia, o
publicitário deixou de ver a si mesmo como um vendedor e passou a se considerar o
rei-filósofo da cultura comercial‘.
A ―preponderância‖ da imagem sobre o produto exige que a primeira se espalhe,
invada todos os espaços vazios e se retroalimente continuamente com elementos dos desejos,
sonhos e vontades dos consumidores.
Se as marcas e os recursos propagandísticos utilizados na sua divulgação são,
atualmente, parte constitutiva de qualquer mercadoria, os recursos destinados a este setor são
cada vez maiores e nos últimos anos as empresas não investiram mais em propaganda que
associavam suas marcas ao estilo de vida, como encontraram saídas para diminuir o custo da
produção, tornando seus produtos mais competitivos e possibilitando o investimento maior
em marketing.
No primeiro caso, as marcas investem cada vez mais no marketing de ―estilo de vida‖,
usando propagandas que associam suas marcas à liberdade, à arte, à cultura, à política
progressista, às reivindicações de minorias etc... Financiam projetos assistenciais, fazem
caridade e usam ícones do esporte e da música como seus garotos propagandas‖. Harvey
(2001: 260) destaca a este respeito que A competição no mercado da construção de imagens
passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as empresa. O sucesso é tão claramente
lucrativo que o investimento na construção da imagem (patrocínio das artes, exposições,
produções televisivas e novos prédios, bem como marketing direto) se torna tão importante
quanto o investimento em novas fábricas e maquinários‖.
No segundo caso, e como fundamento do primeiro, para resistir à queda tendencial na
taxa de lucro e aos abalos provocados pelas crises, as grandes marcas (corporações) passam a
terceirizar seus produtos e, neste caso voltam-se para as chamadas Zonas de Produção para
Exportação - ZPE, que se instalam nos países pobres (em especial na Ásia e América) e
produzem, dadas as condições de produção (força de trabalho a baixíssimos custos, ausência
113
de leis trabalhistas e incentivos fiscais), a preços mais competitivos que se os produtos fossem
produzidos diretamente pelas ―empresas de marca‖. Esta se tornou uma recorrência comum a
praticamente todas as grandes corporações na década de 90
77
, sendo que para algumas
empresas este já era um modelo conhecido.
Klein aponta este fenômeno como uma antecipação de algumas grandes corporações,
ao que se evidenciaria mais tarde, de que era mais lucrativo vender ―marcas e não produtos‖.
Entendemos, por outro lado, que, o processo de reestruturação produtiva que se
dissemina por praticamente todo o mundo nas décadas de 80/90, inicia-se nessas grandes
corporações e é isso que possibilita encontrarem saídas à crise, via terceirização da produção,
demissões em massa, deslocamento das empresas para países ―mais atrativos‖, incorporação
de novas tecnologias, não se tratando de uma simples opção inteligente por marcas em vez de
produtos. O poder das corporações permite que elas passem a outros (terceirizados) os custos
e os problemas da produção.
Apesar de a troca parecer, a partir da reestruturação por que passam estas corporações,
como algo desvinculado da produção, este é um fenômeno ilusório. Os grandes investimentos
em marketing foram possíveis porque os produtos das grandes marcas (ou produtos de
marca) passaram a ser produzidos a baixíssimos custos. Destarte, em relação à troca é
equívoco considerá-la como autônoma e desvinculada da produção, como pontuava Marx
(1978b: 115): ―A troca aparece como indiferente junto à produção e indiferente em relação a
ela, na última etapa, quando o produto é trocado, de imediato, para o consumo‖. Mas, como
não troca sem produção, ―A troca aparece, assim, em todos os seus movimentos
compreendida na produção ou por ela determinada‖.
Um fenômeno corrente com a financeiração da economia, e que evidencia o fetiche do
capital como expressão máxima da sociedade, é que grandes corporações passam a destinar
parte do seu capital para o setor especulativo, o que lhes proporciona retornos cada vez
maiores. Um caso emblemático a ser considerado foi a Eron, uma das maiores companhias do
setor de energia dos EUA, falida em finais de 2001. Este caso é emblemático para se analisar
como as transações financeiras estão cada vez mais sendo destinadas à especulação e cada vez
menos à movimentação de capitais que visam o financiamento da produção de riqueza real e,
77
No nosso entendimento isto não é decorrente da crise da marca como defende Klein (2002), mas de um
processo muito mais amplo de reestruturação produtiva.
114
como o capital especulativo se sustenta (por um período) em uma Imagem‖, uma irrealidade
que ―ocupa‖ o lugar do real.
A ERON, dentre outras coisas (como fraudes contábeis comprovadas posteriormente)
passou a trabalhar com a ―contabilidade valor-hipotético-a-futuro‖ como um meio para
garantir ganhos sobre produções futuras e, neste caso, vendia ações referentes à produção que
ainda nem existia e como ficou comprovado futuramente jamais veio a existir. Algumas falas
do filme ―Eron: os caras mais espertos da classe‖ são interessantes para ilustrar este exemplo:
―A contabilidade valor-hipotético-a-futuro permitia a Eron obter potenciais lucros o mesmo
dia em que assinava uma transação. Sem importar realmente quanto dinheiro entrara e que
ela dizia ter‖. Referente ainda a este tipo de ―contabilidade‖ uma executiva entrevistada no
filme diz: ―Muito subjetivo...e muito...permitia muita manipulação‖. A respeito de uma
transação envolvendo uma planta energética que seria construída futuramente, um dos
entrevistados do filme, comenta: ―Dizia que iria vender energia desta planta energética em
dez anos por x quantidade por kilowates, e não tinha jeito de que alguém demonstrasse que
seria feito‖. Com a falência da Eron, jamais fora construída a planta energética, que mesmo
antes de existir funcionou como investimento lucrativo (especulativo) para a companhia.
Assim, diferente do que se apresenta a nós no mundo da aparência, não se pode
desvincular troca de produção. A distância temporal na realização destes dois momentos torna
possível que haja uma desconexão entre eles (e ganhos exorbitantes aos especuladores),
entretanto, as crises econômicas os igualam, com o desaparecimento, por exemplo, ―da noite
para o dia‖ de somas vultuosas de capital que não correspondem a riqueza material.
Nestes termos, é interessante observarmos que as grandes corporações voltam-se para
a imagem, porque alguém passa a fazer o serviço sujo por elas‖ e é ―que entram as
zonas de livre comércio. Na Indonésia, na China, no México, no Vietnã, nas Filipinas e em
outros lugares, as zonas de processamento de exportação (como são chamadas essas áreas)‖
surgiram, ―como importantes produtoras de roupas, brinquedos, calçados, eletrônicos,
maquinaria e até carros‖ (Klein; 2002: 226).
O que é conclamado no mundo do marketing como o grande salto da década de 90, de
que se produzem ―Marcas não produtos!‖ (que ―tornou-se o grito de guerra de um
renascimento do marketing liderado por uma nova estirpe de empresas que se viam como
agentes de significado em vez de fabricantes de produtos‖ (Id: 45)) esconde uma realidade
não tão atraente como os comerciais de TV que anunciam os produtos de marca. Desta forma,
115
não são raros escândalos que envolvam marcas famosas como a Nike, a Coca-cola,
McDonalds e outras tantas em caso de denúncias de favorecerem-se de trabalho infanto-
juvenil, de trabalho semi-escravos, além dos casos de agressão e destruição do meio ambiente
e etc.
De acordo com a concepção de ―Marcas não produtos!‖ é um atraso que a mesma
corporação una produção e distribuição. Portanto, conforme afirma Klein:
(...) as corporações não devem gastar seus recursos finitos em fábricas que exigirão
manutenção física, em máquinas que sofrerão corrosão ou funcionários que
certamente envelhecerão e morrerão. Em vez disso, elas devem concentrar seus
recursos nos elementos utilizados para construir suas marcas; isto é, patrocínios,
embalagem, expansão e publicidade. Elas devem também gastar em sinergias:
comprar canais de distribuição e varejo para levar sua marca às pessoas. (Id: 220).
Desta forma, empresas atravessam o globo em busca de fábricas que possam produzir
(ou montar) seus produtos a preços tão baixos que possibilitem quadruplicar sua margem de
lucro, justificando inclusive o aumento que vem experimentando o investimento em
marketing. Para que corporações famosas possam pagar somas vultuosas para personalidades
do esporte ou do cinema norte-americano divulgarem suas marcas é necessário que
trabalhadores que produzem para a Nike, por exemplo, através de terceirizadas, ganhem
menos de meio dólar
78
por hora.
O afastamento das grandes empresas da produção (afastamento direto) aumentou sua
margem de lucro e evitou problemas com regulamentação trabalhistas, por outro lado,
possibilitou que pudessem impor condições precárias de trabalho às fábricas montadoras e
mantivessem, dessa forma, o controle da própria produção.
A Nike, que é o ―protótipo de marca liberta do produto‖, tem seu modelo de produção
terceirizado e barato, copiado por várias empresas. Nesse modelo as ―empresas de marca‖
fecharam suas fábricas nos países de origem, demitiram os trabalhadores e transferiram a
produção para fábricas terceirizadas no Japão (caso da Nike), Coréia do sul (Vans Warped),
Ásia (Adidas). Em alguns casos mantêm uma pequena fábrica que funciona como o ―centro
de tecnologia global‖, que desenvolve pesquisa, dita a qualidade dos produtos, sendo
responsável por um percentual muito pequeno da produção. Com isso elas se
desresponsabilizam dos ―problemas‖ com sua própria força-de-trabalho.
78
Nos Estados Unidos e Alemanha, trabalhadores do setor de vestuário ganhavam em média US$ 10,00 e US$
18,50 por hora quando grupos deste setor fecharam suas fábricas e foram para países como a China, onde
trabalhadores ganham pelo mesmo serviço menos de meio dólar por hora. (cf. Klein; 2002).
116
Parte da produção da Nike é feita na Zona de Processamento de Exportação de Cavite,
na cidade de Rosário (maior zona de livre comércio das Filipinas), com salários abaixo de
US$ 0,20 por hora e condições que estão longe das condições de liberdade e prazer que as
marcas que estes trabalhadores ―produzem‖ anunciam em seus comerciais. As fábricas cada
uma com seu próprio portão e seu próprio segurança‖, são distribuídas de forma a comportar
o máximo de produção no espaço a elas reservado. Em Cavite os trabalhadores montam ―tênis
de corrida Nike, pijamas Gap, monitores de computador IBM, jeans Old Navy (...)‖ produtos
que são repassados para as grandes corporações a um preço muito baixo.
Este é o lado avesso (ou direito) das grandes marcas que se mostram com slogans de
―estilos de vida‖ e propagandas progressistas nos apelos de marketing. As ZPEs são instaladas
nos países pobres com o apelo político (endossado pelas autoridades locais) de que serão
fonte de geração de emprego, promoção de desenvolvimento para aqueles países e promoção
do comércio com as nações desenvolvidas. Foi com este argumento que em 1964 o Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas adotou uma resolução que endossava tais zonas. A
partir da década de 80, entretanto, os países ―ditos em desenvolvimento‖, passam a oferecer
condições favoráveis para atrair as ZPEs, como aconteceu com a Índia que suspendeu (na
década de 80), ―os impostos por cinco anos para as empresas que produzissem em suas zonas
de baixos salários‖. A Índia foi seguida por outros países asiáticos
79
.
Na mesma linha a Levi Strauss, reestruturou sua produção e apelou para terceirizadas.
Em 1997 e 1998 a empresa fechou um total de 22 fábricas localizadas na América do Norte,
resultando na demissão de 16.310 trabalhadores. Com o fechamento das fábricas a Levis
voltou-se quase que inteiramente para o gerenciamento de marca e o marketing e para o
desenvolvimento de projetos de produtos como meio de atender aos desejos e as necessidades
de roupas informais dos consumidores de marcas. Passaram, por outro lado, a adquirir seus
79
Segundo Klein, Desde então, a indústria da zona de livre comércio explodiu. Existem 22 zonas econômicas
só nas Filipinas, empregando 459.000 pessoas muito mais que os 23.000 funcionários da zona econômica em
1986, e mais que os 229.000 que já existiam em 1994. A maior economia desse tipo é a China, onde
estimativas conservadoras apontam para 18 milhões de pessoas em 124 zonas de processamento de
exportação. A organização Internacional do Trabalho afirma que existem pelo menos 850 ZPEs no mundo, no
total, mas esse número provavelmente está mais próximo de 1.000, espalhadas em centenas de países e
empregando aproximadamente 27 milhões de trabalhadores. A Organização Mundial do Comércio estima um
valor entre US$ 200 e US$ 250 bilhões em fluxo de comércio nessas zonas. O número de fábricas instaladas
nesses pequenos parques industriais também está se expandindo. Na verdade, as fábricas de livre comércio ao
longo da fronteira dos Estados unidos com o México em espanhol, maquiladoras (de maquilar, ‗maquiar‘) –
provavelmente são as únicas estruturas que proliferam com a mesma velocidade das lojas Wal-mart: Havia
789 maquiladoras em 1985. Em 1995, eram 2.747. Em 1997, 3.508 maquiladoras empregavam cerca de
900.000 trabalhadores‖. (Klein; 2002: 230).
117
produtos de empresas contratadas em todo o mundo, sendo que estas empresas irão
desempenhar as mesmas funções das fábricas antigas de propriedade da Levi‘s, entretanto,
seus trabalhadores não serão empregados da Levi Strauss e jamais ganharão o que os antigos
trabalhadores que fabricavam os mesmos produtos que eles ganhavam. (Cf. Klein, 2002).
Com a atual crise econômica, os trabalhadores diretos das grandes corporações, têm
seus empregos ameaçados e, diante disto sem nada para negociar e com o enfraquecimento
dos sindicados se submetem à redução de salários (sem redução de tempo de trabalho), férias
coletivas e, o que vinha ocorrendo mesmo antes da crise à perda de garantias trabalhistas
conquistadas em outro momento. Os trabalhadores terceirizados, que representaram uma
diminuição nos custos de produção, terão suas condições de trabalho, os que conseguirem
manter seus empregos, ainda mais precarizadas.
Neste sentido: ―Cada vez mais as multinacionais de marca Levi‘s, Champion, Wal
Mart, Reebok, The gap, IBM e a General Motors insistem que são apenas como qualquer
um de nós: caçadores de pechinchas em busca do melhor negócio no shopping global‖ (Klein;
2002: 226).
Atualmente, é praticamente impossível usarmos qualquer coisa que não tenha marca,
até o comércio que se desenvolve fora dos limites das grandes corporações o chamado
comércio informal, sobrevive da cópia de grandes marcas e no Brasil este é um fenômeno
evidente. A imposição das marcas é uma expressão marcante de um mundo onde o fetiche é
cada vez mais sua necessária expressão e a imagem a sua vedete.
No mundo da concorrência por empregos não basta que o trabalhador esteja disponível
ao capital, é necessário que lhe convença de suas qualidades, é necessário que se venda,
enquanto mercadoria e para isso o mercado ―exige‖ que ele também tenha uma marca, uma
imagem que estabeleça sua ―identidade‖. Desta forma, ―adquirir uma imagem‖ através de
recursos diversos que vão do uso de roupas de grifes à adoção de determinados
comportamentos tornou-se um ―investimento‖ individual recorrente em épocas de
concorrência acirrada por empregos. Harvey (2001: 260/1) destaca que os investimentos na
―auto-apresentação nos mercados de trabalho‖ funcionam também como parte integrante na
busca de ―identidade individual, auto-realização e significado na vida‖. Neste sentido,
proliferam-se as ―consultorias de imagem pessoal‖, os cursos de ―comportamento ideal‖
diante de seleções de emprego, bem como os livros e programas de auto-ajuda (televisivos)
com dicas de como melhorar sua imagem e auto-estima na busca por um emprego.
118
Por outro lado as grandes corporações não buscam consumidores para seus
produtos, buscam fiéis seguidores para suas marcas e nas chamadas ―marcas de estilo de vida
de elite‖, como a Nike, Disney, aglomerados Starbucks isso é mais evidente. Em alguns casos,
em especial no mundo jovem, não se consome a marca, se venera a marca e se confunde com
ela, sua identidade parece mesclar-se à dela, como diz Drummond: agora sou anúncio,/ ora
vulgar ora bizarro,/ em língua nacional ou em qualquer língua/ (qualquer, principalmente)”.
Para muitos dos consumidores fiéis destas marcas: ―nenhum preço é alto demais a pagar por
esses bens de grife, mas na verdade, simplesmente comprar os produtos é um relacionamento
insuficiente. Os compradores obcecados com a grife têm adotado uma abordagem quase
fetichista do consumo, em que a marca adquire o poder de um talismã‖ (Klein; 2002: 165). O
que a autora chama de relação quase fetichista é na verdade uma das expressões mais
contundentes de fetiche da mercadoria e além de refletir mudanças substantivas na produção,
demonstra não que a marca substitua o produto, mas que o capital encontrou uma forma
eficiente de impulsionar a realização do valor produzido, a marca ou a imagem ―ilustra, por
assim dizer, o estágio ‗puro‘ da forma mercadoria (...)‖.
119
CAPÍTULO 4 - TEMPO DO CAPITAL, TEMPO DA VIDA a obsolescência artificial
das mercadorias e das relações sociais contemporâneas
Sim, camarada, é hora de jardim
e é hora de batalha, cada dia
é sucessão de flor e sangue,
nosso tempo nos entregou amarrados
a regar os jasmins
ou a dessangrar-nos numa rua escura,
a virtude ou a dor se repartiram
em zonas frias, em mordentes brasas,
e não havia outra coisa que eleger,
os caminhos do céu,
antes tão transitados pelos santos,
estão hoje povoados por especialistas.
Pablo Neruda (do Poema: Sim, camarada).
O tempo (social e histórico) assume uma dinamicidade e fluidez no capitalismo
80
muito distinta dos outros modos de produção. O interessante a observar é que esta
dinamicidade está presente de forma marcante não no tempo de produção, distribuição e
consumo de mercadorias, ou no tempo de rotatividade do capital, mas em especial, e de forma
muito similar a estes outros tempos,
81
também no tempo cotidiano das pessoas, no tempo de
vida de cada um.
Tal dinamicidade se justifica por assumir o tempo, nesta sociedade um ―lugar‖ central,
seja na produção (distribuição e consumo) de mercadorias, seja na reprodução do capital ou
na produção e reprodução dos próprios indivíduos sociais
82
.
80
Nas partes terceira e quarta de ―O capital‖ (Livro I, volume I), intituladas ―a produção da mais valia absoluta‖
e ―a produção da mais valia relativa‖ em especial quando Marx trata da jornada de trabalho, fica clara a
centralidade do tempo nas lutas entre trabalhadores e capitalistas e, especialmente no período de consolidação
da ―indústria moderna‖, é patente que a luta pela redução da jornada de trabalho e pela regulamentação do
trabalho de crianças e mulheres foi um marco nas conquistas do movimento operário. Entretanto, o que se tem
observado, com a crise atual, é que, em alguns setores da economia (por exemplo, no automobilístico),
capitalistas e trabalhadores (com a centralização de seus sindicatos) têm confluído para propostas de redução
da jornada de trabalho com redução de salários (como estratégia de evitar o desemprego neste setor evitar o
inevitável), o que aponta para uma nova dimensão (expressão) do tempo nas negociações ―trabalhistas‖
81
Mészáros (2007: 25) destaca quanto ao ―tempo do capital‖ que ―A única modalidade de tempo em que o capital
pode se interessar é o tempo de trabalho explorável. Isso se verifica mesmo quando a exploração cruel do
tempo de trabalho se torna um anacronismo histórico, em virtude do desenvolvimento potencial da ciência e
da tecnologia, a serviço da necessidade humana. Contudo, uma vez que o capital não pode contemplar essa
alternativa, pois sua realização exigiria transcender as limitações fetichistas estruturais de seu próprio modo de
operação, o capital se torna o inimigo da história. Essa é a única maneira pela qual o capital pode presumir
desembaraçar-se de sua situação objetiva de anacronismo histórico‖.
82
Harvey (2001, 185-289), no debate que faz sobre a experiência do espaço e do tempo, diz que a crise de 1847-
1848 inaugura um reajuste radical do sentido de tempo e espaço, na vida econômica, política e cultural, nunca
experimentado antes, redimensionamento este que está diretamente ligado ao nascimento do modernismo. Em
120
Entretanto, as experiências temporais não estão desconectadas das experiências
espaciais. E o ―lugar‖ que os sujeitos sociais ocupam nas sociedades de classe é determinante
(um determinante espacial fundamental) nas suas experiências particulares e coletivas de
tempo.
O desenvolvimento histórico do capitalismo tem sua dinâmica impulsionada por uma
particular relação entre tempo e espaço: tempo de rotatividade do capital, tempo necessário à
produção de determinada mercadoria, tempo livre; expansão capitalista, mundialização do
capital, divisão cnica do trabalho, eliminação de barreiras espaciais e etc. É assim que o
―domínio dos espaços e dos tempos é um elemento crucial na busca do lucro‖ (Harvey, 2001:
2007). Desta forma, sempre que falamos de tempo, falamos também de um determinado
espaço
83
. Portanto, não convergimos nem com as análises de que o espaço é irrelevante diante
do tempo, para se entender e explicar as relações sócio-políticas, econômicas e culturais na
sociedade capitalista; nem tampouco, com análises que defendem que o tempo, na
contemporaneidade, sucumbiu à predominância do espaço.
Harvey (2001: 220) utiliza o conceito compressão do tempo-espaço‖ para indicar
processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo, a ponto de,
segundo ele, ―nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o
mundo para nós mesmos‖.
O tempo ao qual nos referimos neste capítulo é ―o tempo de domínio do capital‖,
tempo em que as relações sócio-econômicas e políticas são mediadas por uma dinâmica
temporal fundada na lógica da produção mercantil, mas além destas relações, também as
práticas culturais e as experiências cotidianas dos indivíduos são atravessadas por esta mesma
dinâmica.
Ao justificar o conceito de ―compressão do tempo-espaço‖ Harvey (2001: 219) nos
indica que o usa por considerar que ―fortes indícios de que a história do capitalismo tem se
finais do século XIX e início do século XX experimenta-se um novo movimento que ele denomina de
compressão do tempo/espaço decorrentes de mudanças sócio-políticas e com fortes alterações na geopolítica
mundial. Entretanto, no s segunda guerra mundial, configura-se o que o autor chama de ―nova rodada da
compressão do tempo-espaço‖, movimento que experimentamos até hoje e que vai, aliado a outros elementos,
definir os contornos do que Harvey denomina a condição pós-moderna. Para Harvey (2001: 206) o espaço e o
tempo podem ser compreendidos na sua relação com a ação social, ao que o autor defende a idéia de que
relações de poder sempre estão implicadas em práticas temporais e espaciais.
83
Harvey (2001: 207) credita a Lefebvre ―a idéia de que o domínio do espaço é uma fonte fundamental e
pervasiva de poder social na e sobre a vida cotidiana‖. Assim, nos indica Harvey, que ―o modo como essa
forma de poder social se articula com o controle do tempo, bem como com o dinheiro e outras formas de poder
social, requer uma maior elaboração‖.
121
caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que venceu as barreiras
espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher sobre nós‖. Assim, acrescenta o
autor citado (Idem) ―À medida que o espaço parece encolher numa ‗aldeia global‘ de
telecomunicações e numa ‗espaçonave terra‘ de interdependências ecológicas e econômicas
para usar apenas duas imagens conhecidas e corriqueiras , e que os horizontes temporais se
reduzem a um ponto em que existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de
aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e
temporal‖.
Nesta dinâmica o ―tempo‖ aparece como um dos maiores inimigos dos homens
contemporâneos, inclusive nas suas relações cotidianas: lutar contra o tempo - o tempo
presente - é uma luta titânica que aqueles que vivem a ―tirania do tempo‖ (do trabalho
84
, do
desemprego, da formação intelectual, do estudo, do lazer e etc.) enfrentam praticamente todos
os dias. Como nos indica Mészáros (2007: 33):
Indivíduo nenhum e nenhuma forma concebível de sociedade hoje ou no futuro
podem evitar as determinações objetivas e o correspondente fardo do tempo histórico,
bem como a responsabilidade que necessariamente emerge de ambos. Em termos
gerais, talvez a maior acusação contra nossa ordem social dada é que ela degrada o
fardo inescapável do tempo histórico significativo o tempo da vida tanto dos
indivíduos como da humanidade à tirania do imperativo do tempo reificado do
capital, sem levar em conta as conseqüências.
Qual o impacto que tem este processo nas articulações entre os diferentes elementos da
cotidianidade? E onde se encontram as tensões postas por este mesmo movimento entre
alienação e desalienação?
As questões formuladas acima apontam para o entendimento de que a imposição do
tempo do capital como regulador da vida na cotidianidade não é um processo fechado e sem
saídas. Há fissuras. Seria muito, neste estudo, dar conta de tal debate da forma que ele carece,
como o demonstramos interessa-nos entender a constituição de um ―campo especial de
necessidades mercantis na contemporaneidade. Entretanto, falar do tempo de vida das
mercadorias e das relações sociais é peça central em nossa tese, posto que uma marca do
complexo de necessidades que pretendemos entender é a sua descartabilidade, sua
obsolescência, aliás, marca do nosso tempo.
Como nos indica Kehl (2008) no artigo ―o tempo e a depressão‖: ―o homem
contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de
84
Harvey (2001) nos dá interessantes exemplos de como ainda hoje as tensões no que se refere ao controle do
tempo de trabalho são fundamentais na determinação da relação capital-trabalho.
122
máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que não é possível conceber
outra forma de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa‖.
Acrescentaríamos que, conceber outra forma de estar no mundo implica em romper com a
forma atual, tanto em concepção quanto nas práticas cotidianas.
Ainda sobre a relação entre a ―temporalidade social‖ e a ―temporalidade do sujeito‖,
Birman (2001: 267/8) nos indica que as sociedades modernas imprimem no sujeito formas
inéditas de regulação e extração da experiência da temporalidade e que isto transforma de
maneira radical a relação do sujeito com o corpo, o gozo e o imaginário.
Desta forma, entendemos o tempo como fundamental na atual dinamicidade do capital
e, portanto, da produção de mercadorias, das relações sociais e das mediações que se
estabelecem entre os elementos ―estruturantes‖ da vida cotidiana. Entretanto, como
destacamos, o tempo que se impõe é o tempo do capital, tempo que, aliás, é degradado pelas
próprias relações sociais capitalistas. Neste sentido, Mészáros (2007: 42) afirma que: ―Um
dos aspectos mais degradantes da ordem social do capital é que reduz os seres humanos à
condição reificada, a fim de adequá-los aos estreitos limites da contabilidade do tempo do
sistema: o único gênero de contabilidade extremamente desumanizadora compatível com
a ordem social do capital‖.
A degradação do tempo
85
(e do espaço) pelo próprio capital é, assim, uma contradição
do sistema que produz, ao mesmo tempo em que se reproduz, os elementos necessários para a
sua destruição e a destruição da própria humanidade, mas também para a sua superação
positiva na direção da emancipação humana.
Como consideramos que haja uma mediação entre tempo e espaço, que estão
dialeticamente conectados, entendemos que os rebatimentos, no cotidiano, da estetização da
mercadoria como forma de compensar o ―obsoletismo artificial‖; da captura da subjetividade
e da banalização do humano, dentre outros fenômenos, estão relacionados com o ―lugar‖ que
os indivíduos ocupam na sociedade burguesa: ou seja, com a luta de classes. Tempo e espaço
formam parte do mesmo movimento e se correspondem na dinâmica social.
85
száros (2007) nas suas análises sobre ―O desafio e o fardo do tempo histórico‖ destaca em como o capital
tem solapado o tempo (social e histórico); Harvey (2001: 265), por sua vez, aponta para os ajustes espaciais
traumáticos experimentados pela sociedade e que se tornaram comuns em especial a partir da década de 1970,
sendo que ―a queda de barreiras espaciais não implica o decréscimo da significação do espaço‖, assim como a
compressão do tempo não implica sua eliminação.
123
O tempo é, podemos dizer, o elemento que nos confere a certeza de nossa
transitoriedade. O tempo é histórico, no sentido de que, dentro do limite de vida e morte, de
nascer e morrer há um percurso que é (de acordo com as diferentes formações sociais)
percorrido de maneira diferenciada. O próprio tempo atual, com tudo o que ele comporta em
termos de relações sócio-culturais e econômicas pode ser superado. Entretanto, ―Os
apologistas do capital fizeram e continuam a fazer tudo o que puderam para obliterar a
consciência do povo quanto ao tempo histórico, no interesse de eternizar seu sistema.
Somente aqueles que têm um interesse vital na instituição de uma ordem social positivamente
sustentável e, assim, em assegurar a sobrevivência da humanidade, podem realmente apreciar
a importância do tempo histórico nessa conjuntura crítica do desenvolvimento social‖.
(Mészáros, 2007: 23). O tempo presente aparece como único tempo possível.
Ao capital, por outro lado, está colocada a negação da própria história, não como um
exercício mental, mas como nos indica Mészáros (2007: 25) como ―um processo prático
potencialmente letal de acumulação ampliada do capital e concomitante destruição em todos
os domínios, hoje até mesmo no plano militar‖. A sociedade atual é a sociedade do tempo
mínimo e da autodestruição e ―A aniquilação da história é o único curso de ação plausível,
inseparável da cegueira do capital ao futuro dolorosamente tangível que deve ser enfrentado.
Eis porque o capital não tem alternativa ao abuso do tempo histórico. Sua máxima impiedosa
segundo a qual não alternativa é somente uma variante propagandística da negação geral
da história correspondente à natureza recôndita do capital no estágio atual de nosso
desenvolvimento histórico‖. (Mészáros, 2007: 24).
É assim que, no curto percurso histórico do capitalismo a redução do tempo
socialmente necessário para a produção dos meios de vida, redução do ―tempo de giro do
capital‖, remoção de barreiras espaciais, dentre outros elementos, provocou um
redimensionamento no tempo das coisas, das pessoas, das relações e um impacto nunca dantes
visto na vida dos indivíduos. Este movimento comporta uma positividade e uma negatividade,
têm em potência elementos de emancipação do homem e de alienação. Isto porque, dentre
outras coisas, ―(...) a quantidade crescente de tempo livre que se tornou disponível para os
indivíduos pelo desenvolvimento produtivo da humanidade ainda que, pela duração das
sociedades de classe, apenas do modo mais perverso é a condição necessária para a
ampliação de suas escolhas alternativas (e para os valores associados), em agudo contraste
com a sua existência restrita à mera sobrevivência do passado mais remoto‖. (Mészáros, 2007:
35). Cabe ressaltar que esta positividade também é histórica, se um aumento do tempo
124
livre, na fase autodestrutiva do capital este tempo é cada vez mais apropriado de forma
alienada e transformado em mercadoria.
Desta forma, as potencialidades dos indivíduos na sociedade do capital são cada vez
mais restritas em relação às da humanidade e como estas duas potencialidades nunca serão
idênticas só poderemos falar, como nos indica Mészáros (2007: 35) em um intercâmbio
reciprocamente enriquecedor entre ambos, ―por meio do qual as potencialidades reais de
ambos podem ser integralmente desdobradas de modo contínuo‖. Neste intercâmbio os
indivíduos ―(...) podem tanto adotar como suas aspirações próprias os valores que apontam
em direção à realização das potencialidades positivas da humanidade e, assim, desenvolver a
si mesmo positivamente‖, como podem, ao contrário, ―(...) fazer escolhas que ajam contra as
potencialidades positivas da humanidade e as conquistas historicamente alcançadas‖. Estas,
entretanto, não são escolhas individuais, mas dizem respeito à classe social (e à consciência
de classe) a qual estes indivíduos pertencem e a um complexo de relações que medeiam este
pertencimento de classe.
Na sociedade do capital são criadas as barreiras ao desenvolvimento enriquecedor dos
indivíduos na direção do humano-genérico e estas barreiras são cada vez mais bárbaras e
imperativas.
4.1 A obsolescência artificial das mercadorias
A predominância do ―tempo mínimo‖ na dinâmica capitalista ou como destaca Harvey
(2001: 257) ―a aceleração do tempo de giro na produção‖ provocou uma aceleração nos
processos de troca e consumo de mercadorias, com fortes impactos no que estamos
denominando nesta tese de ―estética da mercadoria‖. Assim: ―Sistemas aperfeiçoados de
comunicação e de fluxos de informações, associados com racionalizações nas técnicas de
distribuição (empacotamento, controle de estoque, conteinerização, retorno do mercado etc.),
possibilitaram a circulação de mercadorias no mercado a uma velocidade maior‖. (Idem).
Entretanto, além da mudança substantiva na velocidade de circulação das mercadorias,
foi necessário reverter os ―avanços da tecnologia‖, no que tange, em especial, a durabilidade
dos bens, a favor do capital. De forma mais específica, o aumento da produtividade do
trabalho tem como seu reverso o problema da realização do valor produzido. Um dos entraves
a ser superado pelo capital, quanto à realização do valor, passa a ser a grande durabilidade dos
seus produtos e a impossibilidade do consumo extensivo. Uma das saídas encontradas para
125
este problema, uma vez que a corrida por novos mercados, por si só, não era mais uma saída
viável, foi o maior investimento nas ―imagens‖ (das corporações e das mercadorias) e a
redução planejada do ―tempo de vida das mercadorias‖ (no que diz respeito às suas funções,
sua aparência e sua ―estética‖)
86
.
Harvey (2001: 258) aborda, de forma mais ampla, as conseqüências da ―aceleração
generalizada nos tempos de giro do capital‖ no que ele denomina de ―maneiras pós-modernas
de pensar, de sentir e de agir‖, destacando que ―a primeira conseqüência importante foi
acentuar a volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de
trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas‖, ressaltando que em relação à
produção de mercadorias o efeito primário foi a ênfase na instantaneidade e descartabilidade.
Desta forma, os bens de consumo durável se deteriorariam cada vez mais rápido e o
ciclo produção/distribuição/consumo se daria em menor tempo. Um complexo aparato (que
inclui de pesquisas psicológicas a publicidades que buscam alcançar toda a vida dos
indivíduos, em especial das chamadas classes médias e trabalhadoras) foi usado para garantir
esta dinâmica. Note-se que este elemento faz parte do que estamos chamando de ―estetização
da mercadoria‖.
Como indicamos acima, o capital tem de alguma forma que reverter a seu favor e
em detrimento da sociedade o desenvolvimento das forças produtivas, uma vez que estas não
levam à diminuição do trabalho vivo, como possibilitam a produção de mercadorias com
maior durabilidade e qualidade. Em relação a este último aspecto, encontrou-se uma saída
bastante viável: ―a sociedade do descartável‖. Nestes termos, a diminuição da resistência e da
durabilidade dos produtos e, neste último caso, também dos serviços, piorando sobremaneira
suas qualidades e modificando ―o padrão de valor de uso em várias áreas do consumo
privado‖ (Haug; 1997: 52); aliado a outros recursos como diminuição da quantidade dos
produtos ―mantendo o tamanho da embalagem‖, mudanças constantes nas embalagens e etc.,
deram ―bons‖ resultados.
O ramo do capital que se volta para esse ―campo‖, o da garantia da realização do
valor, ganhou certa autonomia e se tornou destinatário cada vez mais de maiores
investimentos. O estudo e o desenvolvimento de pesquisas sobre a estética da mercadoria é
um setor em expansão (e cada vez mais envolve aspectos psicológicos e subjetivos).
86
Entendemos que o problema da realização do valor traz impactos mais profundos e o capitalismo apresenta
saídas mais drásticas (como as guerras), entretanto, nos delimitamos a análise sobre o incentivo ao consumo
por conta da nossa temática e não por ser a mais expressiva.
126
No que diz respeito mais especificamente à técnica de diminuição do tempo de uso das
mercadorias, ―foi discutida sob o conceito de ‗obsoletismo artificial‘, traduzido pela expressão
‗deteriorização do produto‘. As mercadorias são fabricadas com uma espécie de detonador,
que dá início a sua autodestruição interna depois de um tempo devidamente calculado‖ (Haug;
1997: 53).
É necessário, assim, que o ―obsoletismo artificial‖ seja considerado irrelevante para o
consumidor ou mesmo passe despercebido, apesar deste fator não ter um peso determinante
nas suas decisões de consumo, uma vez que se apresenta não como escolha, mas como
imposição.
A redução do ―tempo de vida da mercadoria‖ é compensada pelo seu embelezamento e
reforçada pelas propagandas e pela própria imposição ―inquestionável‖ da marca do produto.
Neste sentido, observa-se que:
A diminuição qualitativa e quantitativa do valor de uso é compensada geralmente pelo
embelezamento. Mas, mesmo assim, os objetos de uso continuam durando demais
para as necessidades de valorização do capital. A técnica mais radical não atua
somente no valor de uso objetivo de um produto, a fim de diminuir o seu tempo de
uso na esfera do consumo e antecipar a demanda. Essa técnica inicia-se com a estética
da mercadoria. Mediante a mudança periódica da aparência de uma mercadoria, ela
diminui a duração dos exemplares do respectivo tipo de mercadoria ainda atuante na
esfera do consumo. (Haug; 1997: 53/54).
Com essa técnica, o obsoleto passa a se referir não somente ao valor de uso,
propriamente dito das mercadorias, mas, sobretudo, à sua ―estética‖
87
. O design das
mercadorias assume um lugar de importância considerável na sua produção. Torna-se
ultrapassada a afirmação de Ford de que ―não importa o carro que você queira comprar, desde
que seja um Ford, cor preta, modelo T‖, agora a aparência é tão, ou em alguns casos, mais
importante, do que as qualidades do produto, melhor seria dizer, a aparência é parte essencial
da qualidade do produto.
A fantasmagoria da mercadoria se impõe por completo. A ―aparência‖ assume um
caráter determinante sobre o consumo, e as marcas, por conseguinte, conquistam seu espaço
no ―maravilhoso mundo novo das mercadorias‖. É neste sentido que:
87
Voltamos a insistir em que a chamada ―estética da mercadoria‖ é possível através do esvaziamento dos
próprios elementos da estética, neste sentido, não uma volta à produção de bens com qualidades estéticas
como parte destes (beleza, traços artísticos, etc), como já fora observado em outras culturas, quando um bem
não era produzido como mercadoria. O que é um esvaziamento dos elementos estéticos, para que possam
ser assimilados às mercadorias. Como exemplo deste fenômeno podemos citar: os estofados de automóveis
com ―motivos‖ (fragmentos) retirados de obras de Picasso ou Kandisk, estojos e pastas com recortes de obras
de Edvard Munch e assim por diante.
127
Os consumidores vivenciam a inovação estética como um destino inevitável, embora
fascinante. Na inovação estética, as mercadorias deslocam-se em sua manifestação
como que por si mesmas, mostrando-se como objetos sensível-supra-sensíveis. O que
aparece aqui refletido nas mudanças no invólucro e no corpo da mercadoria é o seu
caráter de fetiche na singularização do capitalismo monopolista. A aparência
preservada significa que as coisas como tais modificam-se por si mesmas. (Haug;
1997: 55).
A mercadoria assume uma linguagem peculiar do ―mundo da aparência‖, onde o real
parece ―ultrapassado‖ e ―sem graça‖ e a imagem se dota de ―significado‖.
Assim, a ―abstração estética da mercadoria‖, ou seja, sua superfície, embalagem e
imagem publicitária podem se desvincular do seu corpo e percorrer caminhos intransitáveis
para a primeira e, ademais tornar possível a promessa do irrealizável; sua função, em verdade,
é esta, a promessa de realização fantástica do valor de uso. Nas palavras de Haug (1997: 74):
―A abstração estética da mercadoria liberta a sensualidade e o sentido da coisa portadora do
valor de troca, tornando-as separadamente disponíveis‖.
Note que a ―abstração estética‖ não promove uma libertação em definitivo do corpo
das mercadorias, separam-se e juntam-se continuamente e a superfície, a embalagem, a
imagem de forma geral recebe cada vez mais a atenção no processo de produção, passa na
verdade, a mobilizar processos produtivos próprios sendo pensada e planejada para seduzir,
convencer, falar a língua sensual de todos aqueles que lhe lançarem olhares interesseiros.
Segundo Haug (1997: 75) ―(...) depois que a superfície se liberta, tornando-se uma
segunda freqüente e incomparavelmente mais perfeita que a primeira ela se desprende
completamente, descorporifica-se e corre pelo mundo inteiro como o espírito colorido da
mercadoria, circulando sem amarras em todas as casas e abrindo caminho para a verdadeira
circulação das mercadorias‖. Desta forma, ―Ninguém mais está seguro contra os seus olhares
amorosos. A intenção de realização lança-as com a aparência abstraída e bastante
aperfeiçoada tecnicamente do valor de uso cheio de promessas, para os clientes em cuja
carteira ainda se encontra o equivalente de troca assim disfarçado‖ (Id. Ibid).
Em verdade os apelos sensuais das mercadorias voltam-se não somente para aqueles
que podem dispor de dinheiro para obtê-las, e reside seu caráter ideológico, mas a todos
aqueles que se identifiquem com as promessas que sua estética porta. Este impacto, no longo
prazo, é mais significativo do que o consumo em si de determinada mercadoria: primeiro
porque nem todos que se identificam com os ―apelos sensuais‖ das mercadorias podem
adquiri-las e segundo, porque se mantendo o impacto ideológico as mercadorias podem ser
facilmente trocadas, manipuladas, garantindo-se ainda a necessidade do consumidor e do não
128
consumidor. O que é importante é criar um campo especial de necessidades que seja
extensivo.
A partir do momento que a ―estética da mercadoria‖ se retroalimenta de elementos dos
desejos e fantasias do homem moderno, a promessa do valor de uso passa a ter um alcance
extensivo enquanto o seu consumo é cada vez mais reduzido. Esse é um dos elementos que
torna possível a influência do ―obsoletismo artificial‖ das mercadorias na vida de todo e
qualquer indivíduo que viva na sociedade do capital, seja ele ou não potencial consumidor.
Concordamos com Haug, quanto à sobrevalorização do sensível como elemento de
―captura‖ do consumidor, entretanto, não entendemos que haja uma separação entre este
aspecto e o objeto, o que levaria a uma total autonomização do primeiro em relação ao
segundo. Estes, como indicado acima, separam-se e juntam-se continuamente.
Mesmo observando que a superfície, embalagem e imagem publicitária da mercadoria,
sua ―abstração estética‖, mobilizam processos produtivos próprios e uma soma de capital que
supera, na maioria das vezes (principalmente em se tratando das grandes corporações), a
produção da mercadoria em si, considera-se que esta produção não substitui a produção das
mercadorias, mas expressa em maior grau a contraditoriedade da própria mercadoria e a
separação no tempo e no espaço entre valor de troca e valor de uso. Isto implica em que estes
dois momentos separam-se, distanciam-se, mas não se anulam, não prescindem um do outro.
Entretanto, reside nesta separação, a possibilidade (que de fato é realizada) de que a
“abstração estética da mercadoria” prometa muito mais do que a mercadoria pode realizar,
semelhante ao que acontece ao capital especulativo.
A linguagem da mercadoria não busca apenas seduzir e conquistar o consumidor,
ampliando assim o leque de suas ―necessidades‖, mas busca, sobretudo, ser parte constitutiva
da linguagem cotidiana de todos os indivíduos, consumidores e não-consumidores, daí a
busca por uma universalidade nesta linguagem (o marketing, a propaganda, a marca...). O
não-consumo, de certa forma, torna-se também parte constituinte do consumo.
Chauí (2006: 8) ressalta como a propaganda usa de artifícios para fazer do ―anúncio de
uma mercadoria‖ algo familiar ao consumidor (como algo do campo do seu desejo, mesmo
que não represente sua realidade). Neste sentido, a propaganda recorre tanto,
(...) aos estereótipos da dona de casa feliz (tendo orgasmos com a qualidade do
detergente ou da margarida), dos jovens felizes e saudáveis, prometidos ao sucesso e a
exibição do prazer em todas as suas formas (prazer suscitados pelos objetos que
perderam a sua qualidade de símbolos sexuais para se tornarem diretamente fetiches
129
sexuais), das crianças felizes e traquinas, prometidas ao amor familiar (o amor
definido pela capacidade dos familiares de satisfazer imediatamente todos os desejos
infantis, de gratificar imediatamente as crianças com o consumo dos objetos, de
cultivar o narcisismo infantil até suas últimas conseqüências).
Em relação a essa linguagem sedutora Kehl (2004) no texto ―Publicidades perversões
fobias‖ destaca como o publicitário pode dirigir e reafirmar o ―olhar‖ do telespectador para
elementos que reafirmem o desejo de consumo como algo que está acima de relações e
sentimentos. Neste sentido, ao falar de uma propaganda onde um jovem pede uma moça em
casamento e ela não percebe, pois está distraída olhando o carro zero estacionado fora do
restaurante, Kehl comenta:
O carro introduz-se entre os dois namorados não como um objeto a mais entre os
outros vinho, talheres, cardápio, preço uma série cujos elementos podem sempre
ser substituído por outros. Nessa propaganda, o carro não é um entre os muitos objetos
mediadores do desejo (sexual); é ele, este artefato mecânico revestido de lata e tinta
brilhante, que se instala no lugar de um dos parceiros como se fosse o próprio objeto
do desejo. Se os outros acessórios fálicos recortam o lugar da falta a partir do qual o
desejo circula, o carro x, que desvia a atenção da mulher no momento em que o
homem lhe pede que seja sua esposa, está no lugar (imaginário) do objeto (simbólico)
do desejo. Agora, o homem é que ocupa o lugar acessório; casar-se com ele seria, para
ela, apenas um meio de acesso ao gozo/carro. O homem tornou-se supérfluo diante do
único bem que interessa à moça de maneira absoluta. O carro é o objeto irrecusável do
desejo, tanto dela quanto do espectador, convocado a identificar-se não com o olhar
ingênuo do moço, que ignora o que sua noiva vê, mas com o olhar indiferente e
sonhador dela, focando o carro zero estacionado do lado de fora. Ao contrário da
mulher freudiana, esta personagem publicitária sabe exatamente o que quer; diante
disso o pretendente, que lhe oferece o pobre substituto de um compromisso de amor,
faz papel de otário.
A questão está não no que é transmitido direta ou indiretamente pela propaganda, mas
em que mudanças foram necessárias nas relações sociais contemporâneas para que
propagandas como essas expressassem o que desejam os telespectadores/consumidores e, por
outro lado, os seduzissem. Como se criaram, nas sociedades contemporâneas, os espaços
para esta linguagem e quais são as implicações sócio-políticas, culturais e de construção de
subjetividades, decorrentes da identificação dos sujeitos contemporâneos com esta “fala”
que a propaganda transmite?
A propaganda não impõe um comportamento x ou y, mas autoriza, reafirma e
demonstra que, assumir tal comportamento é está em sintonia com o tempo presente que não
permite mais ―sentimentalismos‖ e onde o acesso ao consumo compensa qualquer outra perda
(desde que não seja a perda de oportunidade em garantir o próprio consumo). Portanto, perder
oportunidades é não acompanhar o próprio tempo.
130
O chamado ―obsoletismo artificial‖, parte do que estamos chamando de ―estetização
da mercadoria‖ apontado como o outro lado do redimensionamento das necessidades sociais,
ou seja, a deterioração da produção e a criação de necessidades fetichizadas que assumem o
lugar de indispensáveis, ―pulam o muro‖ da produção de mercadorias. A mercantilização das
relações sociais e a coisificação do homem levam a que essa lógica se torne também inerente
à reprodução dos próprios indivíduos.
O movimento de ―estetização da mercadoria‖ invade todos os espaços da vida do
homem contemporâneo, mas este processo porta em si uma contradição e apresenta fissuras.
―A crítica da estética da mercadoria‖ nos permite afirmar, atualmente, que a
assimilação de elementos dos desejos e fantasias dos indivíduos (e artificialização destes) e
sua devolução cristalizados em mercadorias, propagandas ou publicidades, não se trata
somente de um recurso para convencer o consumidor a comprar determinado produto, mas
de uma estratégia de “universalização” de necessidades mercantis, que, no nosso
entendimento, funciona como um recurso ideológico de manutenção das relações reificadas
do capitalismo avançado. Neste sentido, a imposição da dinâmica do tempo mínimo funciona
como um articulador de todo este aparato ideológico.
Interessa-nos entender agora como este processo de ―obsolescência artificial das
mercadorias‖ se transporta e se impõe na vida cotidiana dos homens burgueses
contemporâneos.
A construção da estrutura do cotidiano na sociedade burguesa tem no tempo um
componente decisivo. Tanto porque no processo de produção capitalista é o tempo o fator que
determina o valor, no caso o tempo de trabalho socialmente necessário, quanto porque a vida
dos trabalhadores no capitalismo tem na divisão entre tempo de trabalho e tempo livre um
elemento central. Birman (2001: 267) diz, a respeito das sociedades modernas, quando o
―tempo entra no registro da quantificação e se transforma em um operador fundamental dos
processos sociais de produção‖ que ―institui-se uma separação cerrada‖ entre a temporalidade
do sujeito e a social, sendo que: ―Em ambas a quantificação e rentabilização da experiência do
tempo se impõem ao sujeito. Este passa a ser regulado por engrenagens, produtivas e
burocráticas, que realizam a extração sistemática do tempo. Com isso, o sujeito se esvai
progressivamente da possibilidade de dominar livremente seu tempo, engolido que é pelas
montagens quantificantes do social‖.
131
É inegável que o indivíduo da sociedade burguesa não tem como escapar ao tempo
―imposto‖ pela dinamicidade da sociedade ( a não ser como resistência coletiva), não tem
como escapar aos ―estreitos limites da contabilidade do tempo do sistema‖, conforme nos
indica Mészáros (2007: 42).
Destacaremos a seguir como a atual dinamicidade do tempo do capital, ―das
mercadorias‖, ―das coisas‖, ―das relações‖, ―das modas‖, ―das pessoas‖, tem interferido no
tempo de vida dos homens atuais, trazendo conflitos até então pouco presentes. Este processo,
não é desligado, ao contrário, relaciona-se diretamente, com o tempo das finanças, não que
este determine diretamente o tempo de vida das pessoas, mas a dinâmica que os atravessa é a
mesma.
A centralidade do capital financeiro na atual fase do capitalismo, modificou em muito
o tempo da ―economia‖, o tempo ―dos mercados‖, o tempo ―das empresas‖. A predominância
das aplicações de curto e curtíssimo prazo e a conexão em tempo real do funcionamento das
aplicações financeiras no mundo redimensionou o tempo da economia mundial e, por outro
lado, possibilitou que as crises tivessem também um maior alcance em menor tempo.
O redimensionamento do tempo provoca um impacto diferenciado na ―estrutura do
cotidiano‖ dos homens contemporâneos. Se há uma reorganização espaço-temporal
88
na
macrodinâmica da sociedade, nos perguntamos: como isto vem interferindo na estrutura
cotidiana de cada indivíduo e que implicações tal fato teria para o desenvolvimento da
“individualidade social”?
Poderíamos citar, a título de exemplos, as repercussões da atual dinamicidade do
tempo na vida do homem burguês como: a busca pela eterna juventude (o congelamento do
tempo); a superficialidade das relações sociais e a descartabilidade das coisas e das relações
subjetivas (o tempo do fugaz) e a apropriação do tempo de vida dos indivíduos burgueses pelo
capital, o que chamamos de roubo do tempo (a obsolescência artificial). Abordaremos a
seguir cada um destes aspectos.
88
Ver Harvey (2004) e Chesnais (2005).
132
4.2 A busca pela eterna juventude o congelamento do tempo
Antes, a mulher com quarenta anos se sentia velha, feia, ela era
trocada por uma mais nova. Hoje em dia não, uma mulher de
quarenta anos está no mercado competindo com a de vinte graças a
tecnologia de cirurgia plástica (...) ela pode esticar, pode fazer lift,
pode botar silicone, pode fazer uma lipo, e ficar tão bem quanto uma
de vinte.
(Fala de uma entrevistada em ―Nu e vestido‖, que se submeteria em
breve à uma cirurgia plástica. In, Goldeberg; 2007: 199).
Talvez uma das expressões mais significativas do que podemos chamar de ―ditadura
do tempo‖ na vida dos homens contemporâneos seja a busca pela eterna juventude o
congelamento do tempo.
Ser eternamente jovem tornou-se uma das palavras de ordem dos tempos atuais. E ser
jovem significa não apenas ter um espírito jovem, o que em termos mercantis implica o
consumo de determinados bens, determinada moda, determinados gostos, mas, sobretudo, e
cada vez mais, ter uma aparência jovem, mostrar-se jovem para o ―Outro‖. Nestes termos,
envelhecer é estar fora de sintonia com o tempo presente.
De propagandas de produtos de beleza a programas sociais voltados para a chamada
terceira idade a palavra ―velhice‖ tornou-se um tabu.
A busca pela eterna juventude movimenta um mercado que vai de produtos de beleza,
que prometem verdadeiros milagres e cirurgias plásticas que transformam o indivíduo em
―outra pessoa‖, até a busca do ―corpo saudável‖. Mercado que alimenta uma demanda
crescente que transita entre a corrida pelo corpo perfeito à ausência de quaisquer sinais do
tempo.
A ditadura da eterna juventude implica um redimensionamento na relação que o
indivíduo tem com o outro e consigo mesmo, em termos mais específicos com o seu próprio
corpo. O corpo
89
aqui aparece como um invólucro que precisa ser produzido e reproduzido
cuidadosamente de acordo com o tempo presente, com a moda presente, com a imagem ditada
e aceita pela sociedade.
89
Kehl (In Bucci e Kehl, 2004: 178) diz que ―É fato que as sociedade burguesas, desde o século XIX,
consideraram o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo mas o corpo
vestido, domado pela compostura burguesa e embalado pelo código das roupas era o primeiro signo que o
self-made-man em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia diante do outro a respeito de quem ele ‗é‘. A
aparência substituiu, com vantagens democráticas, o ‗sangue‘. O corpo bem comportado e bem-vestido de até
poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada e meus negócios vão bem‖.
133
Novamente a visibilidade vem à tona. Semelhante às mercadorias que têm na sua
―abstração estética‖ um elemento que lhe possibilita a promessa do fantástico, do irrealizável,
o corpo também funciona como a imagem que diz mais do que aquilo que de fato representa e
essa é a regra. A ―abstração estética do indivíduo‖, sua imagem contraditoriamente separada
daquilo que ele de fato é, tem que falar uma linguagem do seu tempo, a linguagem do ―belo‖,
do ―saudável‖, do interessante, do imponente, do capaz, do insuperável e do ―eternamente
jovem‖.
Kehl (In Bucci e Kehl, 2004; 174/5) no texto ―Com que corpo eu vou‖ refere-se ao
corpo-imagem que é apresentado ao espelho da sociedade como aquele que vai determinar sua
―felicidade‖ não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas, segundo ela, ―por
constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se
reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo‖. A este respeito se pergunta
Kehl (idem):
Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando você no
mercado das trocas imaginárias? Que imagem você tem oferecido ao olhar alheio para
garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se transformou o espaço público
no Brasil? Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta vai dizer quem você é.
Pode determinar oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida
ascensão social. Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à
custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado através de modernas intervenções
cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do seu
ser, é a primeira condição para que você seja feliz.
Importante aclarar que relações este movimento em busca da beleza padrão e da eterna
juventude, esta corrida para driblar o tempo, enganá-lo, tem com o fetiche e a estetização da
mercadoria. Claro está que aqui estes dois elementos não atravessam apenas as mercadorias e
serviços consumidos na busca pelo corpo perfeito e jovem, atravessam o próprio corpo. O
importante a destacar neste contexto é que o corpo se metamorfoseia em algo híbrido, que é
ao mesmo tempo biológico, mas incorpora o tecnológico: é desenhado, moldado, padronizado
ao gosto da época ou da ideologia hegemônica. O corpo se mercantiliza e torna-se igual a
qualquer outro objeto de consumo e para que isso aconteça de forma a não se ―confundir‖
com a escravidão ou a prostituição (pelo menos aparentemente) é necessário que ele seja
―fragmentado‖ e negociado
90
. Mas como o ―corpo‖ não é separado do sujeito, é o próprio
90
Sabemos que tanto a escravidão quanto a prostituição são práticas comuns e perfeitamente (cada vez mais)
compatíveis com o capitalismo e podemos até dizer que em alguns casos a negociação do corpo-mercadoria de
forma estetizado se assemelha a estas duas práticas, mesmo sabendo que diferenças entre elas. Entretanto,
uma mulher ou homem que se ―produz‖ através de intervenções cirúrgicas para ter o corpo perfeito a ser
exibido no verão de Ipanema (no Rio de Janeiro), por exemplo, não tem as mesmas motivações que quem se
―produz‖ na noite para ―vender‖ parte de seu tempo na forma de prostituição.
134
sujeito, transformado em ―corpo-objeto‖, que precisa ser mostrado, não como ele é, mas como
deseja ser e como ―os padrões sociais‖ impõem que seja.
Se essa imposição do tempo é extensiva enquanto ideologia e perpassa as diversas
relações sociais e classes, o acesso aos recursos que permitem uma sintonia com o
estabelecido por ela não tem o mesmo movimento, tem um profundo recorte de classe.
Enquanto os ricos e a classe média (a custa de endividamentos crescentes) conseguem,
aparentemente, driblar o tempo, aos trabalhadores resta a frustração de não estar de acordo
com o que lhes parece ser o seu tempo, o tempo presente.
Interessante observar que é cada vez mais comum o recurso ao financiamento, por
parte da classe trabalhadora, de cirurgias plásticas (estéticas não reparadoras) que não são
cobertas pelo sistema de saúde pública. Além dos parcelamentos ―a perder de vista‖ têm
surgido clínicas e ―profissionais‖ pouco confiáveis que oferecem estes serviços e que
comumente são denunciados aos conselhos de medicina, sem falar no número de mortes, no
Brasil, ocasionadas por procedimentos mal conduzidos quando da realização de cirurgias
plásticas em locais não habilitados para tais procedimentos.
Entretanto, como nem todos têm acesso ao congelamento do tempoo próprio capital
encontrou uma saída ideológica para isso, usando elementos de fetichismo que estão
diretamente ligados à estetização das mercadorias. Aos que não conseguem o corpo jovem e
perfeito resta o consumo do corpo e da beleza do outro, da vida do outro. Esse outro é o
espelho do corpo mercantilizado, o padrão de beleza estabelecido, e está representado
atualmente nas estrelas de cinema e de TV, nas celebridades cuidadosamente produzidas pela
mídia.
Nesta corrida desenfreada pela beleza e juventude eterna, o culto ao corpo é uma
regra. O corpo, desta forma, torna-se a expressão fetichizada daquilo que se é, posto que
expressa uma imagem, uma fala, um invólucro que busca convencer a todos que se é aquilo
que não existe, o corpo torna-se a negação do autêntico eu e a afirmação de um eu fetichizado,
estetizado. Nas palavras de Birman (2001: 246) atualmente a ―(...) a existência do sujeito se
constitui pelo eixo de sua estetização. É a estetização da existência que toma volume como
estilo existencial do sujeito‖. Portanto, a relação do ―eu‖ com o ―corpo‖, o seu e o do outro,
tem o objetivo de reforçar um ―eu narcísico‖. Desta forma, ainda nos termos de Birman
(Idem):
135
(...) a inflação do eu é o operador crucial na estetização da existência, pois por seu
intermédio se define as novas relações entre o sujeito e o outro. Com efeito, a
predação do corpo do outro se transforma em trilha preferencial do amor e do
erotismo, pois o que importa para a individualidade é a apropriação do corpo do outro
para a expansão inflacionária do próprio eu. Com isso, as noções éticas de alteridade
e reconhecimento da diferença tendem ao desaparecimento no universo social voltado
para a estetização da existência.
A transposição da lógica mercantil para as relações pessoais, para a vida dos homens,
para a sua produção e reprodução enquanto indivíduos e, de forma mais específica, para a
constituição das suas subjetividades tornou possível, conforme apontamos anteriormente,
que a imagem, a linguagem e a promessa de uso do objeto, neste caso do corpo-objeto, se
desloquem do próprio objeto e diga dele aquilo que ele não é e não pode ser. Assim,
(...) o sujeito se desdobra nas idéias de exterioridade e teatralidade. Voltada para a
existência no espetáculo, a individualidade se configura pelos gestos constitutivos de
seu personagem e de sua mise-em-scène. Assim, o que importa é a performatividade
de sua inserção no espetáculo da cena social. São os ouropéis e bordados desta que
importam para o desempenho do sujeito no espetáculo da mundaneidade. As idéias de
intimidade e interioridade tendem ao silencio no universo do espetacular. Em
conseqüência, é o eu que está em questão o tempo todo, alargado e exaltado em suas
fronteiras até o espaço sideral. A economia narcísisca da individualidade é valorizada
e incrementada ao máximo, e o que interessa são as gesticulações performáticas na
cena espetaculosa do mundo. (Birman, 2001: 246).
Nestes termos, também afirma Kehl (2004: 175) que ―o corpo é ao mesmo tempo o
principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros
promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende
a aceitação e a inclusão social‖.
Em uma sociedade onde as visibilidades são mais importantes que as próprias relações
que as constituem, a imagem do ―feio‖, do ―sujo‖, do ―não saudável‖ choca. Não é por outro
motivo que os moradores de rua incomodam tanto aos que têm no espelho sua principal
referência de verdade. Incomodam porque estão sujos, deteriorados, incomodam, sobretudo,
porque são visíveis, apesar de invisíveis socialmente. Incomodam, dentre outras coisas,
porque demonstram que o corpo não é eterno e se deteriora e adoece, porque são a negação do
corpo-objeto vendido pela ideologia burguesa, estampado nas capas de revistas, nas
telenovelas, nos comercias e outdoors. Por isso, o importante não é resolver as causas sociais
136
que originam tal situação, mas maquiá-la, torná-la invisível aos olhos
91
. O fetiche da Imagem
busca esconder o que aparece desagradável (feio) aos olhos.
É assim que o corpo se torna ―um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina
da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde), e um senhor ao qual
sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas
suadas economias‖. (Kehl; 2004; 175).
Na revista Le Monde Diplomatique Brasil, de janeiro de 2008, na matéria ―o
gerenciamento capitalista do corpo‖, observa-se como ―o capitalismo avançado transformou a
saúde individual em um capital‖, desta forma, o que predomina é a culpabilização do
indivíduo por qualquer enfermidade ou pela ―decadência do corpo‖. François Cusset, autor da
matéria, destaca que uma relação direta entre o imperativo da saúde como capital e a
otimização da força de trabalho. Neste sentido, destaca o autor, que sob a defesa de quererem
―funcionários em forma‖, as empresas criam programas que, de um lado incentivam os
funcionários à boa forma e, por outro, os penalizam e culpabilizam por quaisquer problemas
de saúde.
O elemento disseminador desta lógica, segundo a mesma reportagem, está em tornar o
―cuidado com o corpo‖ iniciativa dos indivíduos, através da internalização do controle.
Assim, destaca Cusset (2008):
(...) quando não são unicamente os engenheiros da ecologia e da alimentação orgânica
que nos dizem como viver, tanto para o nosso próprio bem como para o bem do corpo
coletivo, mas também os riscologistas, os economistas, os políticos, os diretores de
recursos humanos, os terapeutas de programas de televisão, os treinadores esportivos,
os sexólogos, os gigantes dos medicamentos, e até a própria família, preocupada em
otimizar o nosso capital-saúde, então este corpo que nos é atribuído deixa
definitivamente de ser nosso. Este corpo utópico, que todas as publicidades
trombeteiam, esse corpo onipresente, que pavoneamos triunfalmente com o possessivo
―meu corpo‖, se torna, bem ao contrário, o lugar da mais insidiosa das expropriações:
já não é de modo algum ―meu corpo‖, se é que algum dia o foi.
91
Um exemplo bastante expressivo do que falamos ocorre nas diversas cidades metropolitanas do Brasil, em
especial no Rio de janeiro, sempre que são realizados eventos que vendam as imagens das cidades no exterior,
nestes casos a chamada ―população de rua‖ é violentamente retirada das ruas e amontoadas em galpões ou
enviada para abrigos, muitas das vezes sem condições de recebê-la. Atualmente, o prefeito municipal do Rio
de Janeiro recém empossado (2009) começou seu mandato com um projeto intitulado ―choque de ordem‖ que
pretende, dentre outras coisas ―limpar a cidade daqueles que, na concepção que vigora no programa de
governo (e em parte considerável da sociedade), incomodam a ordem e prejudicam as belezas turísticas do
Rio, enfeiam a cidade: os vendedores ambulantes, trabalhadores de barracas nas praias de Copacabana,
Ipanema, Leme e outras e, claro, as pessoas que vivem nas ruas ou que, como é comum nos grandes centros
urbanos, por morarem distante do local de trabalho, dormem nas ruas do centro para economizar transporte
diário.
137
A culpabilidade do indivíduo pelas enfermidades do corpo não está presente somente
nas empresas que adotam a ―política‖ do corpo saudável como sinal de aumento da
produtividade, mas vigora na mídia como um imperativo para toda a sociedade. Assim, não é
a falta de saneamento básico, os agrotóxicos, os enlatados, as substâncias químicas diversas
incorporadas aos alimentos, as decorrências das falta de planejamento urbano, o lixo em
excesso, dentre outras coisas, as causas de epidemias e da volta de doenças e surgimento de
outras tantas, mas é o indivíduo, por não escolher uma vida saudável, o responsável por tais
―mazelas‖. E nem tampouco os ―sinais do tempo‖ que modificam a estrutura biológica dos
indivíduos. Compete assim, a cada um a responsabilidade por não adoecer, por permanecer
saudável, quando as condições sociais são propícias para o contrário
92
e; ser ―sempre jovem‖
apesar do ―tempo‖.
Interessante que nunca a indústria dos medicamentos faturou tanto quanto na
atualidade e, por outro lado, nunca adoecemos tanto. O tratamento da saúde como capital e
responsabilidade de cada um, esconde, em países como o Brasil, por exemplo, o sucateamento
do sistema público de saúde e a transferência deste ―mercado‖ para a iniciativa privada.
Para Kehl (In Bucci e Kehl, 2004: 176/77) há, nesse movimento de culto ao corpo, um
deslocamento do eixo da subjetividade e uma privatização do corpo em seus fundamentos. Ao
que indica que ―o homem-corpo contemporâneo parece estar construindo uma experiência de
si alheia ao que se considerou, na modernidade, como o domínio subjetivo do eu‖. Em outras
palavras, acrescenta a autora, ―é como se, ao sujeito introspectivo, conflituado e autovigilante
da psicanálise, se sucedesse um sujeito liberto das vicissitudes de qualquer subjetividade‖, o
que, alerta a autora ser enganoso, posto que, ― (...) o corpo é a primeira representação
imaginária do eu. Ao concentrar sobre ele a subjetividade, o jovem freqüentador das
academias de musculação‖, por exemplo, ―que pensa estar livre para traçar seu destino não se
conta de que está se condenando a viver, mais do que nunca, encarcerado em si mesmo‖.
Para Birman (2001: 170) um autocentramento da subjetividade na cultura do narcisismo,
ao que ele se pergunta: ―O que é a demanda de espetáculo e de performance, que regulam a
estetização da existência, senão modalidades do indivíduo existir na exterioridade, para que
possa gozar com a admiração que provoca no olhar do outro?‖
92
Exemplo interessante para ilustrar o que digo são as ―Campanhas de combate à dengue‖ promovidas pelos
governos: federal, estaduais e municipais. Sem desconsiderar a importância destas e mesmo os cuidados que
cada um deve ter para evitar a proliferação da doença é visível à responsabilização dos indivíduos como
discurso oficial, nestes casos cabe as instituições públicas um mero controle (não-preventivo), pois o
verdadeiro responsável por evitar epidemias é o ―cidadão‖.
138
É assim que nos termos de Kehl (2001: 170) ―O homem corpo do terceiro milênio
pode representar a morte do sujeito da psicanálise, pelo menos tal como o conhecemos até
aqui. No entanto, a expansão dos sintomas psicossomáticos nos faz questionar se a dimensão
inconsciente, negada pelas ideologias da fisiocultura e da eterna juventude, não vem cobrar
justamente do corpo o preço dessa recusa‖.
A ditadura do corpo perfeito e da eterna juventude tem constituído, ao lado de outros
fatores de diversos sentidos, uma geração de ―híbridos‖ e, ao mesmo tempo, aumentado
consideravelmente as doenças chamadas psicossomáticas.
Nas palavras de Kehl (In Bucci e Kehl, 2004: 179):
No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um tempo desmantelado e
ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da
imagem que tenta apagar a um tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação
política. (...) A cultura do corpo não é a cultura da saúde, como quer parecer. É a
produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Um sistema circular,
empobrecido de possibilidades simbólicas e discursivas. Neste caldo de cultura
insalubre, limitado pelas mais primitivas fixações imaginárias, desenvolvem-se os
sintomas sociais da drogadição, da violência e da depressão. Sinais claros de que a
vida, fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.
Para muitos estudiosos do tema, inclusive para Maria Rita Kehl, a depressão
93
é um
dos principais sintomas
94
dos tempos contemporâneos e expressa, dentre outras coisas este
vazio de sentido que o homem atual vive e se submete, expressa também uma contradição
entre o tempo mínimo, o tempo que vigora na sociedade e a ―desconexão desse tempo‖ que
alguns indivíduos vivenciam. É assim que a não submissão ao imperativo do tempo do
capital, se organizada coletivamente pode funcionar e evidenciar uma resistência, mas por
outro lado, em muitos casos e cada vez mais, aparece (do ponto de vista individual) como
93
Para Kehl (2008) ―Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica,
sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser
cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda
a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só
faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação a vida do espírito, enfim
são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência,
competência e disponibilidade para o consumo e a diversão‖.
94
Prefiro o termo expressão à sintoma, utilizo o último como termo da autora em questão, mas com a ressalva de
que não é o mais adequado para expressar elementos de expressão da questão social contemporânea. Quanto
ao termo sintoma social, Kehl (Artigo: O tempo e o cão 2008b) destaca ―Tomo a expressão sintoma social,
em primeiro lugar, para designar o sintoma, ou a estrutura clínica, que se encontra em tal desacordo com a
normatividade social que acaba por denunciar as contradições do discurso do Mestre. (...) Ainda assim, que
se reconhecer que a idéia de sintoma social é controversa na psicanálise. Em primeiro lugar porque a
sociedade não é um sujeito; em segundo lugar o sintoma social, embora não tenha outra expressão senão
aquela dos sujeitos que atuam e sofrem, não se reduz à somatória dos sintomas singulares em circulação. Por
fim: se sintoma social, será possível estabelecer na sociedade um desejo recalcado da mesma ordem do
desejo inconsciente no sujeito?‖.
139
sintoma de doenças psicossomáticas. Kehl (2008) no artigo ―O tempo e a depressão‖ destaca a
este respeito que:
―Aproveitar bem o tempo‖ é um dos imperativos da vida contemporânea. Na prática,
tal mandato corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriram para o
desfrute da vida privada, nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo
liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo
livre, não mais regulado pelos ritos e proibições da vida religiosa, nem limitado pelas
horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado a
marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta
efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência subjetiva da
temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, esta forma de
passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer,
marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de
diversão, que torna a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do
tempo da produção. Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo
vazio. É preciso ―aproveitar‖ o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem
descanso. A este imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão,
seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado um ―tempo que não
passa‖.
Com um entendimento muito próximo aos autores citados, Birman (2001) destaca que
as ―psicopatologias da pós-modernidade‖, caracterizadas por certas modalidades de
funcionamento psicopatológico, expressam, dentre outras questões, o fracasso do indivíduo
em ―realizar a glorificação do eu e a estetização da existência‖, e as drogas, de forma geral,
incluindo, sobretudo, os psicofármacos, passam a ser os meios privilegiados destes indivíduos
lidarem ―com o que de insuportável em suas misérias psíquicas e com o mal-estar da
contemporaneidade‖.
Estes elementos aparecem como expressão de uma sociedade fundada na
fragmentação e degradação do indivíduo, não de qualquer indivíduo, mas daquele que
precisou se tornar mercadoria (enquanto força de trabalho) para ter garantida a sua própria
sobrevivência e ao se ―mercantilizar‖ tornou-se também passível da obsolescência que vigora
no tempo dos objetos mercantis.
140
4.3 A descartabilidade das coisas e das pessoas e a superficialidade das relações
subjetivas o tempo do fugaz
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
o sou vê lá anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de sua essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Carlos Drummond de Andrade (do poema: Eu, etiqueta).
Quando a imagem é preponderante na sociedade e a aparência toma o lugar da
essência, dizendo algo do ser, diferente daquilo que ele realmente é, é porque algo de mais
profundo se passa nas relações sociais e não lugar para relações profundas, a não ser
como resistência, como contracorrente. Desta forma, predomina a superficialidade nas
relações sociais e os instrumentos (meios) facilitadores desta superficialidade tornam-se cada
vez mais sofisticados e portadores de um pseudo-significado que parece prescindir dos
próprios indivíduos.
Esta superficialidade implica não que as relações, inclusive as subjetivas, se
estabeleçam em um tempo cada vez mais reduzido e com mediações mercantis, mas,
sobretudo, que há um falta de profundidade e de autenticidade nestas. O predomínio da
superficialidade em detrimento da profundidade não leva à substituição do tempo pelo espaço,
mas o que é, de um lado, um redimensionamento no primeiro que deixa os indivíduos
contemporâneos reféns do imperativo do tempo do capital, do tempo mínimo e; de outro, uma
―liberação‖ de espaços ―privados‖ e ―subjetivos‖ à mercantilização: como o ―espaço do corpo,
da consciência, da psique‖.
Um (apenas um e não o único, nem o mais importante) dos facilitadores desta
superficialidade (e descartabilidade) nas relações sociais atuais são os ―meios digitais‖ ou o
141
sistema digital
95
, este provocou um ―salto naquilo que surgiu na segunda metade da década de
1990, a chamada multimídia, sistema de comunicação que integra diferentes veículos de
comunicação e seu potencial interativo‖ (Chauí, 2006: 67).
A multimídia enfatiza, segundo Chauí, dois traços de um novo modo de vida (notório,
sobretudo, nas chamadas classes médias), quais sejam, a centralidade da casa e o
individualismo. No primeiro caso enfatiza-se o investimento na ―aquisição de aparelhos‖ que
permitam cada vez mais os indivíduos a não saírem de casa. No segundo caso, destaca-se
como o uso de alguns meios (aparelhos portáteis), por exemplo, reforça a individualização do
espaço e do tempo dos indivíduos, mesmo dentro de um ambiente familiar, no cotidiano
doméstico. É assim que ―o microondas favorece refeições solitárias, reduzindo as refeições
familiares coletivas; o telefone celular e o microcomputador permitem conversas no
isolamento de um cômodo, sem a presença de outro membro da família‖. Desta forma, ―cada
membro da família pode compor seu próprio mundo audiovisual à parte dos outros‖ (Idem).
Este isolamento é algo corriqueiro no cotidiano das grandes cidades, onde é comum que
pessoas transitem por ruas movimentadas, cada uma com seu sistema de som individual, ou
mesmo em cafés, bares e outros ambientes coletivos, com seus computadores pessoais,
indiferente a quem estar do lado
96
. Para alguns setores da classe trabalhadora, em especial os
jovens, a posse de alguns destes aparelhos, implica em status social, por isso, mas que
―usados‖ estes devem ser mostrados.
Como um dos exemplos mais específicos de ―facilitadores‖ da superficialidade das
relações sociais na contemporaneidade pode-se citar a internet
97
, que apesar de não ser
extensiva a toda a população pode nos dar uma idéia da falta de profundidade destas relações.
95
Chauí (2006: 67) esclarece sobre o sistema digital e o que se passa no plano da comunicação na atualidade
que: ―Como escreve Caio Túlio Costa, houve não a expansão da tecnologia analógica, mas em menos de
duas décadas, o salto para a tecnologia digital, a explosão da telefonia celular e a multiplicação das maneiras
de comunicação, com a possibilidade de interação entre redes de computador, e ―um aumento exponencial na
velocidade na transmissão de dados, sob qualquer plataforma celular, rádio, satélite, fibra de vidro ou mesmo
fio de cobre‖. Dessa forma, os dados passaram a trafegar nas redes de comunicação passando de mil para
milhões de bytes‖.
96
Ao se referir a pesquisa realizada sobre esta temática Chauí (2006: 70) o recorte de classe que atravessa o uso
desta tecnologia, assim, pesquisas ―indicam o crescimento da estratificação social entre os usuários: ou seja, o
peso das diferenças de classe, etnia e gênero, pois o acesso a multimídia depende não só de condições
econômicas (dinheiro, infra-estrutura física da casa, disponibilidade de tempo) mas também de condições
educacionais e culturais (conhecimento de várias línguas, conhecimentos gerais básicos para poder buscar
informações e formas de interação entre elas), de sorte que surgem dois tipos de usuários, o que é capaz da
ação seletiva e interativa e o que só é capaz de recepção de pacotes enviados pelo emissor. Em outras palavras,
a multimídia reforça a exclusão social (do ponto de vista econômico) e a hierarquia ( do ponto de vista social e
cultural)‖.
97
Não estamos desconsideramos os aspectos positivos que a comunicação via internet trouxe, ressaltamos este
elemento por considerá-lo importante para a nossa análise.
142
Utilizamos o termo facilitador porque entendemos que a internet ocupa este espaço por
existir anteriormente uma base que lhe permita este lugar. Desta forma, o instrumento em si,
neste exemplo não cria a superficialidadedas relações, mas facilita e explicita algo que tem
sua base constituída e esta base sim, pode ser extensiva a toda a sociedade.
Como destacamos acima, entendemos que a superficialidade e descartabilidade
predominante nas relações sociais hoje não são decorrentes do uso da tecnologia. Estas são
resultados da dinâmica do tempo e do espaço e das relações sociais que vigoram na sociedade,
na vida das pessoas e da preponderância da imagem como a ―verdadeira‖ referência de
sociabilidade. Mas por outro lado, o uso das tecnologias as reforça e ―autoriza‖.
A possibilidade que os programas de conversa on-line trazem, só para ficarmos em um
exemplo, de ―eliminação‖ aparente do tempo e do espaço fez com que a busca de relações
virtuais em diversas dimensões se tornasse tão comum quanto ir a um bar da esquina, ao
cinema, ao teatro e conhecer alguém com quem se possa conversar, trocar experiências,
compartilhar gostos. Na verdade, a primeira relação substitui a segunda. E o segmento da
sociedade mais vulnerável a estas relações superficiais são os jovens.
As salas de bate-papo, as conversas on-line substituem as praças, os espaços públicos
de convivência.
O problema está não que as relações virtuais sejam superficiais, mas quando esta
superficilidade ultrapassa o virtual, quando as relações cotidianas construídas sobre o tempo
do presente e o vivido agora se tornam vazias e desprovidas de sentido, assumem a
configuração da virtualidade, como destacamos acima
98
.
O tempo mínimo, a corrida desenfreada por acompanhar o tempo contemporâneo, a
solidão, o medo, a desconfiança e o ―vazio‖ subjetivo do qual fala Kehl (In Bucci e Kehl,
2004), são os recheios deste ―modelo‖ de relação social. É mais seguro ter um amigo virtual, é
mais confortável não sair de casa, é mais prudente não se mostrar ao outro, a não ser que se
tenha um invólucro interessante, que pode ser virtual, para mostrar.
98
Um exemplo no nimo intrigante e sintomático sobre o que falamos estar no que atualmente é conhecido
como Reborn baby(bebês renascidos) e na relação que algumas pessoas m estabelecendo com eles. Os
Reborns são bonecos feitos para parecerem reais, muitos recebem textura de pele, enraizamento de cabelo
verdadeiro, fio a fio, cílios, olhos e outros acessórios que os tornam muito parecidos com bebês de verdade. A
questão estar em que tem aumentado o número de pessoas em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil,
que compram esses bebês e os tratam como se fossem crianças de verdade, preparam enxovais, montam
quarto, e os ―criam‖ como seus filhos, saem para passear com eles, criam grupos de ―pais‖ de rebornse
estabelecem uma ―relação‖ com os bonecos, como se estivessem se relacionando com crianças reais.
Proliferam ginas na Internet que vendem os ―bonecos‖ e páginas com depoimentos de pessoas que dizem
―ter mudado suas vidas‖ depois de adquirirem um.
143
Um exemplo sobre o tema que aqui nos propomos discutir foi à criação de um
programa virtual chamado ―Second life‖. Ao falar do Second Life, um mundo em 3D criado
pelo físico norte-americano Phillip Rosedale, desde 1999, quando seu criador investiu US$ 1
milhão para abrir uma empresa, a Linden Labs, criando um universo paralelo, lançado em
2003, a Folha Online (31/10/2007, 15: 02) diz:
Esse mundo hoje abriga quase 10 milhões de pessoas e mais de 7.000 empresas. Com
uma riqueza de US$ 10 milhões por mês, o SL encontra-se em plena expansão. No
ranking dos países com números de usuários, o Brasil aparece em quarto lugar, com
200 mil participantes. Vem atrás dos Estados Unidos, da França e da Alemanha. O
interessante é que agora as empresas decidiram entrar no jogo e vêm investindo
pesado para manter marcas, conceitos e produtos no espaço povoado por avatares (o
alter ego virtual). As primeiras a desembarcar nesse território foram Adidas, IBM e
Dell. Logo depois surgiram centenas de outras, que têm desembolsado milhares de
dólares para comparar ilhas e promover ações diversas.
Este programa consiste em uma mistura de entretenimento e negócios e, como o
próprio nome indica, permite aos indivíduos que nele entrarem assumir uma identidade
virtual, que pode ser em tudo diferente da sua verdadeira. Na verdade, o ―Second Life‖
prometeu mais do que cumpriu e não se mostrou, como acreditavam os mais otimistas, uma
promissora ―ilha da fantasia‖ dos negócios. De qualquer forma, do ponto de vista da criação
de relações superficiais é um interessante exemplo de como as pessoas que o procuram estão
cada vez mais interessadas em fugir da realidade e participar, sem mudanças substantivas em
suas vidas, de um mundo paralelo.
Do ponto de vista das relações mercantis, o ―Second life‖ funciona como um mercado
livre virtual, com investimentos e transações reais, com bancos, ―imóveis‖, empresas, etc.
Do ponto de vista do indivíduo representa a possibilidade de que este assuma outra
identidade, de ―conhecer‖ ―pessoas‖, lugares, fazer compras, aplicações etc., em um mundo
diferente daquele em que transita todos os dias. Os indivíduos que desejem navegar pelo
―Second Life‖ devem assumir uma identidade (e personalidade) dentre as várias disponíveis
no programa (passam a ser chamados de avatares). A partir daí criam comunidades, viajam
pelo mundo, constroem coisas, compram, negociam, namoram, casam, assumem uma
―segunda vidae podem mudar no campo virtual‖ o que não lhes agrada na vida real. Pra
que mudar a realidade se você pode ser o que quer em uma segunda vida? A realidade torna-
se irreal e sem graça nesta perspectiva.
Outro exemplo, interessante para a nossa análise é o Orkut, o site de relacionamento
(do Google) mais usado no Brasil e que abriga perfis de milhares de brasileiros que buscam
144
através da página virtual, encontrar amigos, participar de comunidades e às vezes se mostrar
ao outro de uma maneira totalmente diferente do que é. Quanto a este último aspecto é
interessante observar o número de denúncias que vêm sendo feitas no Brasil de perfis de
―celebridades‖ que são ―clonados‖ ou ―falsificados‖ na gina do Orkut. Além do fato
instigante de que pessoas que se fazem passar por celebridades e vivem uma vida virtual
totalmente diferente da sua, o mais curioso é que, do outro lado, estes falsos perfis conseguem
centenas de ―amigos‖, fãs que fazem de conta que acreditam que de fato estão se
―relacionando‖ com seus ídolos.
Além destes exemplos, os ―reality-shows‖ e os programas de ―auto-ajuda‖, podem ser
vistos como uma modalidade de programas que impõem uma nova relação do tempo (e do
espaço) na cotidianidade, expressam e reforçam a descartabilidade e a superficialidade das
relações sociais.
No Texto ―Exibicionismos: três observações sobre os reality shows‖, ao se referir ao
sucesso desse tipo de programa como residindo na ―destruição da dimensão pública da vida
humana‖ e ―a privatização do sentido da vida‖, bem como a ―consagração do homem
subjetivo em lugar do homem político‖, paradigmas que a nossa sociedade construiu, Kehl (In
Bucci e Kehl, 2004; 173) destaca:
Que o prêmio seja concedido com base em critérios afetivos, puramente imaginários,
revela o tamanho da opressão a que estamos todos submetidos: se o espaço público é
invadido pela representação da vida privada, quem não quiser ser expulso do jogo tem
que comprometer não uma parcela do seu tempo de vida (como o operário das páginas
d‟O capital), mas sim todo o seu ―ser‖ nessa alienação, em que a tirania do
sentimentalismo coletivo é que dita as normas para a ―seleção de pessoal‖.
Importa perguntar como esses exemplos podem influenciar a vida de milhões de
pessoas, quando nem todas têm acesso à internet e assistem aos ―reality shows‖ ou buscam
programas de auto-ajuda. Entendemos estes exemplos como expressivos de uma época”,
aparecem para expressar um processo que existe, borbulha no interior da sociedade e
não para criá-lo, são expressão, resultado e não causa, mas ao mesmo tempo reforçam e
mantém comportamentos e padrões e, reforçam e legitimam, sobretudo, a exploração da
força de trabalho pelo capital.
Como indicamos anteriormente a imposição do tempo do capital como tempo dos
indivíduos é uma forma de apropriação do tempo livre e, portanto, de mercantilização de
aspectos da vida que estavam por fora das relações mercantis. A apropriação do tempo de
trabalho, entretanto, persiste, e é cada vez mais legitimada pelo que estamos aqui chamando
145
de ―roubo do tempo‖, porque é ela que garante que o ―tempo livre‖ possa ser mercantilizado e
alienado.
4.4. o roubo do tempo a obsolescência artificial das relações sociais
O tempo presente é altamente manipulável e manipulá-lo implica uma aparente fuga
da realidade. É o fetiche do tempo driblá-lo em uma sociedade que impõe como meio de
aferição de suas capacidades de ―adaptação‖ o próprio tempo.
Neste sentido, ―ganhar tempo‖ parece ser a vantagem competitiva que cada um pode
ter sobre os outros. Quem começa a estudar tarde, sai em desvantagem e tem que fazer
desta forma cursos mais curtos. Quem se forma mais cedo, tem mais chances. Fazer amizade
pela Internet leva menos tempo que ir a um bar, ao cinema, conhecer pessoas. Tudo se torna
obsoleto muito rápido, inclusive as próprias pessoas. Estar no tempo certo (leia-se no tempo
do capital), no tempo onde tudo é rápido demais parece a única forma de sobreviver aos
imperativos do ―tempo mínimo‖, não estar no tempo certo é ficar fora de sintonia com o
mundo.
A manipulação do tempo -se através da ―captura
99
do tempo dos indivíduos pelo
capital, não tempo que não seja ocupado, não tempo livre desalienado (somente
como exceção). E essa captura se não somente pela mediação do dinheiro, necessária em
praticamente todas as atividades desenvolvidas pelos indivíduos, mas também pela ―ditadura
do tempo livre‖, pela imposição, por parte do capital, do que deve e do que pode ser feito no
chamado ―tempo livre‖
100
, o que retira a qualificação de ―livre‖ do próprio tempo.
Lefebvre (1967) na sua análise sobre a vida cotidiana na sociedade capitalista, diz que
esta implica uma divisão entre o tempo do trabalho e o tempo das distrações e que o segundo
portaria uma capacidade de construção de rupturas com o próprio capitalismo. Interessante a
abordagem do autor e se pensarmos que no tempo livre se desenvolveriam capacidades
99
Em relação ao que chamamos captura do tempo é importante destacar que o investimento no setor de serviços
direcionados ao lazer, à ocupação do ―tempo livre‖, ou seja, o investimento na chamada indústria do
entretenimento (empresas de entretenimento para famílias, parque temáticos, etc), tornou-se bastante lucrativo,
exemplificando esta assertiva. A ―captura do tempo‖ implica na apropriação do tempo do não-trabalho pelo
capital, através, em especial, da ―indústria‖ do entretenimento em suas diversas formas.
100
Para que nosso tempo possa ser preenchido com atividades (em forma de serviços) oferecidas pelo capital é
necessário que tenhamos cada vez menos espaços públicos onde possamos desfrutar do tempo ―sem pagar
nada‖. É neste sentido que nos grandes centros urbanos, o que era público se torna privado, as praças, os
parque, se deslocam para dentro dos shoppings, que passam a ser os templos do consumo e do tempo livre. Cf.
Padilha (2006).
146
criativas que estejam para além do capital entenderemos que aqui também contradições
que podem ser exploradas de forma positiva. À medida que o próprio tempo livre é
apropriado de forma mercantil pelo capital, o que resta de tempo ―verdadeiramente livre‖ na
sociedade comporta cada vez mais este aspecto positivo, de criação de instrumentos de
resistência ao próprio capital. Por outro lado, a caracterização do que seria, de fato, ―tempo
livre‖ na sociedade capitalista ainda é uma demanda das chamadas ciências humanas e
sociais.
Entretanto, o capital se apoderou do tempo livre da sociedade, através, em especial, da
indústria cultural e do entretenimento. Com a indústria cultural foi possível tanto a
transformação de obras de arte em mercadoria como o consumo de ―produtos culturais‖
fabricados em série. Chauí (2006: 28) ao falar da indústria cultural, a partir dos aportes de
Adorno e Horkheimer destaca que:
Os produtos da indústria cultural buscam meios para ser alegremente consumidos em
estado de distração. Todavia, cada um desses meios ―é um modelo do gigantesco
mecanismo econômico que, desde o início, mantém tudo sobre pressão tanto no
trabalho quanto no lazer que lhe é semelhante‖. Em outras palavras, além do controle
sobre o trabalho, a classe dominante passou a controlar também o descanso, pois
ambos são mercadorias ―o amusement é o prolongamento do trabalho sob o
capitalismo avançado. É procurado por aqueles que querem subtrair-se aos processos
de trabalho mecanizados, para que estejam de novo em condições de afrontá-lo‖.
Em tempos atuais, a fuga para o descanso alienado não se somente como fuga dos
processos de trabalho, uma vez que é cada vez mais reduzido o número daqueles que têm
acesso à expropriação do seu tempo de trabalho pelo capital, mas a fuga é também a fuga do
próprio tempo opressor (―do trabalho‖ e ―do desemprego‖, de relações familiares e etc.).
Assim, mesmo aqueles que não conseguem e jamais conseguirão emprego, que desenvolvem
atividades esporádicas, estratégias de sobrevivência, encontram-se sobre o imperativo
opressor do ―tempo de trabalho‖ que é contraditoriamente ―tempo do desemprego (e não
tempo livre).
Neste sentido, o ―tempo livre‖ produzido nas sociedades modernas foi apropriado e
alienado pela dinâmica do capital e resgatar o seu sentido verdadeiramente livre, como
assinalamos, é uma forma de resistência. Nas palavras de Mészáros (2007: 43):
Portanto, uma das conquistas mais importantes da humanidade está na forma do tempo
livre potencialmente emancipatório, incorporado no trabalho excedente
produtivamente crescente na sociedade, precondição e tesouro promissor de todo
avanço futuro, se libertado de seu invólucro capitalista alienante. Essa conquista, no
entanto, foi forçada a vestir a camisa-de-força fundamentalmente sufocante da mais-
147
valia, sob o corolário do imperativo de reduzir ao mínimo o tempo de trabalho
necessário, de modo a ser manipulada pela contabilidade do tempo não apenas
desumanizadora, mas também, em termos históricos, cada vez mais anacrônica, do
sistema.
A liberação do tempo do trabalho, ou seja, a construção do tempo livre é
(contraditoriamente) a outra face do imperativo do tempo do capital, para Mészáros, a
destruição da história, sua negação. Esta contraditoriedade presente na sociedade capitalista
traz em si, mas não realiza por si, a possibilidade (os elementos) de emancipação ou de
destruição dos homens contemporâneos.
Como exemplo desta última possibilidade, no seu livro ―A sociedade do espetáculo‖
Debord aponta como o capital transforma o tempo em algo vendável, uma vez que até o
tempo se torna espetacular e, portanto, se diferencia do tempo ―comum‖ adquirindo aspectos
de mercadoria. Assim:
Em seu setor mais avançado, o capitalismo mais concentrado orienta-se para a venda
de blocos de tempo ‗todos equipados‘, cada um constituindo uma única mercadoria
unificada, que integrou um certo número de mercadorias diversas. Por isso, na
economia em expansão dos ‗serviços‘ e dos lazeres pode aparecer a expressão
‗pagamento com tudo incluído‘ para o hábitat espetacular, os pseudodeslocamentos
coletivos das férias, as assinaturas de consumo cultural e a venda da própria
sociabilidade sob forma de conversas animadas‘ e de ‗encontro com personalidades‘.
Essa espécie de mercadoria espetacular, que evidentemente pode existir em função
da penúria das realidades correspondentes, também aparece entre os artigos que
promovem a modernização das vendas, e pode ser paga a crédito. (Debord; 1997:
105).
Se o tempo espetacular se torna o tempo que o capital oferece ao consumidor, em
geral, viver no tempo ―comum‖ pode parecer um deslocamento do que é apresentado como
realidade. Nestes termos; ―o tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, tanto
como tempo de consumo das imagens, em sentido restrito, como imagem do consumo do
tempo, em toda a sua extensão‖ (Debord; 1997: 105). Viver no ―tempo espetacular‖ é uma das
formas de tornar superficiais as relações sociais: realidade e ficção de confundem de tal forma
que se torna difícil avaliar a veracidade das ―imagens‖ e das ―pessoas‖ como imagens.
A mídia atualmente investe neste tipo de inversão entre o real e o ficcional como
forma de superficializar as relações e reforçar o controle sobre o ―tempo social‖. É assim que,
segundo Chauí (2006: 50) ―se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realidade
e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o
mundo quando vemos a tv‖. Este procedimento ―deliberado de controle social, político e
cultural‖ estruturado a partir da ausência de referenciais concretos de lugar e tempo,
148
transforma a realidade em ficção (vide noticiários de rádio e tv) e a ficção em ―relato do real‖.
Neste último caso, as telenovelas são, no Brasil, os melhores exemplos. Abordaremos mais
adiante esta questão.
À economia de tempo social produzida pelo avanço das forças produtivas se opõe o
apossamento do capital desse tempo. Neste sentido, Debord assinala ainda que:
A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada
pelos momentos de lazer e de férias, momentos representados à distância e desejáveis
por definição, como toda mercadoria espetacular. Essa mercadoria é explicitamente
oferecida como momento da vida real, cujo retorno cíclico deve ser aguardado. Mas,
mesmo nesses momentos concedidos à vida, ainda é o espetáculo que se mostra e se
reproduz, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como a vida real
revela-se apenas como a vida mais realmente espetacular. (Id:106).
O marketing e a indústria do lazer investem no ―roubo do tempo‖ para fazer com que o
―tempo do capital‖, da mercadoria, não seja apenas o tempo da produção, da compra ou do
consumo, mas todo o tempo do indivíduo.
Nesta lógica qualquer experiência de ―tempo verdadeiramente livre‖ aparece como
anacrônico ao tempo presente. Os indivíduos vivem, por outro lado, a ―liberação do
imperativo do tempo do capital‖, por mais fugaz que seja (pois isto é pouco provável,
individualmente, ao longo prazo), como algo que merece ser penalizado, como
improdutividade. É improdutivo, desta forma, quem não se submete aos ditames do capital,
quem não vive na dinâmica alucinante das grandes metrópoles, é improdutivo quem tem seu
próprio tempo
101
. E o improdutivo na sociedade capitalista ―merece‖ ser penalizado, ainda
hoje, como eram nos tempos de emergência desta sociedade.
Este controle quanto ao ―uso do tempo‖ é assimilado pelo sujeito de tal forma que ele
mesmo se torna vigilante do seu tempo e se culpa e auto-penaliza quando não conseguem
obedecer aos ditames do tempo presente. É assim com o todos os ―tempos sociais‖ e os
―pessoais‖.
Os que tentam individualmente não se submeter ao ―tempo do capital‖ acabam se
deparando com limites concretos: limites sociais, políticos, culturais, econômicos, limites
101
Citamos novamente Kehl (artigo ―O tempo e o cão‖, 2008b) ao falar das depressões, para exemplificá-las
como uma forma de desconexão do homem com o tempo: ―De acordo com Fedida, é possível compreender
que na origem da depressão encontra-se uma questão do sujeito com o tempo. Entendo que o depressivo foi
arrancado de sua temporalidade singular; d sua lentidão, tão incompreensível e irritante para os que
convivem com ele. Ele não consegue entrar em sintonia com o tempo do Outro. Fédida enfatiza o valor da
lentidão que caracteriza o percurso de uma psicanálise, para sujeitos deprimidos. Para ele, a aceleração
imposta aos atos mais corriqueiros da vida cotidiana contribui para uma ―pauperização da vida psíquica‖, na
forma de uma ―desaparição normalizada do tempo da comunicação humana‖.
149
presentes no próprio cotidiano. Assim, o ―tempo do trabalho‖ se torna opressor, como se
tornam também o tempo do desemprego, o ―tempo dos lazeres mercantis alienantes‖ e o
tempo também, como nos indica Kehl, dos deprimidos, dos ansiosos e etc. A saída à opressão
do tempo só pode ser coletiva.
A transposição da lógica mercantil para as relações sociais, que passam a expressar
neste caso, como acabamos de ver, as mesmas características das coisas: a descartabilidade, a
superficialidade, a obsolescência artificial e etc., cria espaço para a predominância da imagem
como expressão privilegiada do fetiche na contemporaneidade, aspecto que abordaremos no
próximo capítulo.
150
CAPÍTULO 5 - IMAGEM E FETICHE
5.1 A imagem como expressão privilegiada do fetiche da mercadoria na atualidade
As imagens não vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos
que as vêem... (Ensaio sobre a cegueira José Saramago in
Fontenelle pg. 277).
Como apontamos anteriormente entendemos a ―estetização da mercadoria‖, como
um dos elementos de expressão do processo histórico de desenvolvimento do seu fetiche. Por
outro lado, consideramos que a imagem é hoje a expressão máxima desse fetiche, a imagem e
tudo o que ela porta: sua linguagem, sua forma, seu apelo sensual, posto ser através da
imagem que se desenvolvem um complexo de elementos funcionalmente articulados de
estímulo ao consumo.
Assim, o próprio desenvolvimento histórico da mercadoria levou a produção de um
setor específico, voltado à garantia e manutenção de sua ―estética‖, como um elemento
determinante na indução à realização do valor e este ―setor‖ é em grande parte (mas não )
responsável pela produção de elementos que induzem de forma direta na criação do que
estamos chamando em nossa tese de ―campo especial de necessidades‖.
Desta feita, os elementos que analisaremos neste item, relativos à estetização da
mercadoria, são elementos históricos constituídos socialmente e que fazem parte das
intricadas relações sociais que dão significado à sociedade capitalista. E o presente capítulo
visa apresentar alguns aportes para a reflexão sobre a imagem como expressão privilegiada de
linguagem das mercadorias da fase do capitalismo que vivenciamos.
A imagem não surge com o capitalismo tardio e a imagem como veículo e expressão
do fetiche da mercadoria não é uma especificidade deste. Entendemos, a partir de Marx, que a
imagem é um pressuposto para a efetivação do próprio fetiche.
O que então diferenciaria o ―lugar‖ que a imagem ocupou desde o surgimento do
capitalismo, da sua forma atual? Encontramos em Debord (1997), Jameson (2004) e Harvey
(2001) alguns argumentos bastante interessantes para responder a esta questão. Quando
tratamos da imagem como expressão privilegiada do fetiche no capitalismo tardio, não
estamos tratando de qualquer imagem, mas da sua forma espetacular.
Como nos aponta Debord há uma disseminação tamanha da imagem na vida dos
homens atuais que esta se torna veículo de relação entre os próprios homens. Este é um
aspecto importante de sua espetacularização. Um outro aspecto é uma relativa autonomia que
151
a imagem passa a ter ao se despregar do corpo dos objetos, onde até então se encontrava
aprisionada. O fenômeno da imagem em suas diferentes formas (vídeo, cinema, fotografia,
televisão, etc.) atingindo um número muito maior de pessoas é um resultado deste processo e
não causa, como se poderia imaginar. Resultado que, é importante que se diga, volta a ―retro-
alimentar‖ o processo em questão.
A ―autonomização‖ da imagem não pode ser entendida senão como processo histórico,
processo que tem na produção mercantil sua base, a tal ponto que elas mesmas, as imagens,
são produzidas como mercadorias. A produção da imagem como mercadoria apesar de portar
aspectos particulares pode ser apreendida a partir dos elementos que Marx apresenta para a
produção mercantil
102
. São nestes termos que imagem e fetiche são compreendidos como
partes do mesmo movimento.
Harvey (2001: 260) ao se referir a transformação das imagens em mercadorias destaca
que ―os sistemas de produção e comercialização de imagens (tal como os mercados da terra,
dos bens públicos ou da força de trabalho) de fato exibem algumas características especiais
que precisam ser consideradas‖. Tais características dizem respeito em especial ao curto
tempo de giro de consumo destas imagens e a possibilidade de que estas possam ser vendidas
―em massa instantaneamente no espaço‖. Entretanto, nos indica Harvey (Idem) que as
imagens desempenham também outras funções e, neste sentido: ―Tanto as corporações como
os governos e os lideres intelectuais e políticos valorizam uma imagem estável (embora
dinâmica) como parte de sua áurea de autoridade e poder. A mediatizacão da política passou a
permear tudo. Ela se tornou, com efeito, o meio fugidio, superficial e ilusório mediante o qual
uma sociedade individualista de coisas transitórias apresenta sua nostalgia de valores
comuns‖.
Isleide Fontenelle nos ajuda a entender como a própria idéia (bastante disseminada
hoje) de que a imagem estaria totalmente desprovida de relação com o real (porque este ou
não mais existiria ou estaria desprovido de qualquer significado) faz parte do ―fetiche da
imagem‖. Para Fontenelle (2002; 289); ―As imagens passam a circular, então, aparentemente
descoladas do mundo material da produção, embora fortemente conectadas ao circuito
mercantil. Mas é o atual estágio produtivo do capitalismo (...), que ganha ares de
102
Harvey (2001:260) nos indica a este respeito que com a transformação das imagens em mercadorias, alguns
estudiosos, como Baudrillard (1981), passaram a alegar que a análise marxiana da produção de mercadorias
era ultrapassada, ao que destaca Harvey que não ―dificuldades sérias para estender a teoria da produção da
mercadoria de Marx‖ ao tratamento da produção mercantil de imagnes. Quanto à ―organização e as condições
de trabalho na indústria da produção de imagens‖ Cf. Harvey (2001).
152
‗imaterialidade‘ e permite essa aparente dissociação, fazendo com que, nesse novo sistema
produtivo, sua base ‗virtualmente material‘ já emirja integrada a produção cultural‖. As
imagens se conectam ao circuito mercantil como aponta Fontenelle, não só porque garantem
que mercadorias ditas ―reais‖ sejam consumidas, mas porque elas mesmas são produzidas e
consumidas enquanto mercadorias.
Mas o que estamos entendendo por imagem? Para responder a esta questão
recorreremos ao processo de ―autonomização‖ da imagem enquanto elemento de expressão do
fetiche da mercadoria
103
.
O fetiche da mercadoria, conforme o indicamos, consiste em que a própria
mercadoria oculte o trabalho dos homens, necessário para a sua produção, que apresente como
características materiais suas, propriedades sociais do trabalho humano que as produziu
(Marx). Assim, a aparência fulgurante da coisa-mercadoria apresenta-se como se
correspondesse à sua forma (imagem) e conteúdo (propriedades). Neste momento imagem e
coisa estão coladas. A imagem, portanto, é uma forma do real se expressar (portanto, parte do
real), que no fetiche toma o lugar do próprio real e das relações que o produziram e as
esconde. Importante notar que em nenhum momento ao falar sobre o ―fetichismo da
mercadoria‖ Marx diz que poderia ser diferente na sociedade produtora de mercadorias,
porque na verdade não poderia, está é a forma das coisas-mercadorias na sociedade
capitalista.
É com o capitalismo tardio que esta imagem se ―autonomiza‖ e, portanto, se torna
efetivamente espetacular. Como diz Debord (1997; 28): ―O princípio do fetichismo da
mercadoria, a dominação da sociedade por ‗coisas supra-sensíveis embora sensíveis‘, se
realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção
de imagens que existe acima dele, e que, ao mesmo tempo, se fez reconhecer como o sensível
por excelência‖.
A imagem, portanto, não se restringe ao campo visual, apesar de ter nele seu meio
receptor privilegiado. Esta implica o visível e todo um processo imaginativo (que envolve
memória, percepção, desejo, etc.) desencadeado a partir do que é visto (ouvido ou mesmo,
103
O processo de relativa autonomia da imagem envolve vários elementos que convergiram de forma essencial
na sua conformação. Tais elementos vão desde o surgimento da fotografia, do cinema e da televisão até o uso
da publicidade e a recorrência a pesquisas da neurociência como forma de estimular o consumo. Neste artigo
abordaremos apenas os elementos relacionados ao fetiche da mercadoria, sem esquecer que sem a fotografia, a
televisão, o rádio, provavelmente a imagem da mercadoria não assumiria as dimensões que assume hoje.
Jameson (2004) e Harvey (2001) têm importantes contribuições sobre a autonomização‖ da imagem em
outros ―campos‖ culturais.
153
imaginado). É neste sentido que as publicidades usam uma linguagem que tem, além da
função de mostrar uma pseudo-realidade, a de desencadear um processo de relação daquilo
que foi visto (ouvido ou imaginado) com todos os âmbitos da vida (em especial com os
desejos e fantasias).
A imagem, desta forma, como meio, como veículo, ou melhor, expressão privilegiada
do fetiche da mercadoria no capitalismo tardio, apresenta um duplo movimento: primeiro, é
expressão da máxima mercantilização das relações sociais/subjetivas e, segundo, funciona
como elemento desta mercantilização, como recurso do capital no que Kehl (2004) chama de
―captura do sujeito pela imagem‖.
Nosso intento neste capítulo é trazer alguns elementos que nos permitam pensar como
se configura e articula hoje este duplo movimento.
Para entendermos a dimensão que a imagem tem na sociedade capitalista atual (de
necessidade), é preciso compreender em especial dois movimentos; o primeiro a
mercantilização de setores sociais (e elementos da vida) que escaparam das relações mercantis
por muito tempo e que no capitalismo tardio, não mais o puderam. O outro movimento,
como apontamos, corresponde à relativa autonomia que assume a imagem, constituindo-se
como mercadoria singular. Citamos, dentro deste último aspecto, o surgimento da fotografia,
do cinema, mas também da marca para representar uma mercadoria, como um elemento
essencial para a autonomia da imagem na sua relação com a própria mercadoria.
O processo de ―autonomização‖ da imagem engloba diversos elementos convergentes,
que vão, desde mudanças substantivas no plano cultural até o aprimoramento da ciência e da
técnica. A emergência da marca como identidade do produto não seria possível sem a
fotografia, só pra citar um exemplo.
Ao discutir sobre o surgimento das marcas Isleide Fontenelle (2002) vai buscar em
Zizek a justificativa de que mais importante do que o movimento de grandes marcas para
expressar um modo, um estilo de vida (e não mais a identidade de um produto) é o
movimento inverso, onde os indivíduos passam a buscar sua auto-apreensão ideológica na
própria marca. As marcas Marlboro, Coca-Cola e McDonald são exemplos marcantes
indicados pela autora. Ela destaca que no caso destas marcas:
(...) verificamos um processo de transmutação: num dado momento, a marca usa
elementos da realidade social para construir a sua imagem; em um outro, é essa
própria realidade social que se refere à marca para definir a si mesma, neste sentido a
realidade se ―desmaterializa, se irrealiza‖ para usar termos tão caros a Jean
Baudrillhad porque, ―aparentemente‖, passa a ter existência concreta ao estar
154
referida por essas marcas. Mas esse processo tem sua gênese em um conceito mais
antigo e que vem de uma longa história que culmina na ―sociedade das imagens‖
contemporânea: ele responde pelo nome de fetichismo. (Fontenelle; 2002: 280).
Para além das mudanças ocorridas no campo cultural (sobre o qual Jameson nos
oferece interessante análise), a crescente mercantilização de amplos setores da vida cotidiana,
cria a necessidade de que estas relações também tenham sua representação imagética.
Jameson (2004) nos oferece uma interessante abordagem deste movimento, que ele
denomina de ―Transformação da imagem na pós-modernidade‖
104
. Para Jameson, o processo
de constituição da imagem como linguagem do capitalismo tardio é o mesmo de constituição
do pós-modernismo como lógica cultural deste último, esse novo papel da imagem é um dos
seus elementos constitutivos. A ―sociedade da imagem‖ se constitui de fato quando ―(...)
segundo Paul Willis, os sujeitos humanos, expostos ao bombardeio de até mil imagens por
dia, vivem e consomem cultura de maneiras novas e diferentes‖. Esta forma diferente consiste
em que a reflexividade (que a imagem poderia suscitar) se submerge, como nos aponta
Jameson (id.); ―(...) na superabundância de imagens como em um novo elemento no qual
respiramos como se fosse natural‖
105
.
Harvey (2001: 260/1) ao discutir a mercantilização da imagem e o papel do
simulacro
106
no ―pós-modernismo‖ destaca que ―Os materiais de produção e reprodução
dessas imagens, quando estas não estão disponíveis, tornam-se eles mesmos o foco da
104
Ao discutir a transformação da imagem na pós-modernidade Jameson (2004b: 135/6) afirma: ―A nova
situação, que chamei de terceiro momento, momento propriamente s-moderno ou avatar da visibilidade
hoje, apresenta agora problemas paradoxais. Ela significa uma mais completa estetização da realidade que é
também, ao mesmo tempo, uma visualização ou colocação em imagem mais completa dessa mesma realidade.
Entretanto, onde o estético impregna tudo, onde a cultura se expande até o ponto em que tudo se torna
aculturado de uma ou outra forma, nessa mesma medida, o que se costumava chamar filosoficamente de
distinção ou especificidade do estético ou da cultura tende, agora, a obscurecer-se ou desaparecer
completamente. Se tudo é estético, não faz mais sentido evocar uma teoria distinta do estético; se toda a
realidade tornou-se profundamente visual e tende para a imagem, então, na mesma medida, tornou-se cada vez
mais difícil conceituar uma experiência específica da imagem que se distinguiria de outras formas de
experiências‖.
105
Jameson (2004b: 126) aponta ainda que: ―A dominação cultural do pós moderno, penso eu, não obstante, é
duplamente assegurada tanto por meio da criatividade interna quanto da influência externa. Em outras
palavras, a onipresença das imagens comerciais norte-americanas (publicidade, filmes, televisão e,
principalmente, a tecnologia de tais imagens) pode ter o efeito de superar as formas locais e as tradições
nacionais, especificamente as culturas e linguagens regionais‖.
106
―Por ‗simulacro‘ designa-se um estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a
cópia é quase impossível de ser percebida. Com as técnicas modernas a produção de imagens como simulacros
é relativamente fácil. Na medida em que a identidade depende cada vez mais, de imagens, as réplicas seriais e
repetitivas de identidade (individuais, corporativas, institucionais e políticas) passam a ser uma possibilidade e
um problema bem reais. Por certo podemos vê-las agindo no campo da política, em que os fabricantes de
imagem e a mídia assumem um papel mais poderoso na moldagem de identidades políticas‖. (Harvey, 2001:
261).
155
inovação quanto melhor a réplica da imagem, tanto maior o mercado de massas da
construção da imagem pode tornar-se‖.
O consumo cotidiano da imagem, em especial pela tela da TV, confere a sensação de
participação de um mundo‖ que está bem distante do alcance da maioria dos
trabalhadores
107
. Neste sentido:
A cozinha do mundo inteiro está presente atualmente num único lugar de maneira
quase exatamente igual à redução da complexidade geográfica do mundo a uma série
de imagens numa estática tela de televisão. Esse mesmo fenômeno é explorado em
palácios da diversão como Epcott e Disneyworld; torna-se possível, como dizem os
comerciais americanos, ―viver o Velho Mundo por um dia sem ter de estar lá de fato‖.
A implicação geral é de que, por meio da experiência de tudo comida, hábitos
culinários, televisão, espetáculos, cinema , hoje é possível vivenciar a geografia do
mundo vicariamente, como um simulacro. (Harvey, 2001: 270/1).
Para além do objetivo de reunir no mesmo espaço e ao mesmo tempo mundos
diferentes (de mercadorias), conforme destaca Harvey (Idem), ―o entrelaçamento de
simulacros da vida diária‖, oculta, de maneira quase perfeita ―quaisquer vestígios de origem,
dos processos de trabalhos que os produziram ou das relações sociais implicadas em sua
produção‖.
Podemos dizer que o consumo intenso de imagens torna desnecessário, inclusive, que
a própria imagem assuma a função que tinha anteriormente, de comunicar diretamente uma
mensagem, agora basta que ela apresente um código que como um controle remoto dispara
um pseudo-conhecimento sobre aquilo que ela pretende anunciar. Na matéria ―Neurociências
a serviço do mercado‖ (Revista Le Monde Diplomatique Brasil, nov. 2007) Bénilde destaca
que:
Para estabelecer a conexão entre a imagem da marca e a estimulação do cérebro, a
ciência recorreu a técnicas até então utilizadas com finalidades médicas para a
detecção de tumores ou de acidentes cerebrais, como por exemplo imagens por
ressonância magnéticas (IRM). Monitorando a atividade cerebral de seus pacientes,
Montague observou que a região precisa do cérebro requisitada quando a pessoa via
uma marca, o córtex pré-frontal médio, apelava para a memória e tinha um papel
importante nos processos cognitivos. Por outro lado, o blind test gustativo envolvia a
área cerebral denominada ―putâmen ventral‖, ligada à idéia de recompensa
108
.
107
Destaca-se aqui também o consumo de pias de grandes marcas, cada vez mais disseminado nas grandes
cidades e que m na classe trabalhadora seus maiores consumidores. Este consumo, apesar de repreendido
pelo Estado, é uma fonte de divulgação e afirmação da ―imagem‖ de grandes corporações e em alguns casos,
como destaca Klein (2002) é, inclusive incentivado por estas corporações.
108
Read Montague, neurologista do Baylor College of Medicine de Houston, que em 2003 demonstrou que se
num blin test gustativo a concorrente Pepsi era a preferida, o inverso ocorria assim que se identificava
claramente a bebida como sendo Coca-Cola. Os participantes da experiência declaravam, a partir deste
conhecimento, que preferiam o refrigerante das cores vermelha e branca. (Bénilde, 2007).
156
O uso da Neurociência, do resultado de suas pesquisas, na maioria das vezes
realizadas para outros fins, como recurso para estimular o consumo é, no nosso entendimento,
um dos elementos marcantes do que chamaremos de apropriação de elementos subjetivos pelo
capital.
É nesta lógica que se reproduz a publicidade atual que não comunica mensagem,
mas imagens desordenadas disparam um dispositivo no sujeito que faz com que ele entenda e
aceite como sua decisão aquilo que a imagem diz: ―a publicidade não parte da idéia de
informar ou promover no sentido comum, voltando-se cada vez mais para a manipulação dos
desejos e gostos mediante imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser
vendido. Se privássemos a propaganda moderna da referência direta ao dinheiro, ao sexo e ao
poder, pouco restaria‖. (Harvey, 2001: 260).
Um exemplo típico do que aqui mencionamos pode ser encontrado nos comerciais da
Coca-Cola, onde a marca não tem mais necessidade de se mostrar por completo, basta um
traço, uma cor associada a um slogan ―pretensioso‖, basta que a marca se insinue a aparecer
para que ela seja vista, isto porque a imagem da Coca-Cola ―monopolizou‖ o inconsciente
dos sujeitos e estes já têm um conjunto de mensagens armazenadas sobre ―Coca-Cola‖ e basta
evocá-las com algum dispositivo para que entrem em ação
109
.
Um outro exemplo de como algumas empresas se utilizam da identificação do sujeito
com a imagem para divulgar uma marca, um produto, ou mesmo se tornarem presentes no
cotidiano dos indivíduos está no que atualmente se chama de ―viral‖ que são imagens ou
vídeos que circulam pela internet, geralmente sobre celebridades e que despertam o interesse
dos ―internautas‖ (por serem curiosos, engraçados e etc.) em repassá-los para sua lista de e-
mails, a partir daí se disseminam pela rede. A questão estar em que estas imagens são, na
verdade, publicidades ―disfarçadas‖.
O jornal laboratório da escola de comunicação da UFRJ (2007/1) traz um exemplo de
um viral que se tornou febre na internet. Trata-se de um vídeo sobre o jogador de futebol
Ronaldinho Gaúcho, que ao tentar fazer um gol (vestindo roupa da Nike, com bola da Nike e
assim por diante) acerta várias vezes seguidas na trave. A polêmica e a curiosidade sobre a
veracidade do vídeo fizeram com que ele circulasse pela rede como uma praga e que os
próprios ―internautas‖ fizessem publicidade gratuita da Nike. A matéria do jornal
109
Jameson faz interessante análise deste aspecto (de imposição da imagem como linguagem) na análise de
alguns filmes, no artigo ―Transformação da imagem na pós-modernidade‖ (2002).
157
laboratório subscreve a fala do publicitário Antonio Pedro Tabet sobre o viral e sua
potencialidade como meio de divulgação de uma marca. Segundo o publicitário: ―O grande
lance é transformar o mercado consumidor em cúmplice. E fazer isso de uma maneira que o
mercado não se sinta utilizado. Muito pelo contrário. Ele compra a sua briga‖. Ao que
acrescenta Tabet, ―E isso não significa nenhum tipo de exploração. Afinal, os consumidores
se divertem, informam-se e se relacionam ao fazer essa propaganda disfarçada. O cliente
lucra, o mercado lucra e o veículo lucra. Não há perdedores‖. Para as empresas que usam
deste artifício o custo é mínimo, quase zero, para os publicitários, uma grande ―descoberta‖ (a
cumplicidade do consumidor) e para aqueles que divulgam gratuitamente a publicidade,
diferente do que diz Tabet, uma forma de ―doar‖ seu tempo a uma grande corporação que
gastaria milhares em uma publicidade igual se tivesse que usar dos meios ―convencionais‖.
Mas a imagem não se apresenta apenas como linguagem de produtos mercantis e
Debord nos mostra de forma interessante esta questão. Debord (1997: 13) começa ―A
sociedade do Espetáculo
110
dizendo que ―Toda a vida das sociedades nas quais reinam as
modernas condições de produção se apresentam como uma imensa acumulação de
espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação‖. Com uma
referencia clara ao Marx d‘O Capital. Importante observar que Debord utiliza o termo ―(...) se
apresentam como uma imensa acumulação de espetáculos‖, o que implica em que o
espetáculo não elimina a realidade ele é parte dela, o espetáculo não elimina por outro lado a
mercadoria, ele é a linguagem da mercadoria, linguagem que também se mercantiliza.
Assim, o espetáculo não se restringe ao processo de produção e comercialização das
mercadorias, mas adentra os recantos mais escondidos da vida dos homens. Este fenômeno
não nega a sociedade que tem na produção de mercadorias seu eixo fundante e fundamental,
mas ao contrário, tanto o espetáculo é mercantil quando o que é e se torna mercantil,
mensurável e comercializável, se realiza também no espetáculo. É assim que: O espetáculo
em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. (Debord;
1997; 13).
A não-vida, desta forma, não aparece mais como a negação da própria vida, no
espetáculo a não-vida substitui a vida. um movimento que negue a ―sociedade do capital
em suas bases constitutivas, pode resgatar a força desta contradição.
110
Fazemos referência a Sociedade do Espetáculo como termo do Debord, entretanto não consideramos que o
espetáculo possa caracterizar a sociedade ao ponto de ser sua principal adjetivação. O Espetáculo é uma
aspecto marcante da sociedade capitalista que se desenvolve de forma mais intensa na sua fase de capitalismo
tardio.
158
Ao discutir ―A mercadoria como espetáculo‖, dentro da obra aqui citada, Debord nos
indica que ―O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da realidade por ‗coisas
supra-sensíveis embora sensíveis‘, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo
sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo
tempo se faz reconhecer como o sensível por excelência‖ (1997: 28). O espetáculo é o
momento em que a economia ocupou totalmente a vida social‖ (Id.: 31). Por outro lado, o
consumidor real torna-se consumidor de ilusões, nos diz Debord (Id.: 48) e a mercadoria é
essa ilusão efetivamente real, sendo o espetáculo sua manifestação geral. Mas, sempre que o
consumidor consome mercadoria, consome também uma ilusão, é esse seu fetiche, acreditar
que a mercadoria porta características que são dos sujeitos, a diferença é que agora a ilusão é
vendida à parte e se constitui ela mesma em mercadoria.
Uma forma privilegiada de decifrar elementos da sociedade onde a imagem se impõe
como verdade absoluta e negadora de qualquer realidade que a contradiz é através do fetiche
da mercadoria.
A imagem espetacular, entretanto, demonstra que o ―mundo presente e ausente que o
espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido‖. Esse
movimento acentuou-se de tal forma que o espetáculo não provoca qualquer estranheza em
quem o consome, pois contém ―parte‖ (elementos subjetivos dos desejos e fantasias) destes
indivíduos.
5.2 A “captura do sujeito pela imagem: a subjetividade como mercadoria
“(....) é que Narciso acha feio o que não é espelho”
Maria Rita Kehl (2004: 64) usa o termo captura do sujeito pela imagem para designar
o fenômeno em que personalidades (ou celebridades construídas midiaticamente) são
confundidas de tal forma com as imagens que representam que é quase impossível estabelecer
uma distinção entre pessoa e imagem. Neste item nos referiremos ao termo captura
111
do
sujeito pela imagem para falar não dos exemplos de indivíduos que se tornam imagem,
111
O termo captura parece não ser o mais apropriado para este fenômeno, uma vez que conota um movimento de
exterioridade, algo de fora captura o sujeito, quando se trata na verdade de um movimento onde o próprio
sujeito consente, mesmo que de forma alienada. Entretanto, na falta de um termo melhor trabalhado
teoricamente por nós, utilizaremos este com as ressalvas apresentadas.
159
mas, sobretudo, e, principalmente, dos que consomem a imagem e têm na imagem do outro a
representação daquilo que desejam ser.
Neste sentido, o termo usado, implica em que, de alguma forma o indivíduo que
consome a imagem se impotente diante dela. Cabe ressaltar que esta impotência diante do
poder fulgurante da mercadoria, seu fetiche, aqui expresso enquanto imagem espetacular é, na
verdade, a expressão de uma relação de dominação que está na base da produção de
mercadorias e é explicada, em nosso entender, a partir da reificação. É nesse sentido que
recorremos a Marx para entendermos este movimento.
São nos estudos de Marx sobre o dinheiro enquanto equivalente geral que
encontramos, de forma mais acentuada os elementos, que nos possibilitam entender ―o poder‖
do fetiche da mercadoria hoje. Recorrerei aqui aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de
1844, quando Marx discorre sobre a relação entre o ter e o ser, para discutir esta questão.
O poder que o dinheiro assume enquanto equivalente geral e seu fetiche advêm não de
suas propriedades físicas, mesmo quando se tratava da forma moeda cunhada em metais
preciosos, mas da sua forma social. E é enquanto forma social, forma que encerra as
potencialidades do trabalho como características do objeto, que o dinheiro se constitui em
fetiche na sociedade capitalista (já apresentamos este debate em item anterior). O que se passa
na sociedade do espetáculo é que o consumo da imagem espetacular passa a provocar os
efeitos que a posse do dinheiro provoca (continua provocando) nos indivíduos (guardando as
devidas especificidades). O primeiro movimento (o fetiche da imagem) é mais efêmero que o
segundo, porque já incorpora a temporalidade da fase atual do capitalismo.
Na posse do dinheiro o indivíduo busca que as propriedades do objeto se transfigurem
em suas próprias características a transfiguração do ser pelo ter). No consumo da imagem
espetacular, não importa mais se este consumo não transmita ao indivíduo aquilo que a
própria imagem promete, importa que a imagem contenha a potencialidade daquilo que o
indivíduo não é. Para este a imagem é o ―meio‖ que lhe permite consumir a vida que não tem,
como diz Debord, a não-vida, a negação da sua própria vida.
Com a impossibilidade histórica (para aquelas classes que não têm possibilidade de
consumir o que almejam) de que o consumo extensivo se realizasse, de que o ter substituísse
efetivamente o ser, tornou-se necessário que fossem criados novos elementos ideológicos que
garantissem o esvaziamento do ser e mantivessem as relações mercantis como referência das
relações sociais. É neste sentido, que na contemporaneidade o parecer a imagem como
160
fetiche, ocupa um lugar de destaque e é disseminada como ideologia dos tempos atuais. Como
destaca Birman (2001) a demanda de espetáculo e de performance regulam a estetização da
existência do indivíduo.
Assim, a captura do sujeito pela imagem dá-se em vários âmbitos da vida dos sujeitos
sociais, se por um lado é cada vez mais comum o consumo da imagem do outro (o outro como
mercadoria), como uma forma de reafirmar o eu, destaca-se também, uma maior recorrência à
―atitudes‖ incentivadas pela mídia como forma de construção de um indivíduo que tenha uma
imagem ―politicamente correta‖. Neste último caso proliferam as atitudes ambientalmente
corretas, o voluntariado, o ―engajamento‖ em causas ―solidárias‖ e etc. Além do aspecto
mercantil que perpassa todas estas ―causas‖ é notório seu caráter de reforço do individualismo
e de fragmentação de ações que poderiam ter outro impacto se fossem pensadas e realizadas
coletivamente.
Algumas questões como as ambientais, por exemplo, têm sentido político se
colocadas coletivamente. Se não forem ações coletivas, individualmente não como
―resolver‖ a questão do lixo em demasia, da degradação do meio ambiente, dentre outras. É
assim que os apelos da mídia para a ―conscientização ambiental do cidadão‖ são
perfeitamente compreensíveis quando, do ponto de vista individual, sabemos que não
produzirão grandes efeitos práticos, mas, contribuem para a formação de uma imagem do
indivíduo do que passou a se chamar de ―ecocidadãos‖. Enquanto se ―prega‖ um consumo
consciente do cidadão ou uma postura ecologicamente correta, grandes corporações destroem
o meio ambiente e a saúde de trabalhadores, além de produzirem, cada vez mais mercadorias
sem nenhum controle sobre os seus efeitos para a saúde de quem as consome.
Ainda sobre a questão ambiental, só para citar um exemplo, no filme ―The corporation
a corporação‖ (2004) destaca-se os danos à saúde que as grandes corporações passam a
provocar, em especial, a partir da década de 1940, quando se inaugura a ―era da habilidade de
sintetizar e criar‖. Assim, juntamente com os avanços tecnológicos que possibilitaram o
surgimento de novos produtos, agentes químicos e etc., produziu-se também ―o câncer,
crianças defeituosas e outros efeitos tóxicos‖. Um dos casos apontado no filme é o da
Monsanto (descoberto em 1989) que usava um hormônio artificial (Prosilac) para aumentar a
produção de leite de vaca, o que adoecia as vacas que precisavam desta forma tomar
antibióticos, levando, comprovadamente, a sérios riscos de saúde a quem consumia o leite.
Um outro exemplo, que também consta no mesmo filme, é o de grandes áreas do Vietnã que
foram desflorestadas pelo exército americano usando o ―agente laranja‖ da Monsanto; este
161
herbicida tóxico levou ao nascimento de mais de 50.000 crianças defeituosas e centenas de
milhares de casos de câncer em civis vietinamitas e em soldados que serviram no sudoeste da
Ásia. Destaca-se ainda que a Monsanto nunca assumiu sua culpa. No caso do Brasil podemos
citar como expressão do que aqui apontamos o impacto ambiental que o agro-negócio tem
provocado e que é responsável tanto pela degradação do meio ambiente como pela destruição
de aspectos culturais que ainda subsistiam em determinadas áreas do país.
Entretanto, o que aparece na mídia, como imagem ―politicamente correta‖, no caso das
grandes corporações é o comprometimento com o meio ambiente e o ―gasto‖ com ações
solidárias capazes de maquiar a destrutibilidade da produção.
Uma fala do filme ―Corporação‖ ilustra bem que não será a ação individual, que
resolverá a questão do meio ambiente no planeta, a dinâmica destrutiva do capital será
―freada‖ com ações coletivas de classe e com a superação da própria sociedade capitalista. Por
outro lado, a ―crença‖ de que a responsabilidade é individual dificulta ações coletivas e
reforça o poder das grandes corporações e a ideologia do capital. Nas palavras de Carlton
Brown (Commodities Trader, entrevistado no filme):
Os corretores que trabalham na bolsa de valores não são caras que querem acabar com
o ambiente e desobedecer às leis. Eles vêem dólares e eles estão fazendo dinheiro.
Corretores não se afastarão das ações de cobre porque isto viola suas crenças
religiosas ou suas políticas ambientais. Existem horas que eles pensam nisso, mas isto
passa. Isto é realmente um pensamente passageiro. (...) Uma cidade está sendo
poluída ali no Peru, mas aquele cara precisa comprar ações de cobre e vai me pagar
comissões por isso. A informação que recebemos nada diz respeito das condições
ambientais porque até que as condições ambientais sejam uma commodity e sejam
negociadas na bolsa de valores, então até nós não temos nada a ver com isso. Isso
não vem na nossa cabeça, é tão distante que você raramente ouve algo a respeito.
Quero dizer que existem coisas acontecendo aqui do nosso lado.
Daí pode-se entender porque o próprio capital incentiva programas e propagandas de
―defesa individual da natureza‖, de postura ecologicamente correta dos indivíduos, porque na
verdade estas não têm efeito algum enquanto reivindicações individuais, mas somente quando
se tornam partes de uma reivindicação coletiva (como a guerra da água na Bolívia, as lutas do
MST pela terra, dos atingidos por barragens no norte e nordeste do Brasil, para ficar em
alguns exemplos) elas passam a incomodar e tem efeito prático na realidade.
Como vínhamos discutindo anteriormente, a promessa do capitalismo de um consumo
extensivo (o modo de vida americana) fracassou historicamente e este fracasso não foi
pontencializado como negação do consumo, portanto, foi incorporado socialmente, abrindo
um espaço, em termos mercantis, um nicho de mercado, para o consumo da vida do outro, da
162
felicidade do outro, do bem-estar do outro e do próprio consumo do outro, que eunão
posso ter nada daquilo que me foi prometido na fase áurea do capitalismo. É neste espaço que
entram as telenovelas, os programas de comportamento, as revistas de fofoca, os reality shows
e outros ―espetáculos‖ do gênero.
O que estamos chamando de ―captura do sujeito pela imagem‖ é que o indivíduo se
hoje refletido naquilo que e se identifica subjetivamente com essa imagem, que não é
mais possível, para a grande maioria da população se ver no que tem. Isto porque a
impossibilidade de ter se tornou uma realidade histórica. Entretanto, contraditoriamente, o
poder da ―posse‖, do ter como definidor do ser continua presente na vida destes segmentos e
enquanto ideologia está subsumido a este novo momento. Neste sentido, é bastante atual, a
bela passagem que Marx (Goethe apud Marx; 2001: 168/69) resgata nos Manuscritos
Econômicos e Filosóficos quando trata do poder do dinheiro: ―O que para mim existe por
meio do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, sou eu,
o próprio possuidor do dinheiro. O poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades
do dinheiro são minhas do possuidor próprias propriedades e faculdades. Aquilo que eu
sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria individualidade‖.
Mas aos que não podem através do dinheiro (porque não o possuem) ter aquilo que lhe
conferiria tal status, resta o consumo do ter do outro, consumo que lhes promete a
possibilidade de que um dia possam vir a ter, mesmo que de forma caricatural (através da
imitação, que é de fato o que é possível) aquilo que deixa ―O outro‖ feliz, bonito, interessante
e em acordo com sua época.
Assim o ter como definidor do ser deve prevalecer como ideologia, como referência
social.
Como destacado anteriormente se esta é uma ―verdade‖ que se impõe
ideologicamente, posto não ser realizável para todas as classes, na fase atual do capitalismo
somada a esta há uma outra ―verdade ideológica‖: se pareço ter, posso ser considerado como
aquele que tem. Como este movimento aparece na sociedade do espetáculo? E que impactos
têm no processo de alienação dos indivíduos contemporâneos? Recorremos novamente a
Debord (1987: 24): A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que
resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla,
menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos
compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a
163
exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos não serem seus, mas de
um outro que os representa por ele.
Kehl recorre tanto a Marx quanto a Freud para explicar como o ―fetichismo pode
operar determinando uma subjetividade, e como é que esta subjetividade se objetiva nas
relações de troca, tanto materiais quanto libidinais‖ (2004: 68). Ao que afirma a autora que,
―para a psicanálise, fica claro que o fetichismo estrutura a subjetividade e determina um modo
de relação entre os sujeitos, segundo o qual um aspecto essencial a semelhança na diferença,
que permite a troca e o interesse mútuo fica (de) negado‖. Buscando uma ponte com Marx a
autora acrescenta: ―Mas como o sujeito da psicanálise é fundamentalmente um sujeito social,
este modo de funcionamento subjetivo, que é também um modo de organizar o laço social,
depende também do modo de funcionamento da sociedade em que ele vive
112
‖. Portanto, o
que leva a que o fetiche opere na (e não determine a) subjetividade é que a sociedade como
um todo funciona segundo as leis do capital (sendo o fetichismo a forma das relações se
expressarem nesta sociedade).
Não uma relação unilateral de determinação da subjetividade pelo fetiche.
Entendemos ser este um movimento de mão dupla, o fetiche se apropria e reflete elementos da
subjetividade dos indivíduos e assim fala a sua ngua, com estes elementos re-significados
chega à própria subjetividade e só assim a pode influenciar (e não determinar). Esta influência
não se impõe a todos de maneira indistinta, alguns indivíduos podem reagir a ela através do
agir crítico, entretanto, o agir crítico individual não muda socialmente e substantivamente este
movimento, mas só o agir coletivo, com um recorte de classe o fará.
Quando o indivíduo se reconhece na imagem que torna-se difícil reagir a ela, pois
esta se apresenta como um espelho que reflete elementos de seus desejos e fantasias. Como
apontamos no item anterior, estas imagens são cuidadosamente construídas e utilizam de
diversas áreas do conhecimento como recurso que lhes permita falar a linguagem de quem as
vê, sendo construídas não com o objetivo manipulativo, mas de realizar o valor produzido. É
com este objetivo que;
A mídia se destaca como instrumento fundamental para que forje o polimento
exaltado de si-mesmo pelo indivíduo, que se esmera então para estar sempre presente
nos meios de comunicação de massa, em jornais e televisão. A cultura da imagem é o
112
Entendemos que não é que o modo de funcionamento subjetivo dependa do modo de funcionamento da
sociedade, não são dois modos separados, apesar de distintos. Um se relaciona de forma mediada, conectada
com o outro. uma dialética de funcionamento que implica em que o mesmo movimento que cria as bases
sociais da sociedade crie seu fundamento subjetivo, por isso a subjetividade é histórica, mas não determinada
linearmente pela estrutura social.
164
correlato essencial da estetização do eu, na medida em que a produção do brilharesco
social se realiza fundamentalmente pelo esmero desmedido na constituição da imagem
pela individualidade. Institui-se assim a hegemonia da aparência, que define o critério
fundamental do ser e da existência em sua evanescência brilhosa. Na cultura da
estetização do eu, o sujeito vale pelo que parece ser, mediante as imagens produzidas
para se apresentar na cena social, lambuzado pela brilhantina eletrônica. (Birman,
2001: 167).
Na busca pela construção de uma ―imagem‖ que reflita aquilo que os sujeitos almejam
ser, os setores ligados ao marketing e as propagandas usam de vários artifícios. Neste sentido,
as Neurociências vem ocupando, cada vez mais, um lugar de destaque. Bénilde (2007: 36)
aponta que ―(...) existem atualmente uma centena de empresas no mundo que utilizam as
técnicas do neuromarketing‖, entretanto, não são apenas as pesquisas no campo das
Neurociências que permitem uma ―apropriação‖ de informações subjetivas que serão
futuramente utilizadas no estímulo ao consumo; as pesquisas de opinião, de gosto, de
preferência e outros tantos recursos utilizados mais tempo largamente pelo setor da
economia voltada ao marketing se apropriam de informações privilegiadas para construir
uma linguagem especial das mercadorias e torná-las capazes de ―apelos sensuais‖ que
estimulam o consumo como um ato de reconhecimento de si mesmo.
Bénilde (2007: 36) ao se referir aos estudos sobre as regiões do cérebro que deveriam
ser estimuladas para um determinado consumo diz:
Constatou-se então a importância do ―núcleo accumbens‖, região ligada a sensação de
recompensa. A experiência mostrou que o objeto de consumo pode se assemelhar a
um objeto de desejo por meio de um verdadeiro processo de personificação. ―Quando
olhavam os carros, estes lhes lembravam rostos; os faróis pareciam um pouco com os
olhos‖, expõe Henrik Walter, psiquiatra da Universidade de Ulm, a propósito dos
indivíduos investigados. Os publicitários viram nisso a confirmação de um
procedimento amplamente utilizado: é preciso reforçar nas peças publicitárias a
correlação instintiva entre desejo sexual e pulsão de compra. ―O consumidor deve
poder sentir a marca, agarrar-se a ela como um amante‖, afirma, sem sorrir, Kevin
Roberts, diretor executivo da Saatchi & Saatchi.
Ao se referir às pesquisas sobre ―mecanismos de memórias não conscientes‖
realizadas na França, Bénilde (2007: 37) destaca que ―O conhecimento íntimo do cérebro do
consumidor não pode ter outro resultado senão incitar as empresas, e os responsáveis por sua
publicidade, a transcender os limites que normalmente lhes são reservados para comunicar‖.
Ao que acrescenta a autora: ―Na verdade, a excelência das condições de receptividade de uma
marca é julgada tanto maior quanto menos o ‗alvotem consciência de ser visado. É isso que
explica o avanço do advertising‘, esse cruzamento híbrido da publicidade com o
entretenimento‖. Quanto menos o indivíduo se sente pressionado, mais pode ser influenciado,
165
este deve acreditar que suas decisões de consumo são autênticas, como são autênticas as
decisões dos que consomem o que ele deseja e é nisso que se identificam.
Em outra reportagem do Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada A fábrica do
desejo‖, Mazoyer (2008: 34) refere-se ao supermercado como o resultado direto dos primeiros
estudos psicológicos sobre o comportamento do consumidor. Ao que indica o autor do artigo
que: ―Da criação de produtos até sua apresentação, tudo é feito para manipular os sentidos e
os sentimentos, a fim de favorecer a compra compulsiva e o consumismo‖. Mazoyer
demonstra que na década de 1950 pesquisas de motivações eram feitas com o intuito de
―estudar o comportamento do homem comum para incitá-lo à sua revelia, a comprar este ou
aquele produto‖. Tais pesquisas tratavam de ―‗escanear‘ o subconsciente das pessoas,
identificar as diferentes personalidades (os passivos, os ansiosos, os hostis, etc.) e descobrir
suas fraquezas profundas.‖ De posse destas informações em seguida ―era o momento de
conceber a ‗isca‘ psicológica que deveria ser mordida‖. Foram gastos já em 1956 para
financiar esse tipo de pesquisa, segundo Mozayer, a partir de dados da revista Sales
Management‖, 12 milhões de dólares por fabricantes como Goodyear ou General Motors. Ao
se referir aos resultados destas pesquisas Mozayer (2008: 34) diz que:
Os primeiros resultados forma reveladores. Para se comprar sem hesitação, o produto
deveria responder a oito diretrizes ocultas: cortejar o narcisismo do consumidor,
proporcionar-lhe segurança emocional, assegurar-lhe que ele era merecedor, inscrevê-
lo em sua época, transmitir-lhe sentimentos de autenticidade, poder, imortalidade e
criatividade. Ao agir sobre essas diferentes alavancas, distribuidores e publicitários
fariam com que seus produtos fossem comprados não por sua utilidade real, mas pela
―falta‖ que eles prometiam preencher. Dessas pesquisas nasceu um conceito comercial
conhecido de todos: o supermercado. Uma imensidão de escolhas, prateleiras a perder
de vista, uma avalanche de luz e cores. Um conjunto de elementos que subjugam o
consumidor, fazem-no perder suas referencias e, ao final, favorecem as compras por
impulso.
Assim o estímulo passou a ser utilizado como recurso para gravar na memória do
―cliente‖ determinado produto, através de um gosto, um cheiro, um som ou qualquer outro
elemento que o remeta ao desejo daquele produto.
A imagem, a ―aparência‖, dos supermercados e mais tarde de qualquer loja mudou
significativamente, ―Maravilhar para seduzir. Nada mais fácil quando as pessoas em mira são
o alvo preferido dos marqueteiros: as crianças‖ (Mozayer, 2008: 34). Alvo preferido não
pelo consumo presente, mas por serem, potencialmente, consumidores fiéis do produto que
ficar marcado em suas memórias como proporcionador de prazer e alegria. Assim, para ―(...)
fidelizar seus futuros clientes, a idéia foi incorporar às lojas jogos e atividades lúdicas.
166
Estratégia: gravar em sua memória emocional essa atmosfera alegre que eles tentarão, uma
vez adultos, reviver ao consumir‖ (Idem).
O monopólio da memória é também um exemplo claro de captura da subjetividade dos
indivíduos. Esses elementos de estímulo ao consumo são utilizados atualmente por qualquer
grande marca, como se pode constatar.
Faz tempo que os sentidos dos indivíduos são estudados e estimulados em direção ao
consumo de determinados bens. Falando do olfato como um dos sentidos mais poderosamente
manipulável, Mazoyer (id.) destaca que:
(...) o marketing olfativo lança mão de especialistas em química orgânica para criar
esses aromas artificiais. ―Os cheiros ficam gravados no cérebro humano de um jeito
extremamente durável‖, explica Aurélie Duclos, pesquisadora em marketing olfativo.
―Eles são estocados no nível do sistema límbico, sob a forma de emoções ligadas ao
contexto no qual marcaram o sujeito. Se a pessoa sente outra vez um desses odores,
ela volta a mergulhar na experiência vivida antes‖.
É por este, e não outro motivo, que a difusão de cheiros diversos nos interiores de
lojas é um recurso comum de praticamente todos os tipos de produtos: ―O consumidor, pobre
coitado, não tem consciência de nada disso. O estímulo é feito completamente à sua revelia‖
(Idem). De posse destes recursos megastores e supermercados os utilizam de forma que chega
a desonestidade, como ―a difusão de aromas de frutas maduras em frutas que ainda não estão,
odor luxuoso de couro em produtos de plástico etc.‖. Ao que acrescenta Mazoyer (id) que ―A
última novidade é o cheiro de couro novo, que faz a alegria dos vendedores de carros usados.
Em todos esses casos, trata-se sem dúvida de publicidade enganosa, mas é difícil estabelecer
algum tipo de controle‖. Acrescentaríamos que em alguns casos o consumidor, mesmo
sabendo, aceita e ―deseja‖ ser enganado. E é a origem deste desejo que merece uma atenção
especial.
Mas quem é este indivíduo que é capturado pela imagem?
Ao discorrer sobre a contradição entre o tempo do espetáculo e o tempo dos
indivíduos, Debord (1997) apontava como deficiência da vida histórica geral, a não
historicidade da vida individual. Para ele ―Os pseudo-acontecimentos que se sucedem na
dramatização espetacular não foram vividos por aqueles que lhe assistem; além disso,
perdem-se na inflação de sua substituição precipitada, a cada pulsão do mecanismo
espetacular‖. Ao que acrescenta Debord que aquilo que foi de fato vivido não tem relação
com o tempo irreversível oficial da sociedade, isto porque o vivido cotidianamente é
167
orientado por um tempo pseudocíclico
113
(o tempo do consumo da sobrevivência econômica
moderna), assim, este ―vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem
conceito, sem acesso crítico a seu próprio passado, não registrado em lugar algum. Ele não se
comunica. É incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não-
memorável‖. (Id. 107/8).
Os elementos apontados por Debord acima, constituem um ponto importante para se
entender o que poderíamos chamar de monopólio da memória pelo capital e que é também
um dos elementos de não reconhecimento dos indivíduos como parte de sua verdadeira
história (história de classe, história cultural) e a identificação destes com uma história forjada.
Por isso o regaste da memória individual e coletiva é entendida por nós, como um elemento
importante de resistência. Abordaremos este aspecto em nossas conclusões.
Diríamos, de forma bastante simplificada, que o sujeito que tem sua subjetividade
capturada pela imagem é um sujeito cada vez mais fragmentado e sem memória individual e
coletiva. O indivíduo solitário dos tempos atuais não é senão o indivíduo que não se
reconhece em histórias autênticas, que não tem na reconstrução de suas memórias um
argumento histórico para seu agir cotidiano e que o suspenda do cotidiano.
Debord afirma que a contradição entre o tempo do espetáculo e o tempo da vida leva a
que os indivíduos não tenham referências próprias de história. Acrescentaríamos que
atualmente com a apropriação dos fragmentos de memórias e sua re-significação, a
memória dos indivíduos passa a se identificar com a pseudomemória criada pelo espetáculo,
o que implica, em um dos aspectos destrutivos do capital em relação ao ser humano que vem
operando, por vezes, de forma sutil, mas que traz danos irreparáveis à construção de
movimentos de resistência à própria destrutibilidade do capitalismo.
Entendo que a construção de uma memória social coletiva pode significar um
elemento potencial de resistência a este processo. Como se constitui uma verdadeira memória
social? Começando pela ―história dos vencidos‖, por uma educação que não forje uma
história e não transforme em oficial a história dos vencedores (dominadores).
O que apresentamos aqui são apenas alguns elementos analíticos que de alguma forma
nos ajudem a entender como é possível que o tempo espetacular tenha espaço na
cotidianidade dos indivíduos mesmo quando este se opõe ao tempo realmente vivido.
113
O tempo pseudocíclico é, segundo Debord (1997: 105), o tempo que foi transformado pela indústria, é o
tempo espetacular, ―tanto como tempo do consumo das imagens, em sentido restrito, como imagem do
consumo do tempo, em toda a sua extensão‖.
168
A pseudomemória forjada pelos instrumentos de incentivo ao consumo e de
divulgação ideológica do capital, constitui-se espetacularmente através de absorção de
fragmentos de memória coletiva e sua re-significação. Desta forma, a falsa memória, se não
representa uma construção histórica da vida dos indivíduos que a consomem de forma
espetacular contém fragmentos de desejos e fantasias reprimidos, elementos que permitem
que o indivíduo se identifique com uma memória fabricada (que não é a sua).
O mesmo movimento de apropriação de desejos e fantasias e sua re-significação
através da imagem (vídeos, publicidades, novelas e etc) provoca, de um lado, o esquecimento,
em detrimento de uma memória criada e, do outro lado, leva os indivíduos a consumirem o
espetacular como parte de suas vidas, como sua própria memória fragmentada, eis um
elemento importante do conteúdo atual da reificação. Kehl (2004) no artigo ―Novelas,
novelinhas e novelões‖ destaca como a busca por situações reais pode funcionar como uma
falsa identificação entre as novelas e a vida dos indivíduos. Assim, ressalta a autora:
"Realismo", "realidade brasileira", "vida real" passam a ser nessa década as grandes
bandeiras dos autores e diretores de telenovelas que encontram na imitação das
aparências da realidade empírica um elemento de sucesso, favorecendo ainda mais a
identificação emocional dos espectadores com a problemática vivida e sofrida pelos
personagens principais. Fala-se em "doses de realismo", "nível de realidade", "graus
de aproximação com o real" como se, num passe de contabilidade, a realidade para a
televisão funcionasse como um tempero, um superaditivo a ser acrescentado em doses
maiores ou menores à obra que assim ocuparia um lugar medido numa escala de
zero a dez, ou seja: da fantasia desvairada à realidade nua e crua. Consistindo a
última, a reprodução perfeita da vida cotidiana pela TV, no ideal (inatingível?) a ser
alcançado (...).
A transformação do tempo em tempo espetacular traz consigo a possibilidade de que
elementos dos desejos e fantasias dos indivíduos possam ser vendidos em ―blocos de tempos‖.
É na apropriação e re-significação destes elementos que se constroem os espetáculos, que no
Brasil são campeões de audiência: as novelas televisivas e os reality shows, só pra citar alguns
exemplos. A falsa memória da novela se apropria de fragmentos de memória coletiva que
permite que diferentes indivíduos se identifiquem com estas a tal ponto que agem como se sua
memória real fosse representada pela pseudomemória da novela. Isto se reproduz no cinema,
no vídeo, e etc., de acordo com o público atingido pode ser mais refinado ou não. Kehl (2004)
ao falar do sucesso comercial destas ―fórmulas‖ que incorporam elementos do real com o
objetivo de ―ensinar o telespectador como é sua realidade‖, destaca como, no caso das novelas
da TV Globo, estes ―ingredientes‖ são dosados:
Daniel Filho, responsável pela direção ou supervisão da grande maioria das novelas da
Globo, define claramente os ingredientes que compõem os estouros de audiência: no
169
horário das sete, a saída ainda é a grande comédia romântica ("tipo Doris Day") que
não se livrou da influência cinematográfica norte-americana. "Mas aos poucos
passamos a colocar dados brasileiros, locais brasileiros, som brasileiro... é importante
que a novela contenha um nível de verdade, de cotidiano, e um nível de fantasia". No
horário das oito, novelesco e "pseudamente inteligente" (sic), é preciso que haja
sempre um grande mistério. A novela deve dar lugar a personagens de várias faixas
etárias (para identificação de um público mais amplo possível), mas com uma
problemática mais feminina do que masculina. Tem que abranger todas as classes
sociais e principalmente é imprescindível que haja ascensão social. O personagem
central deve ser o personagem que ascende: a Júlia do "Dancin‘ Days", a Lili do
"Astro". Por fim, a novela deve lançar um pouco de gente nova no elenco ao lado dos
atores consagrados, e conter sempre uma novidade, um assunto emergente no
momento, uma moda qualquer que não é a televisão quem cria mas é ela quem
difunde por todo o país.
Entendemos que uma das formas de resistência ao movimento esmagador da
espetacularização da vida, fetiche de uma sociedade que consegue se olhar no espelho para
ver uma imagem espetacular e precisa, portanto, de um espelho que mostre o inverso do que
é, a realidade ao avesso, a ilusão do real, seus desejos reprimidos e suas irrealizações
históricas, assim, uma das formas de resistência, como destacamos, está na reconstrução
prática da memória social, enquanto um movimento coletivo que tenha como ponto de partida
o próprio cotidiano.
Esta resistência, de resgate da memória coletiva (e individual) pode se tornar um
elemento importante na luta de classes, mas, certamente, não é o único e nem substitui formas
de resistências que vêm sendo construídas através de experiências cotidianas.
Abordaremos a seguir, na parte terceira desta tese, como elementos dos desejos e
fantasias dos homens contemporâneos são apropriados e re-significados na construção de um
―campo especial de necessidades‖ mercantis.
170
PARTE III
DOS DESEJOS E FANTASIAS DO SUJEITO
CAPÍTULO 6 - DESEJOS E FANTASIAS: o fermento ideológico do fetiche da
mercadoria em tempos contemporâneos.
A cotidianidade é, justamente, o tempo em que o íntimo e o familiar
são invadidos por essa dilaceração, pela percepção falseada,
deformada, mutilada. O intimo e familiar está invadido pelo público,
pela manipulação da percepção: a televisão, o radio, o telefone, a
internet, portanto, pelo adverso, pelo seu oposto. Essa invasão é um
dos terrores mais presentes nos sonhos da população das metrópoles,
como pude observar em pesquisa recente (...).
(Martins; 2008: 94; em referência à pesquisa realizada em São Paulo
sobre os sonhos de moradores daquela metrópole).
Na segunda parte desta tese apresentamos argumentos sobre o desenvolvimento da
estetização das mercadorias como um elemento essencial na realização do valor no
capitalismo contemporâneo e como impulsionador no desenvolvimento de um campo de
necessidades especiais que giram em torno dos desejos e fantasias, elas mesmas, as
necessidades, produzidas e consumidas como mercadorias.
O ―poder ideológico‖ da estética da mercadoria age, sobretudo, na cotidianidade dos
indivíduos, são nas ações do dia-a-dia e todos os dias que são assimilados o gosto, o desejo
por determinada mercadoria ou por determinados comportamentos e imagem. São as
propagandas, em especial as de TV, o anúncio, a telenovela, os programas de auto-ajuda e de
comportamento de fim de tarde (no caso da TV aberta brasileira), os reality show; que
transmitem aos consumidores e aos não consumidores os ―apelos sensuais‖ das mercadorias e
a imagem que eles, os próprios consumidores, querem ter de si mesmos, encobrindo no
primeiro caso, inclusive, os danos que o consumo de muitas destas mercadorias podem trazer
à saúde dos indivíduos e ao meio ambiente, são estes instrumentos que funcionam como
impulsionadores da estetização do próprio cotidiano. É, sobretudo, como parte da vida
cotidiana que as mercadorias ―estetizadas‖ entram e se tornam parte da vida de cada um.
Desta forma, e por estas mediações, nesta terceira parte da tese nos deteremos no
movimento de apropriação dos ―desejos e fantasias‖ dos indivíduos contemporâneos e sua
devolução através do fetiche da mercadoria (em especial sua estetização). Em outros termos,
buscaremos argumentos de como este movimento vem se constituindo em termos de ―captura
da subjetividade‖ e sua mercantilização. Para tanto, iniciaremos por apresentar alguns
elementos que nos permitam ―decifrar‖ a vida cotidiana e em seguida argumentos sobre a
171
apropriação e re-significação dos desejos e fantasias dos indivíduos, a partir de alguns
exemplos contemporâneos.
Como destacamos na introdução da tese (cf. nota 06) o desejo está associado, dentre
outras coisas, ao impulso, sendo que a sua não satisfação manterá ―o psiquismo em
movimento‖
114
. Quando traços do ―objeto de desejo‖ são assimilados por determinadas
mercadorias o impulso pode ser direcionado ao consumo daquelas mercadorias. À medida que
estes traços são redirecionados a outras mercadorias, porque as anteriores se tornaram
obsoletas, o impulso muda seu objeto, e como o desejo não pode ser satisfeito pelo
―desencontro com o objeto‖ este movimento pode funcionar como uma armadilha constante
ao consumo. Assim:
O sujeito é incentivado a consumir, sendo-lhe acenada a idéia de completude com a
suposta posse de seu objeto de desejo insinuada pela publicidade. A ênfase no
consumo de bens e serviços especializados que prometem saúde, prolongamento da
vida e eterna juventude atrela o sujeito a dimensão da necessidade e da demanda,
mantendo-o aprisionado, como uma criança infatigável, à rasteira busca de seu sonho
de consumo. Essa expressão, tão difundida em nossa cultura, ilustra como a demanda,
a ânsia em querer ser algo, faz emergir, cada vez mais, sujeitos insaciáveis e ao
mesmo tempo distanciados da via do desejo. (Edler; 2008: 98).
Este movimento é contraditório tanto pelo fato do desejo não poder ser reduzido à
necessidade (portanto, não pode ser de todo apropriado
115
), quanto por este não poder, por
outro lado, ser satisfeito. Neste sentido, Edler (2008: 80/81) destaca a importância da
contribuição de Lacan sobre o conceito de desejo inconsciente, destacando que ao inserir (a
partir de Hegel) o desejo numa dialética, a dialética da demanda e do desejo, Lacan trouxe
importantes contribuições para este conceito:
De acordo com essa perspectiva, o sujeito expressa suas necessidades por meio de um
apelo dirigido ao Outro. (...). Para situar o desejo em sua dimensão absoluta, Lacan
(1957-8) traça, inicialmente, uma analogia com a necessidade, afirmando que dela é
retirada a matéria-prima para a confecção do desejo. O desejo, no entanto, não pode
ser reduzido a dimensão da demanda e menos ainda à da necessidade, que têm sempre
um alcance limitado. O desejo pertence a outro registro. Segundo Lacan (1957-8), a
partir de uma necessidade particular ocorreria então uma mudança de registro que
adquire uma condição absoluta. Agora sem guardar proporção com a necessidade de
um objeto determinado. No momento em que cessa a demanda, o sujeito faz o
114
Nas palavras de Edler (2008: 91) ao se referir a esta incompletude: ―Existe algo de faltoso no centro do nosso
desejo. Em busca de realização, o sujeito deve, literalmente, contornar essa hiância e fazer o movimento que,
como mencionamos, o realiza em parte, sendo a completude inacessível. Com isso não queremos negar ao
sujeito a possibilidade de momentos felizes, momentos de encontro ou de conquistas. Apontamos tão-somente,
a idéia de que uma complementaridade absoluta seria inatingível em termos humanos. E justamente essa
incompletude, tão lamentada, é a mola do movimento incessante que revitaliza o sujeito‖.
115
Este elemento leva a um esvaziamento do desejo na contemporaneidade o que implica dentre outras coisas em
quadros depressivos e comodismo por parte dos sujeitos sociais.
172
movimento em busca de uma realidade que sabemos impossível esse é o tempo do
desejo.
O desejo na concepção abordada acima é o mesmo que impulsiona o consumo de
determinadas mercadorias, comportamentos, estilos de vida? Entendemos que o desejo em si
é diferente, de outra ordem. Entretanto, nos dois casos elementos da estrutura do desejo
coincidentes. Desta forma, o movimento desejante
116
impulsionado funciona no sujeito que
busca a realização dos seus ―desejos‖ via consumo de uma forma parecida a que funcionaria
se buscasse uma outra mediação (por exemplo, via relação subjetiva). Aqui reside o fetiche,
visto que, a forma apenas parece a mesma, mas não pode ser a mesma, pela diferença entre
desejo e necessidade que mencionamos acima, o que provoca constantes frustrações e
insatisfação.
A ―apropriação‖ de elementos dos desejos e fantasias dos sujeitos via fetichismo da
mercadoria e sua estetização implica de um lado, que aspectos do movimento desejante
sejam incorporados às mercadorias (ao complexo que constitui sua estética) de forma a que
estas se tornem ―objetos de desejos‖ dos consumidores e por outro lado, implica no
esvaziamento do desejo dos sujeitos contemporâneos
117
.
Mesmo assim, não podemos dizer que a mercadoria incorpora os desejos e fantasias
dos sujeitos de forma totalizante, isto é improvável, visto ser necessário uma invasão e
dilaceramento do psiquismo que transformaria os sujeitos em autômatos. O que é uma
apropriação de alguns elementos dos desejos e fantasias como forma de tornar as mercadorias
tanto desejadas como, cada vez mais, portadoras em aparência, de uma experiência singular
(ao serem consumidas).
Cabe perguntar - o que torna este movimento possível? Dentre outras coisas o próprio
esvaziamento do desejo na contemporaneidade
118
. Assim se de um lado a incorporação de
116
Edler (2008: 81) destaca que o movimento desejante é a ―trajetória realizada pelo sujeito de objeto, em objeto
que, se por um lado não obtém a completa satisfação, por outro o mantém em busca, em permanente
construção. Todo o trabalho psíquico envolvido na realização do desejo, desde a sua elaboração, nem sempre
muito nítida, até o ápice de sua resolução, transforma o cotidiano do sujeito‖.
117
Entendemos que este elemento não é nem o único, nem tampouco o mais importante no que estamos
chamando de esvaziamento do desejo, mas apenas contribui com este processo. Para Edler (2008: 92):
―Situada a importância do desejo como motor da vida psíquica, surge a questão do que ocorre na
contemporaneidade no sentido de atrofiar essa dimensão fundamental da vida‖.
118
Ao se referir aos casos depressivos que cada vez mais chegam às clínicas em busca de análises, Edler (2008;
87) diz: A vida não tem sentido para mim é uma expressão queixosa que sugere a idéia de que existe, em
algum lugar, um sentido a ser buscado, uma completude da qual se está excluído. É, de certa maneira, uma
constatação de que falta algo essencial, que não foi atingido por incompetência ou por injustiça. A condição
depressiva é uma maneira de sucumbir a essa falta e deixar-se ficar diante dela sem nada fazer, inerte,
impotente. O desejo se constitui em torno de uma falta fundadora, numa incessante busca condenada a um
173
elementos do desejo via fetichismo da mercadoria, do outro um ―abandono da via do
desejo‖, e este abandono implica em abrir espaço para o imperativo do gozo: ―O desejo, diz-
nos Lacan, é um limite, uma defesa contra o gozo (1969-98). E o abandono, em larga escala,
do registro do desejo em prol da aquisição frenética de bens proposta pela cultura do ter e do
parecer acarreta, como conseqüência, uma ampliação da dimensão do gozo‖ (Edler; 2008:
103). Voltaremos a esta questão mais adiante.
Desejos e fantasias, cada vez mais, se cruzam com o cotidiano de forma fetichizada,
através das necessidades mercantis que aparecem como indispensáveis para que o sujeito
contemporâneo sinta-se parte desta experiência singular de consumir determinada mercadoria,
ela mesma a mercadoria - aparente portadora de aspectos que fazem parte do sujeito e não
do objeto.
Para a discussão sobre cotidiano, como espaço privilegiado de expressão dos
elementos que viemos trabalhando ao longo desta tese, utilizaremos como norteadores do
nosso estudo as concepções de Lefebvre e Heller, com aportes significativos de José de Souza
Martins. Encontramos em Martins (2008) alguns elementos que nos permitem trabalhar tanto
com Lefebvre quanto com Heller, apesar das diferenças que a própria Heller aponta no seu
trabalho em relação a algumas concepções de Lefebvre.
Passemos à análise da vida cotidiana e tentemos nos aproximar minimamente de todo
o mistério que ela comporta.
malogro parcial, já que não é possível, em termos humanos, uma completa realização. Paradoxalmente, uma
outra face da falta pode deixar o sujeito paralisado. Nas estruturas neuróticas, a destituição de si, o sentimento
de inferioridade, a percepção de que o outro é que pode, tem condições e mérito para vencer, se encontram
ampliados. Estamos então diante do desafio de analisar em que medida a própria contemporaneidade estaria
contribuindo para exacerbar tais mecanismos. Porque estaria havendo um crescimento da condição depressiva
em paralelo ao esvaziamento do registro do desejo. E, sobretudo, se o eventual esvaziamento do desejo poderia
ser o fator decisivo para a ampliação dos estados depressivos‖.
174
6.1 Cotidiano e reificação ou a cotidianidade reificada como necessidade do capitalismo
Cotidiano
Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca
De hortelã...
Todo dia ela diz
Que é pr'eu me cuidar
E essas coisas que diz
Toda mulher
Diz que está me esperando
Pr'o jantar
E me beija com a boca
De café...
Todo dia eu só penso
Em poder parar
Meio-dia eu só penso
Em dizer não
Depois penso na vida
Prá levar
E me calo com a boca
De feijão...
Seis da tarde
Como era de se esperar
Ela pega
E me espera no portão
Diz que está muito louca
Prá beijar
E me beija com a boca
De paixão...
Toda noite ela diz
Pr'eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pr'eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor...
Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca
De hortelã...
(...)
(Chico Buarque)
175
Lefebvre (1967) em sua obra ―Sobre a crítica da vida cotidiana
119
se põe como
questão central - ―o que é afinal a vida cotidiana? - pergunta que entendemos ser
fundamental para o debate a que nos propomos. Por outro lado, responder a esta questão
implica saber quem é o ―indivíduo social‖ da contemporaneidade. Quem é o homem que
come, bebe, trabalha, ama, sonha e sofre na atual sociedade?
120
O estudo da vida cotidiana é justificado por Ágnes Heller (1998: 20. Tradução
nossa
121
) ao considerar que: ―(...) a vida cotidiana dos homens nos proporciona, ao nível dos
indivíduos particulares e em termos muito gerais, uma imagem da reprodão da sociedade
respectiva, dos estratos da sociedade. Proporciona-nos, por uma parte, uma imagem da
socialização da natureza e, por outra, o grau e o modo da sua humanização‖. Além deste
aspecto, a autora chama a atenção de que a vida cotidiana funciona nos processos de
revolução social como uma espécie de ―fermento secreto da história‖ posto que, em
determinados momentos históricos o cotidiano pode expressar mudanças que ainda não se
traduzem ao nível macroscópico. Por outro lado, as mudanças estruturais da sociedade se
encontram de fato concretizadas na sua totalidade quando atingem e modificam a
cotidianidade.
O homem da contemporaneidade é o homem que vive uma vida permeada de
reificações. Portanto, cotidiano e reificação se entrecruzam não somente como temáticas
necessárias para o entendimento da sociedade contemporânea, mas, fundamentalmente, como
realidades sociais, como o concreto da vida dos homens, posto ser a reificação, segundo
Lukács (1974: 219): ―a realidade imediata necessária para todo e qualquer homem que viva na
sociedade capitalista (...)‖. Fenômeno este que ―penetra cada vez mais profundamente,
fatalmente, constitutivamente, na consciência dos homens‖ (Ibid: 108), levando a que as
formas fetichizadas, as formas do capital transformem-se ―necessariamente nos verdadeiros
representantes da sua vida social, precisamente porque nelas se esfumam (a ponto de se
119
Lefebvre (1967) chama a atenção de que sua obra ―Critica da vida cotidiana‖, nada mais é que uma crítica da
vida na França em meados do século XX. Esta nota do autor é importante tanto para denotar o caráter histórico
da vida cotidiana quanto como resposta aos críticos que consideram que este credita à sua crítica da vida
cotidiana o estatuto de crítica da práxis social.
120
A resposta a estas ―interrogações‖ exige um esforço coletivo de pesquisa, no nosso entendimento, ainda não
realizado a contento nas Ciências Humanas e Sociais. Entretanto, caminhos investigativos abertos que
podem trazer grandes contribuições para o debate. Foi na busca de elementos para a identificação de um destes
caminhos que nos levasse a construção de uma linha de pesquisa conforme com as exigências de um
doutorado que se entrecruzaram neste item as temáticas: capitalismo, cotidiano e reificação, desejos e
fantasias.
121
Todas as citações referentes à obra da Heller de 1998 têm tradução nossa.
176
tornarem imperceptíveis e irreconhecíveis) as relações dos homens entre si e com os objetos,
relações essas que se encontram ocultas na relação mercantil imediata‖ (Lukács; 1974: 108).
Entretanto, o cotidiano não é só reificação, é permeado de contradições. Martins
(2008) nos indica que pensar o cotidiano sem as suas contradições, como o espaço apenas do
repetitivo, do agir mecânico e da reificação é desconsiderar sua riqueza e potencialidade reais.
Portanto, se no espaço do cotidiano se reproduzem reificações, se ali se instalam como parte
do sujeito os significados ideológicos criados na sociedade do capital neste espaço também se
criam germes de resistências.
Na justificativa sociológica do estudo da vida cotidiana Martins (2008: 52) diz que:
―Se a vida de todos os dias se tornou o refúgio dos céticos tornou-se igualmente o ponto de
referência das novas esperanças da sociedade. O novo herói da vida é o homem comum
imerso no cotidiano. É que no pequeno mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar
da eficácia das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos
movimentos sociais‖. Ao que acrescenta ainda Martins (ibidem) ―(...) se no refúgio da vida
cotidiana o homem descobre a eficácia da política (e História) de sua aparente solidão, impõe,
também, o reconhecimento de que o senso comum
122
não é apenas instrumento das repetições
e dos processos que imobilizam a vida de cada um e de todos‖.
Desta forma, para além de apontar elementos que nos permitam apreender o
significado da vida cotidiana, importa-nos entendê-la a partir de suas contradições e como
portadora de contradições e estas como condições para a construção de resistências reais aos
fenômenos que aqui procuramos ―decifrar‖.
Onde começa o que se chama ―vida cotidiana‖ ou quais elementos são constitutivos de
sua estrutura e conteúdo e delineadores do seu contorno? Por que se torna cada vez mais
possível que estes elementos sejam apropriados, re-significados como parte da ―estética da
mercadoria‖ e da ideologia capitalista e, devolvidos aos sujeitos em outra linguagem: a
linguagem do capital como constitutiva de suas próprias vidas?
Passemos a algumas questões que entendemos poderem elucidar nossas interrogações.
122
Para Martins (2008:54) ―O senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exterior conhecimento,
mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social. Nela o significado a precede,
pois é condição de seu estabelecimento e ocorrência. Sem significado compartilhado não há interação‖.
177
6.1.1. O que é afinal a vida cotidiana?
“O quotidiano é o incógnito do mistério”
Mário Quintana
Lefebvre (1967: 150. Tradução nossa
123
) quando se põe como pauta de estudo: ―A
crítica da vida cotidiana‖ começa por se fazer a seguinte pergunta: ―Que é a vida cotidiana?
Tudo? Ou nada? Toda a vida, compreendidos o trabalho, as relações sociais, as relações
familiares, reunidos sem distinção? Ou nada mais que o resíduo informe das outras atividades,
trabalho, cultura, ócio, quando se distingue o que tem uma forma ou estrutura do que não a
tem?‖
Ao que responde o autor que o conceito da vida cotidiana não seria susceptível de uma
definição rigorosa. Assim, diante da interrogativa anterior, ele diz ―mais ou menos‖, a vida
cotidiana é e não é constituída deste conjunto de elementos apontados acima
124
.
Mas o que é então a vida cotidiana?
O autor acima citado critica a concepção da vida cotidiana como esfera onde os
produtos se convertem em bens, como esfera do encontro de produtos e necessidades.
Portanto, a vida cotidiana não se identificaria com o consumo (como crêem os economistas).
Mas compreenderia a produção e o consumo, posto ser no trabalho produtivo que o
trabalhador adquire ou sente uma parte de suas necessidades e aspirações que busca satisfazer
fora deste espaço. Assim, nas palavras de Lefebvre (1967: 150):
Um único e mesmo homem vive e atua nestes três setores: a atividade profissional, as
relações diretas (familiares, sociais), os ócios e a cultura. Um influi no outro. Ele se
encontra ou se perde (se aliena) neles. A crítica da vida cotidiana implica e envolve a
crítica da economia política no sentido de Marx e trata de alcançar o homem social
que se baseia na atividade econômica e a ultrapassa.
123
Todas as citações de Lefebvre referente a 1967 são de tradução nossa.
124
Lessa (1995) faz uma crítica sobre o texto de Lefebvre ―A Reprodução das relações de Produção‖, crítica que
traz elementos para um entendimento de questões complexas apontadas por Lefebvre na sua ―Crítica da vida
cotidiana‖. Lessa ressalta que Lefebvre nega a existência de leis gerais na reprodução da sociedade
contemporânea, neste sentido vai afirmar que é o cotidiano e não o econômico em geral a base sobre a qual se
estabelece o ―neo-capitalismo‖. O cotidiano passaria a comportar elementos que estariam para além dele.
Assim a cotidianidade seria o espaço no qual se assentaria a reprodução social do neo-capitalismo, e esta
caracterizaria ―por ser um espaço urbano conservado por ‗instâncias políticas‘, cuja unidade enquanto espaço
social é ‗assegurada pelo Estado e pela intervenção estatal‘‖ (idem: 14). Para aprofundar a crítica conferir
Lessa (1995). Martins (2008) faz interessante análise sobre as contribuições de Lefebvre sobre a crítica da vida
cotidiana, como apontamos anteriormente utilizamos dos argumentos de Martins como suporte para a leitura
de Lefebvre.
178
O autor aponta alguns elementos que nos permitem refletir sobre a alienação para além
do trabalho, bem como sobre a possibilidade de construção de resistência à esta, também em
outros espaços da vida dos homens.
Lefebvre faz também à crítica a concepção lukacsiana, expressa na França através de
Lucien Goldmann
125
. Para Lefebvre, diferente do que é apresentado na leitura lukacsiana,
feita por Goldmann, no cotidiano não inibição, nem inconsciência, não seria uma
anarquia de claroscuro‖ onde, ―nada se realiza allí enteramente, nada le ocurre a su
esencia‖ (Lukács). Segundo Lefebvre a psicanálise já havia demonstrado psicologicamente ―a
riqueza do pobre e a claridade do escuro‖. Assim, se há pobreza (e alienação) no cotidiano, ali
também é o espaço da riqueza, cabe distingui-los.
Diz-nos Lefebvre (1967: 211) que, ainda que a crítica da vida cotidiana tenha sido
realizada em vários outros momentos históricos pela filosofia e contemplação, pelo sonho e a
arte, pela ação violenta guerreira ou pela política, o que havia de comum a essas críticas é
que, além de serem individuais eram geralmente ―críticas de outras classes‖, portanto, se
traduziam, em especial, pela depreciação do trabalho produtivo e pela crítica da vida da classe
dominante em nome de uma filosofia ou dogma transcendental ―que pertenciam, não obstante,
a essa classe‖.
Com a sociedade burguesa tal crítica, segundo o autor citado, não cabe mais. A crítica
da vida cotidiana hoje implica a crítica da práxis social
126
: Não obstante, o homem de nossos
dias, autor ou não, persegue, à sua maneira, espontaneamente, a crítica de sua vida cotidiana.
E esta crítica é parte integrante do cotidiano; cumpre-se em e pelas distrações
127
(Lefebvre;
1967: 212).
125
O próprio Lefebvre chama a atenção para o fato de esta crítica ter sido feita sobre uma obra que o próprio
Lukács já auto-criticara. E destacamos que para Lukács a vida cotidiana não se confunde com obscurantismo.
126
aqui uma diferença essencial entre Heller e Lefebvre. Lefebvre considera que a crítica da vida cotidiana
comporta em si a crítica da práxis social. Para Heller, a vida cotidiana tem em germe esferas que ainda não
se realizaram e se desenvolverão na práxis social (como a arte, a filosofia...), portanto, a crítica da vida
cotidiana não pode comportar uma crítica da práxis social. Desta forma o estudo da estrutura da vida cotidiana
apreende, segundo Heller, elementos da genericidade humana, enquanto ontologicamente primários.
Mesmo Heller ressaltando esta diferença, em uma leitura atenta de Lefebvre e a partir das contribuições de
Martins (2008), observamos que o autor citado não encerra a sua crítica da práxis social à crítica da vida
cotidiana, mas demarca este último como um espaço privilegiado de crítica.
127
Traduzimos ―esparcimiento‖ por distrações, com algumas ressalvas. Entendermos que Lefevbre se refere aqui
não simplesmente ao tempo do não-trabalho, mas ao tempo destinado ao ―descanso‖, ao tempo ―livre‖ do
trabalho e das atividades domésticas (privadas), ou qualquer outra como formação intelectual e etc. Neste
sentido, esparcimiento para Lefevbre consiste naquelas ―atividades‖ que poderiam ser desenvolvidas
livremente pelos indivíduos (individual ou coletivamente). Entretanto, o próprio autor aqui citado, chama a
179
A concepção de que a crítica da vida cotidiana encontra-se na própria realidade
(seguindo a esteira metodológica marxiana) é de fato uma contribuição importante. Por outro
lado, Lefebvre aponta que é o espaço livre (do não trabalho e também o espaço fora das
relações familiares - privadas) onde se gesta, na prática, tal crítica. Creditar ao
esparcimiento‖ tal função nos parece algo merecedor de um debate mais profundo
128
.
De acordo com o mesmo autor a vida cotidiana é inicialmente compreendida como
implicando a existência de três elementos: o trabalho, as distrações (tempo livre) e a vida
familiar. Tais elementos em sua unidade e totalidade formariam a ―estrutura global‖ da vida
cotidiana.
Ainda para o autor citado, a exterioridade dos elementos do cotidiano trabalho, vida
familiar e ―privada‖ e distrações implica uma alienação
129
. Deduz-se daí que a alienação
está presente não no trabalho, mas a vida familiar e as distrações também podem ser
alienantes. Em resumo, Lefebvre (1967: 224) diz que:
(...) o trabalho, a distração (tempo livre), a vida familiar e a vida privada formam um
todo que podemos chamar ―estrutura global‖ ou ―totalidade‖ com a condição de
precisar o caráter histórico, a mobilidade, o transitório, dessa estrutura. A crítica da
vida cotidiana, considerada como aspecto de uma sociologia concreta, pode aspirar a
um vasto estudo, que poria em relevo a vida profissional, a vida familiar e as
atividades do ―tempo livre‖, com suas múltiplas interferências. Com a intenção de
separar o vivente, o novo, o positivo as necessidades e satisfações válidas dos
elementos negativos: das alienações.
A questão que se põe Lefebvre é a seguinte: se a vida cotidiana engloba este conjunto
de elementos onde e como se o contato vivo do homem individual concreto com os outros
homens? Em outros termos quais as mediações que permitem que o indivíduo se ―eleve‖ ao
gênero humano. A forma como esse contato se dá, quando se dá, que elementos contraditórios
atenção para o fato de que mesmo estas atividades tornam-se alienantes dentro do capitalismo. (1967:
214/215).
128
Coloca-se tal questão diante da intensificação do fetiche do tempo livre, ou seja, a alienação das formas de
lazer, ou do próprio tempo do não-trabalho, tempo que, como podemos observar também está sob o jugo do
capital. Este aspecto é abordado de maneira bastante crítica e interessante por Martins (2008).
129
Quanto à alienação do trabalho Lefebvre (1967: 221) diz que ―se pode certamente afirmar que o trabalho
funda o desenvolvimento pessoal na prática social. Une o indivíduo aos outros trabalhadores (na fábrica, na
classe social, no conjunto social) e também com o conhecimento; permite, exige, torna possível a educação
politécnica que domina o processo de produção e a prática social. Entretanto, a realização destas possibilidades
apresenta dificuldades consideráveis, e o caráter ‗desumanizador‘ do trabalho não pode em nenhuma
circunstância ser considerado favorável ao desenvolvimento da personalidade: em qualquer contexto social ou
político, é ‗alienante‘‖.
180
e complementares contêm é decisivo para se entender como se situam a riqueza e a pobreza
da vida cotidiana
130
.
Heller (1998) ao inserir-se neste debate, critica duas vertentes que ela considera
presentes na concepção da vida cotidiana, a primeira tem como base a ―filosofia vitalista‖ (e
parte do existencialismo), que considera a vida cotidiana como sinônima de tudo o que sucede
cotidianamente, de convencional. A outra concepção, segunda ela, representada por Lefebvre,
usa, diferente da primeira, um critério objetivo. Assim, Heller destaca que para Lefebvre ―a
vida cotidiana seria a mediadora entre a naturalidade e a sociabilidade do homem, entre a
natureza e a sociedade‖.
A crítica de Heller orienta-se no sentido de que mesmo o que possa ser considerado
como natural tem um desenvolvimento social, portanto, tal distinção não caberia, uma vez
que, a reprodução do particular como ente natural socializado se desenvolve na esfera da
vida cotidiana, e é esta, portanto, a que nos diz como, em que medida e com quais conteúdos
se tem socializado o particular como ente natural‖ (Heller: 1998: 21). Assim a vida cotidiana
não poderia mediar tal relação, visto que ela mesma comporta este duplo aspecto da existência
do homem. As mediações entre natureza e sociedade se dariam, desta forma dentro do próprio
cotidiano.
Segundo Heller (1989: 17) a vida cotidiana é a vida de todo homem, é o espaço
contraditório, complexo e ambíguo de todos os dias. Entretanto, mesmo que estas diversas
capacidades que são apropriadas pelos homens sejam exercidas sempre e com continuidade
(dentro de um tempo histórico e de determinada sociedade), não necessariamente o são ―cada
dia‖
131
.
Ressaltamos que, apesar das interessantes contribuições de Heller para se pensar a
cotidianidade ainda persiste, mesmo na crítica que esta faz a Lefebvre, uma concepção de
―ente natural‖ que traz prejuízos a alguns dos seus argumentos, concepção à qual fizemos
referência e crítica no debate sobre necessidades sociais.
130
A nosso ver, uma destas mediações se faz através da memória coletiva, não é a única e talvez nem a mais
importante, mas para a nossa tese a consideramos como um dos elementos importantes de resistência à
reificação e ideologia capitalista.
131
Heller (1998: 23) chama atenção de que algumas atividades são consideradas cotidianas por serem
desenvolvidas todos os dias (com continuidade), como comer, vestir-se, dormir, etc., outras têm continuidade,
porém não são desenvolvidas todos os dias, como por exemplo, em algumas sociedades o papel atribuído as
mulheres de cuidar dos filhos (fazendo parte de determinada fase da vida), de costurar, de cuidar dos pais
idosos e etc.
181
Em sendo assim, podemos afirmar que é na cotidianidade que as coisas acontecem, é
no cotidiano que trabalhamos, amamos, sonhamos. Não como nos furtamos da
cotidianidade, assim como não há como vivermos totalmente imersos nela.
Desta forma, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, é portadora de uma
objetividade própria e de um pensamento
132
que difere, por exemplo, do pensamento mais
elaborado (do pensamento científico). Cabe ressaltar que esta hierarquia é histórico-social,
pois depende da organização da sociedade em determinadas épocas históricas e, mesmo
dentro de uma mesma sociedade, hierarquizações diferenciadas de acordo com as classes
sociais.
Dentro do cotidiano comportariam atividades como a organização do trabalho e da
vida privada, os lazeres e o descanso e a atividade social sistematizada, todas as atividades
que, por assim dizer, no seu conjunto configurassem as objetivações do ser social
133
.
Entretanto, como nos aponta Martins (2008) mesmo que o cotidiano porte uma
heterogeneidade e um agir orientado por um pensamento cotidiano, o que implica que o
homem do cotidiano respostas ativas, diretas, pois se depara com a imediaticidade das
coisas e relações, e é a elas que procura responder, não podemos ver nele apenas este aspecto,
pois aqui também se encontram a criatividade e o sonho, mesmo que não possam se
desenvolver livremente neste espaço.
Assim, mesmo considerando o aspecto da continuidade como elemento do cotidiano,
Martins (2008) faz severas críticas aos que vêem neste seu único mediador, para ele o
cotidiano é mais que repetição e mesmo o fazer de todo o dia porta em si o novo e a
criatividade. Desta forma, ao resgatar a contradição presente no cotidiano, Martins diz que ―É
no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo desenvolvimento capitalista, o
tempo da rotina, da repetição e do cotidiano, que essas contradições fazem saltar fora o
momento da criação e de anúncio da História o tempo do possível. E que, justamente por se
132
Heller (1998) aborda a diferença entre pensamento cotidiano e pensamento não cotidiano, destacando que no
entendimento do primeiro deve-se considerar a diferença (mas não a contraposição) entre a estrutura geral do
pensamento cotidiano e o conteúdo concreto do pensamento cotidiano. Para Heller (1998: 102) o pensamento
cotidiano também é heterogêneo e seus traços comuns se manifestam nas diversas formas de atividade da vida
cotidiana, derivando da continuidade. Assim ―A função do pensamento cotidiano se deriva da existência das
funções vitais cotidianas (...)‖.
133
Estas atividades da cotidianidade humana seriam, segundo Heller (1998: 239), conduzidas e reguladas por
três tipos de objetivações (objetivações da atividade genérica em-si, distintas e unitárias) quais sejam: em
primeiro lugar o mundo das coisas (criadas pela mão do homem), quer dizer, os utensílios e os produtos; em
segundo lugar o mundo dos usos; e em terceiro lugar a linguagem”. Heller (1998: 251) distingue como
objetivações genéricas em-si, que constituem o fundamento da vida e do pensamento cotidiano: a repetição, o
caráter de regra e a normatividade, o sistema de signos e o economismo.
182
manifestar na própria vida cotidiana, parece impossível. Esse anúncio revela ao homem
comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de transformação do
impossível em possível‖ (Martins, 2008: 57).
Martins (2008: 57) ressalta ainda a respeito do cotidiano como ―espaço‖ de
contradições que somente aqueles que têm necessidades radicais podem querer e fazer a
transformação da vida e que, estas necessidades ―ganham sentido na falta de sentido da vida
cotidiana‖, é assim que, em suas palavras, ―Só pode desejar o impossível aquele para quem a
vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida não pode ser
manipulada‖. Portanto, a estetização do cotidiano funciona como um processo ideológico de
mascaramento destas condições insuportáveis e contribui para que desejos de transformação
da realidade sejam substituídos por apassivamento diante do real.
A vida cotidiana comporta, assim, um conjunto diversificado
134
de atividades que
caracteriza a reprodução dos homens particulares e, por outro lado, tem em germe, elementos
que possibilitem a superação histórica desta reprodução.
Lefebvre, ao falar da dialética que o cotidiano comporta, chamava a atenção de que o
estudo do cotidiano é de certa forma, o estudo da própria práxis social (mesmo não
coincidindo os dois conceitos), de sua dinâmica interna e contradições. Martins (2008: 125/6)
a partir dos aportes de Lefebvre diz do cotidiano que:
(...) o cotidiano não e o meramente residual, como pensavam os filósofos, mas sim a
mediação que edifica as grandes construções históricas, que levam adiante a
humanização do homem. A História é vivida e, em primeira instância, decifrada no
cotidiano. Nesse sentido, de modo algum o cotidiano pode ser confundido com as
rotinas e banalidades de todos os dias, como fazem muitos pesquisadores,
historiadores e sociólogos, que se demoram nos detalhes e formalidades
insignificantes da vida, imaginando com isso resgatar o sentido profundo da
subjetividade do homem comum.
É esta contradição do cotidiano, portadora de uma alienação e uma potencial
desalienação, que nos interessa resgatar neste trabalho. Claro está que é tarefa difícil e
merecedora de estudos aprofundados a descoberta de fissuras de desalienação no cotidiano, só
uma pesquisa que se debruçasse na realidade social seria capaz de apreender tais elementos. A
134
Se a heterogeneidade do cotidiano provoca em cada homem a mobilização de todas as suas forças e as suas
atenções, não mobiliza toda a atenção e toda a força. Neste sentido, vai dizer Lukács (1979) que o homem do
cotidiano é o ―homem inteiro‖, mas não ―inteiramente homem‖, este último somente se realiza no momento de
suspensão da cotidianidade. As leituras de Martins (2008) nos mostram que esta divisão entre ―homem inteiro‖
e ―inteiramente homem‖ deve ser tomada com bastante cuidado para não interpretarmos as duas concepções
como ―blocos fechados‖ que seriam isentos de contradições internas.
183
nós cabe apontar eixos de debate que nos permitam uma aproximação fiel do real e caminhos
investigativos a serem seguidos.
A partir das questões até aqui apontadas nos perguntamos: o que então não é
cotidiano?
Os autores aqui estudados procuraram responder a esta questão demonstrando que não
uma linha divisória nítida entre cotidiano e não cotidiano. A própria Heller (1998: 119) ao
falar do trabalho, por exemplo, situa-o como atividade do cotidiano e como atividade
genérica, ao que ela diz que o trabalho apresenta dois aspectos: como execução de um
trabalho é parte orgânica da vida cotidiana, como atividade de trabalho é uma objetivação
diretamente genérica. O primeiro é considerado por Marx como labour e o segundo como
work.
A questão a se colocar aqui seria então como se suspender do cotidiano, suspensão
que, no entanto não o elimina. Que mediações são possíveis entre o homem (o indivíduo
social) e o gênero humano? Como estabelecer uma mediação entre o agir e o pensar
cotidianos e as ações que são orientadas no sentido de construção do humano-genérico?
É importante ressaltar que particular e genérico se encontram e se inter-relacionam e
nenhum homem pode expressar por toda a vida apenas uma destas dimensões, é na construção
de uma individualidade social que não seja estranha a uma dimensão humano-genérica que
estas duas dimensões melhor se expressam.
Ao falarmos de indivíduo, não nos referimos ao homem isolado, Heller (1989) chama
atenção para que mesmo que seja o homem, enquanto indivíduo, um ser genérico ―já que é
produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento
humano‖, enquanto representante do ―humano-genérico‖ este não é jamais um homem
sozinho, ―mas sempre a integração (tribo, demos, estamento, classe, nação, humanidade)
bem como, freqüentemente, várias integrações cuja parte consciente é o homem e na qual se
forma sua ‗consciência de nós‘‖ (Heller; 1989: 21).
O não cotidiano desta forma se caracterizaria pela suspensão do cotidiano. E esta
suspensão se realizaria em especial pelas objetivações genéricas do conhecimento e
autoconhecimento humanos, pela ciência, a arte e a filosofia (segundo Heller 1998), mas
também pela política e História (como acrescenta Martins).
Entanto nos perguntamos onde se encontra a mediação entre o cotidiano e o não
cotidiano. Ao que encontramos em Heller que: ―Todas as capacidades fundamentais, os afetos
184
e modos de comportamentos fundamentais com os quais transcendo meu ambiente e que eu
remeto ao mundo ‗inteiro‘ alcançável por mim e que eu objetivo neste mundo, na realidade eu
os tenho apropriado no curso da vida cotidiana‖. (Heller: 1998: 25). O que nos permite
reafirmar que não uma separação nítida entre o cotidiano e o não-cotidiano, ambos se
mesclam, assim ―a vida cotidiana faz-se de mediadora até o não cotidiano e é escola
preparatória dele.‖ Ou seja, se diferenciação entre o cotidiano e o não cotidiano, estes são
esferas intercaladas na vida de cada homem, se completam.
Assim, não como se desligar por inteiro da cotidianidade, nem como, por outro
lado, viver tão somente nela. É na cotidianidade que se põe em funcionamento todos os
sentidos, capacidades intelectuais, habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, idéias,
ideologias do homem. É por esta razão que o estudo do cotidiano é tão caro ao
desenvolvimento de nossa tese. Porque está nele o fermento que faz crescer a ―estetização da
mercadoria‖ em tempos contemporâneos e ao mesmo tempo os germes que fazem sua crítica
prática.
Neste caso, seria a vida cotidiana plena de sentido, de realização plena de todas essas
capacidades?
Longe disso, ―o homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas
não tem nem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses
aspectos; por isso, não pode aguçá-los em toda a sua intensidade‖ (Heller; 1989: 17/18).
Devido especialmente ao fato de que ―na vida cotidiana os fenômenos freqüentemente
ocultam a essência, o seu próprio ser, ao invés de iluminá-la‖ (Lukács; 1979: 25) é para além
dela que estes elementos adquirem fruição, sentido e são exercidos de forma consciente.
Como observamos até aqui se os indivíduos mobilizam todas as suas forças e atenções
na cotidianidade atuando como um ―todo‖, um ―homem inteiro‖, não tendo, portanto, acesso à
consciência ―humano-genérica‖ é também este o espaço privilegiado da reificação. Mas como
apontamos o cotidiano não é pura alienação, se o homem não desenvolve nele suas plenas
capacidades é ali que elas nascem e são identificadas inicialmente. Desta forma, qualquer
identidade e consciência de classe ou qualquer mediação com o humano-genérico, nos termos
de Lefebvre e Heller, tem que considerar aspectos do cotidiano, tem que se fazer sentir e
sentido ao homem singular. Portanto, se as contradições do capitalismo põem a necessidade
de sua superação como algo premente, as formas que esta superação assume devem comportar
um sentido histórico que não negligencie aspectos cotidianos de classe. Posto que, como nos
185
indica Martins (2008: 57) ―nos instantes dessas rupturas do cotidiano, nos instantes da
inviabilidade da reprodução, que se instaura o momento da invenção, da ousadia, do
atrevimento, da transgressão. E a desordem é outra, como é outra a criação. Já não se trata
de remendar as fraturas do mundo da vida, para recriá-lo. Mas de dar voz ao silencio, de dar
vida à História‖.
6.1.2. Capitalismo e vida cotidiana
A coisificação das relações sociais promove a alienação do homem
em relação à sua obra, faz com que apareça como coisa e objeto, e
não sujeito de sua própria obra. Na alteridade das relações sociais, o
outro que ele é entra como objeto e não como objetivo. Num de seus
estudos mais interessantes, sobre o cibernantropo, Lefebvre mostra
que as imensas possibilidades tecnológicas e científicas do nosso
tempo chegam à vida cotidiana das pessoas como chuvas residuais
daquilo que foi prioritariamente destinado à constituição e
alimentação dos sistemas de poder e não ao próprio homem.
(Martins; 2008: 104).
Na pergunta sobre o que é a vida cotidiana, que atividades, relações, compreensões
caberiam nesta definição, o que apreendemos a partir dos estudiosos citados é que esta é
essencialmente histórica e a partir deste elemento pode ser apreendida na sua
concreticidade. Nestes termos, quando falamos de vida cotidiana nos referimos a uma
determinada cotidianidade.
Em termos gerais, relacionar o cotidiano e a história implica considerar que o ―homem
do cotidiano‖ não está totalmente a mercê de acontecimentos macros que parecem independer
de sua intervenção, mas, ao contrário, com eles interage no sentido de potencialmente poder
operar escolhas. Em outros termos, no processo de constituição de sua humanidade histórica,
ou seja, de realização da práxis social o cotidiano é um ―espaço‖ insuprimível, mas os
homens de diferentes épocas o vivem de maneiras diferentes.
Portanto, o conteúdo histórico-social dos elementos constitutivos do cotidiano adquire
corpo e se transforma com a transformação das sociedades, seu conteúdo é movente e
dinâmico. E na sociedade atual tal conteúdo assume especificidades próprias da ―fase‖
capitalista que esta vivencia.
Martins (2008: 89) destaca que para Lefebvre ―a noção (e não o conceito) de cotidiano
tem consistência se se leva em conta as contradições do processo histórico, o cotidiano
186
como contraponto (e alienação) da História‖. Assim, ―O cotidiano não tem sentido divorciado
do processo histórico que o reproduz. A concepção de Lefebvre, de que não reprodução
sem uma certa produção de relações sociais, não cotidiano sem história, é essencial para
discutir-se o tema‖. Portanto: ―Vida privada e vida cotidiana, como objetos de conhecimento
científico, são temas da atualidade, são temas da consciência social contemporânea e o são
porque de algum modo são problemas para a sociedade‖. (Martins; 2008: 84).
Passemos então para um entendimento mais próximo dos elementos constitutivos do
cotidiano na sociedade capitalista, elementos que entendemos podem nos permitir uma
aproximação do debate que nos propomos entre fetichismo e cotidiano.
Para Lefebvre a relação entre ―trabalho‖ e ―distrações‖ (tempo livre) se configura na
sociedade capitalista como fundamental para a constituição de uma nova cotidianidade, a
cotidianidade burguesa.
Se em outros modos de produção o trabalho produtivo se mesclava com a vida
cotidiana de tal forma que era possível uma ―vida‖ que não era, segundo as palavras de
Lefebvre, individual, mas de homens imersos em laços da comunidade ou da cooperação; com
a sociedade burguesa ―(...) esses diversos elementos e suas relações foram subvertidos: em um
sentido diferenciados, separados; em outro reunidos em um todo‖ (1967: 113). Desta forma:
A sociedade burguesa re-valorizou o trabalho, sobretudo em seu período ascendente;
mas no momento histórico em que surgiu a relação entre o trabalho e o
desenvolvimento concreto da individualidade, tomou um caráter cada vez mais
parcelar. Ao mesmo tempo, o indivíduo cada vez mais submergido em relações
sociais complexas se isolava e se fechava em si. A consciência individual se separava
(em consciência privada e consciência social ou pública), se pulverizava
(individualismo, especialização, separação dos domínios de atividades, etc.). (1967:
213).
Lefebvre chama atenção de que este processo se dá ao mesmo tempo em que o homem
enquanto tal distinguia-se do trabalhador e a vida familiar se separava da vida produtiva e das
distrações. Consideramos importante colocar a questão sobre a dimensão que assume esta
separação na atualidade, se a disjunção entre trabalho e ―distrações‖ foi fundamental para a
constituição da sociedade burguesa, hoje, conforme veremos no próximo item, ela assume
especificidades que devem ser devidamente consideradas, principalmente no que diz respeito
à produção mercantil das distrações (com o surgimento da indústria do lazer e do
entretenimento) e o aumento considerável do desemprego estrutural.
187
Heller destaca que com o surgimento da divisão social do trabalho, da sociedade de
classes e da propriedade privada (e a alienação na sua forma capitalista) ―mundo‖ e ―homem
particular‖ se diferenciam, em outros termos, surge uma nova cotidianidade.
Na sociedade capitalista, o espaço do cotidiano é o espaço onde se relacionam o
―pequeno mundo‖ e o ―grande mundo‖, segundo Heller. Nas palavras de Kosic (1976:68): ―A
indústria e o capitalismo, juntamente com os novos instrumentos de produção, as novas
classes e as novas instituições políticas, trouxeram consigo também um novo tipo de
existência cotidiana, essencialmente diferente do das épocas anteriores‖. Neste ―novo tipo de
existência cotidiana‖ o ―tempo do trabalho‖ e o ―tempo do não trabalho‖ eram vividos e
regulavam as ações dos indivíduos (da classe trabalhadora) todos os dias e o mais por
períodos longos.
Assim, em uma sociedade onde a alienação atingiu um grau nunca dantes visto, a
―distância entre as potencialidades do gênero humano e a riqueza dos indivíduos‖ é de certo
maior que em qualquer outro momento histórico. Neste sentido Heller diz ―(...) quanto maior
for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma sociedade dada, tanto mais a vida
cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais esferas‖ (1989: 38). Assim, a unidade
fenômeno/essência na constituição do ser social torna-se tanto mais conflitiva quanto mais
distante for o agir individual do desenvolvimento geral das faculdades humanas, quanto mais
intensa for a fetichização da sociedade.
Se com as sociedades de classes ―mundo‖ e ―homem particular‖ se diferenciam e se
estranham, este sendo um fenômeno mais intenso e ontologicamente constitutivo da sociedade
burguesa, nesta última, há um movimento internamente contraditório que leva ao acirramento
―máximo‖ desta contradição nos tempos atuais. Os processos alienantes da sociedade
burguesa são moventes e movidos pela própria dinamicidade do capitalismo. Nestes termos,
como afirma Netto (1981: 81):
Enquanto a organização capitalista da vida social não invade e ocupa todos os espaços
da existência individual, como ocorre nos períodos de emergência e consolidação do
capitalismo (nas etapas, sobretudo, do capitalismo comercial e do capitalismo
industrial-concorrencial), ao indivíduo sempre resta um campo de manobra ou jogo,
onde ele pode exercitar minimamente a sua autonomia e o seu poder de decisão, onde
lhe é acessível um âmbito de retotalização humana que compensa e reduz as
mutilações e o prosaísmo da divisão social do trabalho, do automatismo que ela exige
e impõe.
Para Lefebvre este campo de manobra se produzia (poderia ser produzido) nas e pelas
distrações.
188
Quando, por outro lado, a sociedade capitalista atinge um ―limite‖ que lhe impõe uma
retroalimentação a partir de sua própria destruição (produção destrutiva), o ―campo de
manobra‖ dos indivíduos sociais quanto a operar escolhas e de ―suspensão‖ dos processos
alienantes é drasticamente diminuído, mas não eliminado. Netto (1981: 81-2) afirma a
respeito do capitalismo monopolista que;
(...) a organização capitalista da vida social preenche todos os espaços e permeia todos
os interstícios da existência individual: a manipulação desborda a esfera da produção,
domina a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que penetra
a totalidade da existência dos agentes sociais particulares é o inteiro cotidiano dos
indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo psico-social se destila de
todos os poros da vida e se instila em todas as manifestações anímicas e todas as
instâncias que outrora o indivíduo podia reservar-se como áreas de autonomia (a
constelação familiar, a organização doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação
dos imaginários, a gratuidade do ócio, etc.) convertem-se em limbos programáveis.
Na ―fase tardia do capitalismo‖ a reificação assume dimensões mais intensas no
cotidiano dos homens burgueses, espalha-se por todos os interstícios da vida do homem, mas
não ocupa de forma totalizante todos os âmbitos de sua vida, posto que este processo se
desenvolve de forma contraditória e, se assim não o fosse, não existiria mais saída. O fetiche
se universaliza e é na sua forma de capital financeiro que este assume sua expressão máxima.
É a dinâmica temporal e autodestrutiva do capital financeiro que se espraia através, em
especial, das formas contemporâneas do fetiche da mercadoria, para a cotidianidade dos
homens burgueses. E, entendemos que um dos maiores prejuízos desta dinâmica é conviver
com a autodestruição cotidiana da própria vida (através, por exemplo, de consumos de alguns
alimentos com substâncias comprovadamente nocivas a saúde, do medo constante, de doenças
psicossomáticas e etc.) como se fosse natural, como parece ser, conforme nos indica Marx, a
capacidade do dinheiro gerar dinheiro.
A dinâmica da sociedade do capital fetiche invade a ―subjetividade‖ dos homens e
impõe uma ―forma de ser‖ reificada de extrema degradação ao processo de constituição do
humano e de sobrevivência da própria humanidade. Nestes termos, os tempos
contemporâneos são tempos de grande degradação, onde os homens se relacionam entre si
como se fossem objetos descartáveis.
Sem se ocupar do tema, mas apontando elementos de como essas mudanças operadas
no campo da acumulação do capital são acompanhadas de uma redefinição das relações
sociais, Chesnais (2005: 61) diz que tais mudanças tendem também a modelar a sociedade
contemporânea no conjunto de suas determinações. Assim, aponta o autor citado:
189
No quadro da mundialização capitalista contemporânea, da qual a finança é uma das
forças motrizes mais fortes, a autonomia que parece caracterizar o movimento de
acumulação do capital (ou, se assim se preferir, a predominância que a economia
parece ter sobre todas as outras esferas da vida social) se acentua de forma qualitativa.
Todos são obrigados a ―se adaptar‖ às exigências da ―economia‖ e a admitir que se
reordenem os traços fundamentais da sociedade sem consideração pelas posições
sociais ―adquiridas‖ pelo passado e sem respeito pelo habitus proveniente da evolução
anterior. Daí decorre esse encaminhamento paralelo de formas de expropriação nos
países ―emergentes‖, as quais remetem à brutalidade quase sem mediação da
acumulação primitiva, e de modalidades muito sofisticadas de modulação das relações
sociais (em termos de gestão de recursos humanos ou de gestão e constituição do
imaginário coletivo pelo viés televisivo) para reproduzi-las sob uma forma de
submissão à sombra da ―ditadura‖ dos mercados financeiros.
A reificação da vida cotidiana encobre a essência
135
e faz do aparencial a única
realidade possível. Cabe cada vez mais ao capital, inclusive como forma de garantir sua
existência, tornar essa aparência atrativa e significativa, quando no fundo, o próprio capital
não tem nada mais a oferecer. Os elementos que utiliza para tal, apesar de diferenciados, nos
parecem indicar de que forma a reificação penetra cada vez mais na subjetividade do ―homem
de todos os dias‖, de que forma a realidade reificada reafirma a necessidade de reprodução do
capital pelo capital, quando a objetividade dá sinais de sua agonia.
Mas como se constitui o homem do cotidiano, ao qual nos referimos no presente texto?
Apontaremos alguns elementos que nos permitirão aclarar esta interrogativa, a seguir.
6.1.3. Indivíduo social e cotidiano
Tem mulheres que transmitem um biótipo popular, né? Quem são
essas mulheres? Independente de A, B ou C, são mulheres que a
maior parte das pessoas dizem: “ah, são bonitas” ou “são
esbeltas”(...) é uma questão de gosto e concordância com o mesmo
gosto. Então, no caso dela, ela é um biótipo... alta, um tipo fora do
padrão brasileiro, agora eu acho que as cirurgias vieram para
melhorar. Claro que vieram. Ela antes nunca apareceu, apareceu
depois de operada.
(Depoimento de Paulo, marido e cirurgião de Rosana, a quem faz
referência. In Goldemberg; 2007: 225).
Quem é o indivíduo social da contemporaneidade? Quem é o homem que trabalha,
ama, casa-se, tem filhos, sonha? Quem é o homem de ―todos os dias‖? Perguntávamos no
início deste capítulo.
135
Do exposto até aqui observamos que o mundo da aparência e o mundo da essência são constitutivos dos
processos de produção e reprodução do ser social. A priori estes dois mundos não se contrapõem, ao contrário,
se diferenciam e se complementam. É com a alienação que se põe a contradição (e não a diferença) entre
aparência e essência, estes ―mundos‖ a partir de então se contrapõem e se complementam.
190
O que é certo afirmar a priori é que este se trata de um indivíduo social. Portanto, o
homem de todos os dias é um homem histórico. E por ser histórico traz elementos de
continuidade e de rupturas em relação a outros momentos históricos.
Podemos dizer, também, para além desta afirmação, que se a sociedade burguesa
trouxe consigo a possibilidade de constituição e desenvolvimento da individualidade social,
enquanto tal, esta mesma sociedade impõe cada vez mais barreiras ao livre desenvolvimento
do indivíduo, no sentido de realização das suas potencialidades e na direção do humano-
genérico, portanto, é uma sociedade com ―alto nível de alienação‖ e onde a reificação penetra
cada vez mais na vida de todos e de cada homem. Desta forma, são postas aos mesmos
indivíduos mais alternativas que em qualquer outra sociedade, entretanto, reduzem-se, cada
vez mais, as escolhas conscientes. Este é um elemento importante constitutivo de sua
contraditoriedade.
Para apontarmos elementos que nos permitam uma resposta mínima à questão
colocada inicialmente, é necessário entendermos o ―lugar‖ do universal, do particular
136
e do
singular na constituição da estrutura do ser social. Iniciaremos por trazer alguns aportes do
debate da constituição do ser social como ser histórico, o que entendemos ser fundamental
nesta discussão, pois delineador do caráter genérico do homem.
Como ser histórico-social o homem não existiu desde sempre. Enquanto tal teve no
longo processo de constituição, como elemento ontologicamente fundante, o trabalho
137
. Cabe
ressaltar que, ―(...) ser fundante
138
não significa ser cronologicamente anterior, mas sim ser
136
Como destacamos anteriormente Heller (1989: 23) fala das dimensões, particular e genérico tendo como
mediação a construção de uma individualidade social. Enquanto para Lukács, o singular corresponderia ao
nível do imediato, e o particular seria constituído do complexo de mediações entre este e o universal. A
diferença entre eles, neste caso é mais uma questão de terminologia.
137
Lukács destaca que ―Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a
outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é
ontologicamente impossível‖ (1979: 40).
138
Se o ―mundo dos homens‖ comporta essa multiplicidade de relações e atividades que atribuem significado de
ser social ao homem, cabe aqui a pergunta sobre o que confere ao trabalho o estatuto de ser ontologicamente
fundante. Lessa responde, a partir de Lukács que, isto se dá, posto que ―(...) O trabalho, em suma, é a única
categoria do mundo dos homens que faz a mediação entre natureza e sociedade. Esta é a razão de, nele,
encontrarmos in nuce todas as determinações decisivas do ser social‖. (Lessa; 2002: 252). As outras categorias
se encontrariam nas relações entre os homens (e não entre estes e a natureza). Entendemos, por outro lado, que
o trabalho constitui-se como fundante não por ser ―a única categoria do mundo dos homens que faz a
mediação entre natureza e sociedade‖, tal mediação, no nosso entendimento se dar também através de outras
dimensões constitutivas da sociabilidade humana, como a política, a arte, etc, em especial quando concebemos
a natureza não como totalmente externa ao homem, não como conjunto de coisas exteriores e não-partes do
homem, mas, como assinala Marx (Manuscritos Econômicos e Filosóficos), a natureza, incluindo o próprio
homem, a natureza humanizada. Entretanto, é o trabalho, a única categoria que permite ao homem a sua
reprodução material (e com sua reprodução social), a sua sobrevivência enquanto espécime, por isso
191
portador das determinações essenciais do ser social, das determinações ontológicas que
consubstanciam o salto da humanidade para fora da natureza‖. (Lessa; 2002: 38).
Não podemos, entretanto, imaginar o homem imerso num mundo onde o trabalho seja
a única atividade que lhe confira qualquer significado enquanto ser social. As atividades que
este estabelece nas suas relações sociais ultrapassam a atividade pela qual produz objetos
úteis. Para além de atender suas necessidades de reprodução material (e, portanto, social),
carece responder a outras dimensões de sua reprodução como ser social. O homem precisa de
arte, de poesia, de cultura, de política e de relações verdadeiras com os outros homens.
Desta forma, o ser social existe a partir (e na) de uma totalidade, no sentido de que
nenhuma de suas dimensões expressivas se manifesta, como tal, de forma isolada. Trabalho,
linguagem, consciência, política, liberdade e universalidade estão intrinsecamente ligados
como componentes da sociabilidade do homem, funcionam como mediações no seu processo
de constituição enquanto ser social.
O trabalho é ontologicamente fundante no sentido de prioritário na constituição das
outras dimensões. Foi com o trabalho ou através dele que foi possível, como destaca Lukács,
o salto do mundo biológico para o social. Desta forma, o ser social ―em seu conjunto e em
cada um dos seus processos singulares pressupõe o ser da natureza inorgânica e orgânica‖.
(Lukács; 1979: 17). Entretanto, como ainda pontua Lukács, ao mesmo tempo em que não se
pode considerar o ser social como sendo independente do ―ser da natureza‖ (como sua
antítese), não se pode também considerar uma passagem simplista, uma transposição de um a
outro. Para a ontologia marxiana, ao contrário destas duas posições:
As formas de objetividade do ser social se desenvolvem, à medida que se desenvolve
e explicita a práxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais
claramente sociais. Esse desenvolvimento, porém, é um processo dialético, que
começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma
analogia na natureza. O fato de que esse processo, na realidade seja bastante longo,
com inúmeras formas intermediárias, não anula a existência do salto ontológico. Com
o ato da posição teleológica do trabalho, temos em-si o ser social. O processo
histórico da sua explicitação, contudo, implica a importantíssima transformação desse
ser em-si num ser para-si; e, portanto, implica a superação tendencial das formas e dos
conteúdos sociais mais puros, mais específicos. (Lukács; 1979: 17).
Entendemos, entretanto, que a constituição do ser social elimina historicamente a
possibilidade de existência da natureza como algo externo ao homem, como natureza pura.
Desta forma, não mais se poderia falar de natureza como algo externo e que não incluísse o
entendemos, partindo de Marx, ser fundante. Sem este aspecto, a reprodução material, outras dimensões da
existência do homem não se desenvolveriam.
192
próprio homem em suas relações sociais diversas. Diríamos que, com o ser social a natureza e
o ser natural deixaram de existir, a própria concepção e significado de ―natureza‖ a partir de
então se tornam social, porque esta se torna, por conseguinte, uma relação social e, portanto,
histórica. A natureza estranhada, como externalidade (como segunda natureza) é uma
expressão da alienação capitalista.
Observa-se na citação de Lukács acima que a teleologia, ou ―posição teleológica
enquanto formação matricial da realidade‖ se apresenta como algo que diferencia o ser social
do ser puramente orgânico e isto não porque nasce com o primeiro, mas por não possuir a
natureza uma teleologia (e dirá também Lukács: nem a história nem a sociedade possuem
teleologia, esta é específica dos indivíduos sociais, somente as suas ações são orientadas neste
sentido). Se a teleologia tem lugar na formação do ser social, também o tem a causalidade,
ambas unitárias enquanto constitutivas deste. O ser social, desta forma, é constituído de
momentos de ―determinismo‖ e de liberdade. Assim ―os homens fazem certamente sua
própria história, mas os resultados do decurso histórico são diversos e freqüentemente opostos
aos objetivos visados pelos inelimináveis atos de vontade dos homens individuais‖ (Lukács;
1979: 64)
139
.
A causalidade se explicita no sentido de que se articula à posição teleológica formando
no ser social uma ―estrutura inteiramente peculiar‖. Desta forma:
(...) embora todos os produtos do pôr teleológico surjam de modo causal e operem de
modo causal, com o que sua gênese teleológica parece desaparecer no ato de sua
efetivação, eles têm porém a peculiaridade puramente social de se apresentarem com o
caráter de alternativa; e não isso, mas também os seus efeitos, quando se referem a
homens, têm - por sua própria natureza a característica de abrirem alternativas. Tais
alternativas, mesmo quando o cotidianas e superficiais, mesmo quando de imediato
tem conseqüências pouco relevante, são todavia autênticas alternativas, já que contêm
sempre em si a possibilidade de retroagirem sobre o sujeito para transformá-lo.
(Lukács; 1979: 81).
É a possibilidade de escolhas, mesmo que elas se dêem no plano imediato e mesmo
que o homem não tenha consciência do alcance histórico de suas escolhas; que possibilita ao
homem construir sua história, no sentido já apontado aqui
140
.
Observamos como o singular está imbricado com o universal na constituição do ser
social de tal forma que é improvável que um se expresse sem o outro; assim: ―(...) a realização
139
A questão da relação alternativas/escolhas no cotidiano encontra aqui um campo fértil de debate.
140
Para Heller (1989: 59) o preconceito estreita a margem real de alternativas do indivíduo, uma vez que diminui
sua liberdade seletiva diante do ato de escolha.
193
do elemento genérico no indivíduo é indissociável daquelas relações reais nas quais o
indivíduo produz e reproduz sua própria existência, ou seja, indissociável da explicitação da
própria individualidade‖ (Lukács; 1979: 144), acrescentaríamos, seguindo o debate deste
capítulo: é indissociável da vida cotidiana. Entretanto, as mediações que se constituem entre o
singular e o universal, aparecem ao homem do cotidiano como algo estranho a ―seu mundo‖.
Nestes termos, Lessa (a partir de Lukács) destaca que:
A malha de mediações e determinações sociais que assim surge e cuja reprodução
tem como médium ineliminável as decisões alternativas dos indivíduos a ela
submetidos ―aparece ao homem como uma espécie de segunda natureza, como um
ser que existe completamente independente do seu pensamento, de sua vontade‖
(CXXI, 232). O produto da totalidade da práxis humano-social num dado momento se
converte, para a consciência do homem cotidiano, em uma potência a ele estranha,
que o subjuga, que determina o seu ser. (Lessa, 1995: 63).
O homem entendido desta forma é uma unidade contraditória entre ações objetivas
orientadas pela necessidade de respostas imediatas e estruturas mais complexas que
funcionam no sentido do desenvolvimento do ser genérico (como diz Lukács, tenha o homem
ou não consciência deste último aspecto). Unidade contraditória e, em se tratando da
sociedade capitalista alienante visto que: ―constitui-se a humanidade socializada ao tempo
em que se estabelece a discrepância historicamente criada e por isto transitória entre a
riqueza genérico-social do homem e a existência do indivíduo singular, expressa no fenômeno
da alienação.‖ (Iamamoto; 2000: 43).
É com o aparecimento das classes, como destacamos anteriormente, que surge a
relação entre o ―particular e o mundo‖. Nas sociedades tribais, como destaca Heller, estas
relações coincidiam, eram uma única e mesma relação, na sociedade de classe, em especial na
sociedade capitalista, mundo e homem particular se diferenciam
141
. A propósito Heller (1998:
35) diz que:
A sociedade burguesa foi a primeira que desintegrou completamente em seus átomos,
os homens particulares; por conseguinte, nela a relação consciente com o elemento
genérico nos é requerida quanto à reprodução do particular (aqui, como temos visto,
―o interesse comumpode realizar-se à revelia dos ―interesses particulares‖). Pelo
contrário, a relação consciente com o gênero é, nesta sociedade quando e na medida
em que se realiza -, profundamente mais ampla que no passado. Para o capitalista esta
integração pode ser da classe em sua totalidade e inclusive até a nação inteira; pelo
contrário, para o proletário desde que colocada a liberação de sua classe é o gênero
humano em sua totalidade. A família, a camada, que havia sido o objeto máximo da
integração genérica, fica reduzida a particularidade.
141
Lukács e Heller destacam que é no cotidiano o espaço de interação entre ambos.
194
Para Heller, como vimos, é a individualidade social que comporta as dimensões
históricas do gênero humano, mas o homem social não é um homem isolado, mas a interação
destas duas dimensões. Um dos espaços privilegiados desta interação é, para a autora, a
comunidade, entretanto, a sociedade burguesa traz também a contraposição entre
comunidade
142
e indivíduo.
Esta contraposição se ―por causa da relação casual do homem com sua classe‖. Em
outros termos, a contraposição entre comunidade e indivíduo surge ―como conseqüência da
sociedade na qual se separam o fato de pertencer a uma classe e o fato de pertencer a uma
comunidade, na qual o indivíduo passou a estar submetido enquanto tal às leis do movimento
das classes, na qual o homem converteu-se em ser social não necessariamente comunitário‖.
(Heller; 1989:73).
Ainda nas palavras da autora citada esta é uma questão problemática visto que o
desenvolvimento da individualidade e a comunidade encontram-se em interação. Se por um
lado, a sociedade burguesa desenvolveu a individualidade de uma forma nunca vista antes,
esta mesma sociedade, por outro lado, ―ao subsumir o indivíduo sob sua classe, ao submetê-lo
às leis econômicas como se essas fossem leis naturais, aboliu aquela grande possibilidade e
fez dos indivíduos livres nada mais que escravos da alienação, até o ponto em que de facto os
indivíduos de épocas anteriores.‖ (Id:75). Iamamoto (2008: 373. Grifos da autora) destaca a
este respeito que:
A tensão entre existência individual e o indivíduo como membro de uma classe,
pensado como coletividade, é fruto do decurso do desenvolvimento, próprio da
sociedade burguesa. É nesta sociedade, produto da divisão de trabalho desenvolvida,
que passa a existir a diferença entre a vida de cada indivíduo, como particular e
pessoal, e sua vida como trabalhador, subordinada a um ramo de atividade e às
condições a ele inerentes. Sua personalidade passa a ser condicionada por
determinadas relações de classes. Essa distinção entre indivíduo pessoal e indivíduo
social, na sociedade mercantil desenvolvida, encontra-se enraizada no próprio
caráter social, assumido pelo trabalho particular do indivíduo produtor, expresso na
forma mercantil.
Ainda para Heller um aspecto importante para a apreensão dos obstáculos ao
desenvolvimento da individualidade social é que na sociedade burguesa o indivíduo não nasce
necessariamente em comunidade, ao contrário o indivíduo burguês cresce fora de qualquer
comunidade e chega a viver assim, como diz Heller (1989: 76), por toda a sua vida. Este fato
142
―A comunidade é uma unidade estruturada, organizada, de grupos, dispondo de uma hierarquia homogênea de
valores à qual o indivíduo pertence necessariamente; essa necessidade pode decorrer do fato de se ‗estar
lançado‘ nela ao nascer, caso em que a comunidade promove posteriormente a formação da individualidade,
ou de uma escolha relativamente autônoma do indivíduo já desenvolvido‖ (Heller; 1989: 70/1).
195
não significa que ―o indivíduo da sociedade burguesa careça necessariamente de
comunidade‖. Neste caso; ―O que se altera é a sua relação com a comunidade. Quando chega
a pertencer a uma, trata-se de uma comunidade construída, livremente escolhida‖.
A partir destes aportes podemos entender, em termos abstratos, como se constituem as
mediações singular, particular e universal
143
. Nas palavras de Lessa (a partir de Lukács):
Tal como todo complexo social, cada individualidade apresenta uma relativa
autonomia própria, uma legalidade peculiar a cada personalidade, tal como todo
complexo parcial, se desenvolve através de incessantes interações com a
universalidade social, com a generalidade humana; como todo complexo social, não
exibe uma cisão dicotômica entre o espiritual e o material. Todavia, diferentemente de
todo outro complexo social, a individualidade é o lócus da síntese peculiar de
elementos biológicos e sociais que, para Lukács, é a base de ser da gênese e
desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo humano. (1995: 73).
A unidade entre particular e gênero-humano dá-se a partir de complexos que
expressam uma determinada individualidade histórico-social. Cabe dizer que tal
individualidade não é percebida pelos homens particulares uma vez que a dimensão genérica
do ser apresenta-se, a cada homem, subsumida na sua particularidade, ou seja, estes se vêem
como seres singulares, o ―eu‖ é preponderante sobre qualquer outra dimensão na vida
cotidiana. Para Iamamoto (2008: 375): Tratar o indivíduo social na sociedade capitalista
implica analisá-lo na totalidade das relações e condições sociais em que são esculturados os
indivíduos concretos, condensando em si um modo histórico de expressão da sua
generecidade e particularidade. Afirmam-se como sujeitos na luta social, na qual se expressa a
sua rebeldia à alienação do trabalho, na busca de resgate de sua própria humanidade, como
patrimônio comum de cada um e de todos‖.
Entretanto, se cada indivíduo, porta estes elementos particulares é na interação com
o outro que ele os constrói. Na pesquisa que Martins faz sobre ―os sonhos de moradores de
São Paulo
144
para buscar identificar elementos da constituição de seus cotidianos, o autor
assinala que ―Uma boa parte da vida cotidiana é desesperada busca de sentido aparente para o
que fazemos e para o que acontece conosco e ao nosso redor. Através de uma eficaz
143
Como ressaltamos anteriormente é somente a possibilidade de escolhas entre as alternativas que são postas
na cotidianidade que permitem ao homem o exercício da sua liberdade e a ascensão ao momento da
particularidade (em termos lukacsiano, do agir consciente). Sem essas escolhas, portanto, se o homem tivesse
sua vida guiada por um determinismo intransponível seria impossível se tornar inteiramente homem. Vejamos
o que diz Lukács (1979: 144) a respeito. Para ele: ―a realização do elemento genérico no indivíduo é
indissociável daquelas relações reais nas quais o indivíduo produz e reproduz sua própria existência, ou seja,
indissociável da explicitação da própria individualidade‖.
144
Martins faz interessante análise da relação entre o sonho e elementos da vida cotidiana, destacando, dentre
outras coisas, que é ―no absurdo do sonho que a vigília repressiva que sustenta a racionalidade da ordem social
mostra o seu lado oculto, não iluminado, irracional‖ (Martins, 2008: 69).
196
dramaturgia social, os estudos sociológicos de Goffman documentam e demonstram como o
homem comum, imerso na vida cotidiana, se debate todo o tempo para simular o que não é,
para evitar que os outros reconheçam aquilo em que não se reconhece e não quer ser, pra dar
sentido àquilo cujo sentido lhe escapa‖(Martins, 2008: 71/2). Assim é partir da relação com o
outro que o eu se constrói enquanto individualidade. Nas palavras de Martins:
O sujeito não tem como se reconhecer nas relações sociais de todos os dias senão
como sua própria alteridade, isto é, como ser social; não mais como pessoa inteira,
singular, como senhor da unidade pensamento-ação-consequência. Ao se produzir nas
relações sociais ele é, de fato, produzido pelas relações sociais, de algum modo, mais
ou menos profundo, alguém muito diverso daquilo que quer ser ou daquilo que acha
que é. O homem da vida cotidiana se sonha como outro, como seu próprio eu
irreconhecível. Sua identidade não lhe pertence. Por mais que a busque acaba
achando sempre o estranho, o seu próprio estranhamento e, portanto, a negação de
uma identidade própria. Ou, então, uma contraditória identidade desidentificadora, em
que o sujeito ao se encontrar se perde, pois ao ver-se no espelho da vida, que é o
sonho, não se reconhece. (Martins, 2008: 72).
Como conciliar os elementos apontados acima por Martins com a profunda
―valorização do eunas sociedades contemporâneas? Isto é possível a partir das contradições
presentes na constituição das próprias relações sociais modernas. Assim, a relação que o eu
estabelece com o outro neste processo de reconhecimento de si é cada vez mais alienada,
portanto, como destaca Birman (2001) o outro, na sociedade contemporânea é cada vez mais
simples ―objeto‖ de reafirmação do eu narcisíco.
Desta forma, os obstáculos sociais
145
que se interpõem entre o homem singular e o
gênero-humano constituem como acabamos de ver, os complexos de formas alienadas postas
pela sociedade, no caso burguês, constituem a forma reificada. Importa, para além desta
constatação, desvendar a constituição concreta de tais complexos, seus meandros e formas de
reprodução social.
Mas o homem não é uma abstração. Ele é real. E é a partir de elementos da realidade
que podemos entender as mediações proposta nesta tese, entre cotidiano e fetiche da
mercadoria. Martins (2008) no debate que faz sobre ―A sociabilidade do homem simples‖ traz
importantes contribuições para se apreender, a partir das contradições do real, como vêm se
constituindo a cotidianidade reificada na contemporaneidade.
145
Aclaramos que mesmo usando a terminologia obstáculos sociais não o entendemos como elementos externos
às relações sociais, como se surgisse espontaneamente e se interpusessem entre homem singular e gênero
humano, mas são os próprios obstáculos formas alienadas constituídas e construídas através de relações sociais
dadas, relações da sociedade capitalista.
197
Assim, Martins resgata que o cotidiano é, contraditoriamente, o espaço do agir
mecânico, das repetições e da reificação, mas é também dos sonhos, das fagulhas de
resistência e organização dos movimentos sociais. Neste movimento contraditório, a
modernidade latino-americana e a brasileira, portam, cada vez mais, ao que nos indica
Martins (2008: 41) ―a inviabilidade da vida cotidiana, o cotidiano fragmentado, a
cotidianidade difícil o trânsito contínuo entre mundos estanques: da vida cotidiana, do
sonho, do jogo, da fantasia, do carnaval, da religião (e das religiões, no confuso sincretismo
que mistura crenças e religiões no dia-a-dia de cada um)‖
146
. Em relação à cotidianidade
brasileira Martins indica que:
As grandes cidades brasileiras estão cheias de sinais da anomalia da modernidade. A
vida cotidiana se transforma em face dos obstáculos à modernização,
progressivamente dominada por condutas, gestos, mentalidades em que o hibridismo
cultural se faz presente: nos modos de vestir, de comer, mas também no uso do carro,
mesmo pela classe média e pelos ricos. Não raro modernos automóveis são dirigidos
como se os motoristas estivessem montados num cavalo chucro, sem qualquer
consideração por aquilo que é sem dúvida um dos ingredientes da modernidade: as
regras e leis de trânsito. Como se o ―animal‖ de cada um fizesse suas próprias regras.
(Martins, 2008: 35)
Os traços que Martins indica como ―sinais das anomalias da modernidade‖ nós
poderíamos chamar de expressão cultural das configurações que adquire a estrutura do
cotidiano a partir do capitalismo tardio e, em especial, com a mercantilização das relações
sociais diversas e estetização do próprio cotidiano. Não há uma ―anomalia da modernidade‖,
mas o que poderia a princípio ser anacrônico com o moderno foi incorporado esteticamente ao
cotidiano e se torna ―espetáculo‖. A forma como os motoristas se ―comportam‖ no trânsito,
destacada acima na citação de Martins, hoje é espetacularizada nos ―pegas‖, cada vez mais
comuns (e perigosos) nas grandes e pequenas cidades brasileiras, ―pegas‖ realizados por
jovens de classe média que transformam uma atitude de violência e irresponsabilidade em
espetáculo.
Um outro elemento resgatado por Martins, a partir de suas pesquisas, que nos indica o
movimento real da estetização do cotidiano (como expressão de mudanças substantivas das
relações sociais contemporâneas) é o ―poder das imagens‖ na cotidianidade das cidades
146
A rápida contribuição que faz Martins, neste livro, para pensar as peculiaridades da reprodução latino-
americana é uma instigante ―chave investigativa‖ para as formas de resistência e organização política dos
trabalhadores latino-americanos. Se os recursos estético-ideológicos massificam e padronizam
comportamentos e com isso impõem cada vez mais uma cotidianidade vazia e sem sentido, alguns traços
culturais latino-americanos, contraditoriamente, fazem com que este mesmo movimento chegue de forma
diferenciada ao cotidiano (de alguns povos). Não abordamos este debate na tese, apenas registramos aqui sua
importância.
198
brasileiras e também, de forma cada vez mais intensa, nas pequenas cidades e povoados dos
Estados mais pobres do país. Em relação às grandes cidades o autor em questão nos indica:
A situação dos chamados excluídos, nas grandes cidades, como São Paulo, leva a uma
complicada combinação de modernidade e miséria (ou não será a miséria um dos
componentes da modernidade?). Na favela de São Remo, uma invasão de terrenos
públicos e particulares na vizinhança da Universidade de São Paulo, e em terrenos da
própria Universidade, o cenário é um desarticulado conjunto de casas inacabadas e
sem alinhamento, cujos moradores são, em pequena parte, prestadores de serviços na
Universidade. No entanto, um surpreendente número de antenas parabólicas indica
que a casa incompleta e precária e a mesa pobre não estranha a tecnologia sofisticada
do satélite e o imaginário luxuoso e manipulável da televisão. É como se as pessoas
morassem no interior da imagem e comessem imagens. A imagem se tornou no
imaginário da modernidade um nutriente tão ou mais fundamental do que o pão, a
água e o livro. Ela justifica todos os sacrifícios, privações e também transgressões.
(Martins, 2008: 35/6)
Martins (2008: 33) cita ainda que em uma viagem que fez entre Marabá, no Pará, e
Imperatriz, no Maranhão, teve como companheiro de viagem um jovem que ―usava dia e
noite óculos de sol, tipo ray-ban‖ e que o interessante, segundo Martins, era que em uma das
lentes ainda havia o selo dourado da marca do fabricante e a cada intervalo de tempo ―o
passageiro retirava cuidadosamente os óculos e com um lenço, sujo pelo suor e pela poeira,
‗limpava‘ cuidadosamente as lentes de maneira a não remover o selo‖. Ao que indica o autor
que este é um exemplo ―de uma certa consciência da transitoriedade do moderno, da
possibilidade da deterioração simbólica do objeto‖, mas que também é uma indicação de que
―nessa periferia do mundo moderno, artifícios são usados para prolongar o estado de novo das
coisas, segundo a lógica tradicional e camponesa do uso, do usuário, e não do consumidor‖.
(Idem).
Nos dois exemplos acima, sem desconsiderar as análises feita por Martins,
acrescentaríamos alguns elementos que nos permitem apreendê-los como expressão da
estetização do cotidiano.
No primeiro caso, o que Martins chama de ―uma complicada combinação de
modernidade e miséria‖ tem seu lado ―estético‖ amplamente explorado por empresas de
turismo no Rio de Janeiro (sem eliminar as contradições, que, aliás, tornam cada vez mais
intensas) através do chamado ―turismo em favelas‖. Proliferam na Internet (em páginas de
agências de turismo) ofertas de pacotes turísticos na cidade do Rio de Janeiro que oferecem
um tour inesquecível, único, uma experiência singular‖: conhecer uma favela tipicamente
carioca e conviver por algumas horas com moradores locais, observar seu cotidiano, interagir
com eles, tudo isso sem correr nenhum perigo. O tour em favelas‖ é oferecido, sobretudo, a
199
turistas estrangeiros (em especial americanos e europeus) e, como indicamos, é parte de
praticamente qualquer pacote turístico destinado a estes ―consumidores‖ de ―novas
experiências‖ que justifiquem (para eles) que a pobreza, a miséria e até a violência tem sua
―beleza‖.
O segundo caso expressa como ―o objeto‖ de consumo (a mercadoria) é cada vez mais
utilizado, para ―conferir‖ identidade ao sujeito. A imagem substitui qualquer outra possível
relação entre os sujeitos naquele momento, confere ―status‖ e indica que aquele indivíduo
com óculos ―tipo ray-ban‖ está de acordo com o tempo presente, o tempo das grandes cidades
(mesmo que de forma caricata) e que os ―outros‖ que não possuem os óculos estão ―por fora
do tempo‖.
Atualmente, o uso de celulares nas cidades dos interiores do Brasil é um exemplo de
como o cotidiano estetizado é uma realidade. Qualquer passagem (e observação) por uma
destas cidades comprova que a maioria dos jovens (principalmente, mas não esta faixa
etária) possui celulares de última geração. No caso de jovens pobres, o preço dos aparelhos é,
na maioria das vezes, incompatível com a renda mensal destes ou de suas famílias (por isso
pagam em dezenas de prestações e, geralmente, o dobro do valor à vista). São celulares que
tiram fotos, acessam a internet (quando não em muitos casos acesso à rede na própria
cidade) e comportam uma série de outras funções que jamais serão usadas. O modelo, a
marca, o objeto em si, confere status a quem o detém, de tal forma que ele, enquanto valor de
uso, é obsoleto do ponto de vista de suas funções, a partir do momento que é comprado,
posto que paga-se um preço alto para ter um celular com inúmeras funções quando uma única,
a de fazer ligações, se usada. Mas a sua estética ―vale mais‖ para aqueles jovens que o
―valor de uso‖ propriamente dito ou como indicamos anteriormente no debate sobre ―a
mercadoria‖, a estética é um elemento essencial do valor de uso do objeto e em alguns casos,
mais importantes que suas outras características ―materiais‖.
Onde reside a contradição nos exemplos citados acima? Como apontamos
anteriormente as necessidades especiais criadas atualmente e o complexo da estética da
mercadoria são extensivos, mas o acesso ao consumo não. Portanto, uma dos elementos
contraditórios estar em que, na tentativa de ter acesso à imagem que desejam para si, os
jovens pobres (dos grandes centros urbanos e das pequenas cidades) recorrem muitas vezes a
imitação, a cópia, ou ao resgate de elementos do seu cotidiano (elementos culturais) que se
aproximem daquilo que é oferecido pelo seu tempo, neste resgate reside a ―pobreza‖ (da
200
imitação, do caricatural) e a riqueza (da criatividade, da ousadia) das estratégias de
sobrevivência, de reprodução e até de ser fazer visível, de se mostrar ao mundo.
Desta forma, o cotidiano contemporâneo estetizado é cada vez mais permeado de
elementos de reificação e em alguns momentos (como os de violência extrema, de crises
econômicas, de guerras) se torna vazio de sentido e insuportável (em especial às classes
trabalhadoras). Mas, pode ser na inviabilidade de reprodução da vida (começando pelo
cotidiano) que se identifiquem algumas fagulhas de resistência, elementos germinas de
transformação do impossível em possível, como indica Martins (2008).
6.2. A mercantilização e estetização do cotidiano a mercantilização da vida.
“Minha alma é um carrossel vazio no crepúsculo”
Pablo Neruda
A relação entre capitalismo e cotidiano na atualidade passa, necessariamente, como
destacamos nos itens anteriores, pelo entendimento das formas fenomênicas de expressão da
reificação na imediaticidade da vida dos indivíduos sociais e pelas suas contradições.
O estudo das mediações entre reificação e estrutura do cotidiano na sociedade
contemporânea, apreensão complexa e carente de estudos mais aprofundados, poria a mostra,
por exemplo, os amplos recursos sócio-culturais, em especial, que o capital vem usando para
garantir não somente sua reprodução material, não somente a valorização/acumulação
capitalista, mas também o que é parte do mesmo processo, garantir sua reprodução ideológica.
A forma como o capital tem invadido a vida psico-social do indivíduo, especialmente
da contemporaneidade, dá mostra de que o que está em jogo não é somente a força de
trabalho
147
(mesmo na sua dimensão material e ―espiritual‖), mas a subjetividade dos homens
burgueses. Neste sentido, a mídia, o universo da propaganda, da informação, do marketing,
assumem papel fundamental. A manipulação, como aponta Netto (1981: 85) extrapola a
esfera da produção e do consumo e invade todos os espaços da vida, penetra a totalidade da
existência dos agentes sociais particulares‖. Assim, ―O caráter de coisa que as relações sociais
147
Destacamos que não desconsideramos a centralidade que esta categoria tem no processo de reprodução do
capital, entretanto, entendemos importante destacar que diante da dinâmica que experimenta este mesmo
processo na sociedade atual, torna-se cada vez mais necessário à realização de estudos (que consideram esta
centralidade) que se apropriem de tais mudanças e nos permitam entender como se constitui o que chamamos
de classe trabalhadora e em que consiste hoje, em termos concretos, a contradição capital/trabalho diante das
mudanças que vem experimentando o chamado ―mundo do trabalho‖.
201
adquirem na forma mercadoria é, agora, o caráter das objetivações humanas: elas se coagulam
numa prática social que os agentes sociais particulares não reconhecem como sua‖ (Idem).
Um dos limites desta reificação parece apresentar-se quando o próprio indivíduo é demitido
de sua condição de ser particular e assume a condição de coisa, mas também de indução de
que outros sejam coisas iguais a ele.
Neste sentido, a apropriação do espaço, por parte do capital, mostra sua agressividade
quando atinge o indivíduo, quando a compra do indivíduo como espaço de publicidade, passa
a ser algo comum. O indivíduo, como marca, perde sua identidade (deixa de se ver inclusive
como singular na acepção lukacsiana, pois se acredita representante de uma dimensão
genéricomercantil) e assume a corporificação da marca que representa. Como exemplo basta
vermos os atletas que viraram ―garotos propaganda‖ de grandes marcas ou mesmo a
publicidade realizada pelo indivíduo ―comum‖ quando ―opta‖ por adquirir um objeto portador
de uma marca determinada e a divulga de forma ―gratuita‖.
O que estamos chamamos de ―mercantilização do cotidiano‖ e ―mercantilização da
vida‖ refere-se à fragmentação e mercantilização das relações sociais e dos próprios
indivíduos. A estetização e mercantilização do cotidiano são possíveis, se fazem concretas,
especialmente, através da espetacularização do próprio cotidiano, através da invasão da
imagem neste espaço e do ―poder‖ que esta detém sobre as relações que se constituem
cotidianamente.
Um exemplo bastante emblemático do que aqui fazemos referência diz respeito às
―conversas de auto-ajuda‖ oferecidas aos indivíduos solitários, o que Debord (1997) chama de
―venda do tempo em blocos‖. Nessas conversas, cada vez mais comuns nas grandes cidades,
os indivíduos solitários, deprimidos, carentes, podem acessar um serviço que lhes oferece
alguém para ouvi-los e fazer à vez de ―amigo‖. Se paga pelo tempo de escuta do outro esse
o serviço vendido), em alguns casos as conversas podem ser sensuais e adquirem assim uma
outra conotação erótica ou sexual. De qualquer forma, explicita-se a mercantilização de uma
relação social e da própria vida (do tempo de vida dos indivíduos), tempo vendido em blocos.
Para que movimentos como estes se tornassem possíveis foi necessário que o
indivíduo fosse fragmentado e ele próprio passível de compra e venda, não como força de
trabalho (base da sociedade capitalista), mas, sobretudo, como ser humano. A indústria
cultural e a estetização da mercadoria (de forma específica) constituíram-se veículos
fundamentais (mas não os únicos) para este processo de coisificação dos indivíduos e
202
esvaziamento de suas capacidades cticas e, por conseguinte, ―captura‖ de suas próprias
subjetividades.
Para tanto, foi necessário que o capital ocupasse quase todo o tempo dos indivíduos,
inclusive o tempo das ―distrações‖.
A indústria do entretenimento, desta forma, não tem apenas o objetivo de vender
―lazer‖, mas, sobretudo, de alienar os indivíduos no espaço e tempo do não trabalho, de
difundir a ideologia capitalista. Este movimento que teve seu marco com a indústria cultural
se expressa segundo Horkheimer e Adorno (1969:172) como a junção mercantil entre arte e
divertimento, para eles, ―(...) a novidade consiste em que os elementos inconciliáveis da
cultura, arte e divertimento, sejam reduzidos a um falso denominador comum, a totalidade da
indústria cultural‖. Ao que acrescentam os autores citados (Idem):
Não obstante, a indústria cultural permanece a indústria do divertimento. O seu poder
sobre os consumidores é mediatizado pelo amusement que, afinal, é eliminado não por
um mero diktat, mas sim pela hostilidade, inerente ao próprio princípio do
divertimento diante de tudo que poderia ser mais do que divertimento. Sendo que a
encarnação de todas as tendências da indústria cultural na carne e no sangue do
público se faz através do processo social inteiro, a sobrevivência do mercado neste
setor, opera no sentido de intensificar aquelas tendências.
Lefebvre considerava o tempo livre como um dos ―espaços‖ com potencialidade de
produzir a crítica prática à alienação capitalista, mesmo considerando que este tempo (e
espaço) poderia ele mesmo se tornar alienado. Entendemos a questão apontada por Lefebvre e
concordamos com ele, mesmo que não tenhamos condições para desenvolvê-la a contento
nesta tese. Além da contradição e oposição direta do trabalho ao capital, as relações
capitalistas portam outras inúmeras contradições que podem e devem ser potencializadas
como resistências, uma delas, destacada por Lefebvre, diz respeito aqueles aspectos da vida
que podem ser desenvolvidos no tempo das distrações e não apropriados pela dinâmica do
capital, por serem anacrônicos a ele, que podem, desta forma, gerar determinadas
necessidades radicais. Entretanto, estas possibilidades reduzem-se à medida que o capital
invade todos os tempos dos indivíduos e transforma inclusive o ―tempo livre
148
em tempo
mercantilizável, mas não são eliminadas totalmente.
Como apontamos anteriormente, o fenômeno da reificação não se encontra restrito ao
espaço de compra e venda, das trocas mercantis propriamente ditas (mesmo incluindo aqui as
148
O tempo livre, não é entendido como simplesmente o tempo do não trabalho, mas o tempo que não engloba
outras atividades que se reproduzem também dentro da gica e dinâmica do capital. A questão a ser colocada
é se é possível se falar em tempo livre dentro do capitalismo.
203
relações dos homens entre si). Espalha-se inclusive pelo espaço da vida privada e é que se
retroalimenta dos ―sonhos‖, ―desejos‖ e fantasias dos homens para devolvê-los em forma de
imagens consumíveis. É neste contexto que se insere a ―estetização do cotidiano‖. Entretanto,
esta estetização se constitui enquanto fetiche. Como apontam Horkheimer e Adorno (1969:
177): ―A fuga da vida cotidiana, prometida por todos os ramos da indústria cultural, é como o
rapto da filha na revista norte-americana de humorismo: o próprio pai se encarrega de deixar a
escada sem luz. A indústria cultural fornece como paraíso a mesma vida cotidiana. Escape e
elopement são determinados, a priori como os meios de recondução ao ponto de partida. O
divertimento promove a resignação que nele procura se esquecer‖. A indústria cultural
promete a mesma vida cotidiana, mas de forma espetacular, vide o que apresentam atualmente
as telenovelas brasileiras e os reality shows.
Assim, a estetização do cotidiano funciona como uma forma de transformar o tempo e
o espaço do cotidiano em tempo e espaço espetaculares, atribuindo-lhes o ―sentido‖ da
imagem: da telenovela, dos reality shows, dos programas de TV, etc. Mas para que este
movimento se complete é necessário um esvaziamento do significado social real (aquele
construído pelas relações cotidianas que se constituem por fora do espetáculo) do tempo e do
espaço cotidianos, ou seja, é necessário que o cotidiano que está por fora do espetáculo
apareça carente de sentido e irreal, ―sem graça‖. Nas palavras de Kehl (In Bucci e Kehl, 2004:
144) ao se referir a popularidade que os reality shows tiveram no Brasil:
O que interessa ao espectador fiel é a esperança de que a exibição, pela televisão, da
banalidade de um cotidiano parecido com o seu, ponha em evidência migalhas de
brilho e de sentido que sua vida, condenada a domesticidade, não tem. É como se o
apagamento da dimensão pública da vida social tivesse um efeito profundo sobre a
relação das pessoas com os ideais. Estes não deixam de existir, simbolicamente na
cultura. Mas a lógica do segredo e do esquecimento a que se refere Guy Debord
colabora para manter os ideais tão fora do alcance, e sua razão de ser tão distante da
compreensão dos homens comuns, que somente o brilho fugaz da ―fama‖ é capaz de
compensar a mediocridade da vida cotidiana.
O que estamos chamando de ―estetização do cotidiano‖ é a introdução de elementos
que não tinham sido até então (e de forma marcante) constitutivos da estrutura do cotidiano.
Desta forma, a espetacularização‖ do cotidiano é a expressão da sua estetização. Em outros
termos, é a transposição do tempo do espetáculo para o tempo da vida real que melhor
expressa a ―estetização do cotidiano‖. Concretamente este movimento pode ser expresso no
acesso à mercadoria ―estetizada‖, no consumo de uma ―cultura de massavazia de quaisquer
―valores artísticos‖, na imitação de gostos, comportamentos e modas apresentados nas
telenovelas ou mesmo fora delas pelas ―celebridades‖; nos ―pegas‖ promovidos (como
204
espetáculos) por jovens de classe média; no ―turismo em favelas‖ (como citamos
anteriormente) ou o que é cada vez mais corrente, na participação direta e indireta em
diversos espetáculos (em especial os televisivos) construídos cuidadosamente pela mídia.
A imitação torna-se o principal meio de se espelhar no outro na sociedade do
espetáculo, mas quando não é mais possível imitar, reproduz-se a vida do ―outro‖ de forma
caricatural ou, simplesmente, esta vida (que também é falseada) é consumida como qualquer
outro produto: via revistas de celebridades, programas de TV, onde os indivíduos olham e
assistem inertes invejando e desejando ser o outro. A TV desempenha aqui papel
fundamental, espelho da ―melhor imagem‖ a ser seguida. Nas palavras de Maria Rita Kehl (In
Bucci e Kehl, 2004: 160):
Se a televisão ocupa hoje a esfera blica, o espaço privilegiado do encontro virtual
entre os membros da sociedade do espetáculo é o espaço onde ela impera: o espaço
doméstico. Paradoxalmente, o império da televisão é o reino da invisibilidade, retirado
do espaço (público) onde se tece a teia das relações de poder que determinam, para
cada um, seu lugar, sua história e sua importância nesta vida. A privacidade doméstica
é o reino onde deveria imperar, feliz, o sujeito consumidor da publicidade, cercado
das comodidades e das engenhocas que ele supostamente deveria ser capaz de
comprar mas na estrita privacidade, ele praticamente não existe. A televisão é a
grande mediadora entre estes dois espaços, uma mediadora tão poderosa que chega a
abarcar a cena pública que a princípio deveria simplesmente transmitir.
Acrescentaríamos aos argumentos de Kehl que não é somente a televisão que ocupa
este espaço de mediadora, apesar de ser, em especial em países como o Brasil, a mais
―eficaz‖; mas é à ―Imagem‖ (incorporando outros meios e outros instrumentos), de forma
mais abrangente que deveria ser creditado este papel.
Assim, em se referindo à estetização do cotidiano, diríamos que algumas relações que
poderiam ser consideradas como estéticas (seja através do belo, do cômico, do trágico e etc),
perdem qualquer conotação estética ao serem incorporadas ao cotidiano, como forma de
torná-lo espetacular, desta forma, a estetização do cotidiano é também, ao mesmo tempo, a
banalização de elementos estéticos. Um exemplo que nos parece interessante pra ilustrar o
que afirmamos é a relação estabelecida atualmente com o ―nu‖. A nudez perde qualquer
conotação artística e estética e transforma-se em um elemento banal ao ser incorporado,
através de programas de TV, de revistas e propagandas apelativas etc, ao cotidiano dos
indivíduos. Entendemos haver uma desestetização do artístico, no sentido de que, no
205
capitalismo, sob a mediação do dinheiro, a assimilação de ―elementos estéticos‖ ao cotidiano
acaba por esvaziar o conteúdo estético destes mesmos elementos
149
.
Por que este movimento se caracterizaria como reificado?
Na sociedade burguesa, diz Heller, ―homem‖ e ―mundo‖ se separam de tal forma que
o homem nasce fora da comunidade e pode viver por toda a sua vida fora dela. A sociedade
burguesa elevou o individualismo a um grau jamais visto antes. Por outro lado, essa mesma
sociedade produz o ―homem massificado‖, o homem que pensa igual, que se veste igual, que
está na moda, o ―homem-coisa‖. Neste sentido, é interessante a assertiva de Adorno e
Horkheimer (1969: 189/0) ao dizerem que: ―A particularidade do Eu é um produto
patenteado, que depende da situação social e que é apresentado como natural‖. Se a produção
em massa parecia o único caminho para se chegar a tal padronização, hoje outros
elementos, incorporados a este, presentes na apropriação do tempo e do espaço, na estetização
da mercadoria e na mercantilização da arte, que permite tal padronização. A ―estetização do
cotidiano‖ é o outro lado do esvaziamento da estética propriamente dita.
Qual o impacto que estes elementos têm no cotidiano e no tempo dos indivíduos
contemporâneos? Em reportagem da Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada ―A
hipermassificação e a destruição do indivíduo‖ Stiegler (fevereiro; 2008: 34) se pergunta: ―O
‗tempo livre‘ é de fato assim tão livre? Esse tempo, saturado de produtos culturais, impede
que cada qual se diferencie por escolhas próprias. E, levando a uma perda generalizada de
individuação, engendra rebanhos de seres em permanente e angustiante mal-estar rebanhos
que se aproximam cada vez mais da horda furiosa‖. Ao que o próprio autor responde: ―As
indústrias culturais formam, com as indústrias em geral, um sistema cuja função consiste em
fabricar comportamentos de consumo e massificar os modos de vida‖ (ibidem).
Essa função das indústrias culturais se espalhou por todos os ―meios e mediações‖
construídos como linguagem capitalista, e está, como apontamos anteriormente, não somente
na publicidade que induz a compra da mercadoria, mas na própria mercadoria, não somente
nos programas de TV, mas no comportamento dos atores, dos apresentadores, fora da TV. Em
relação a este último exemplo, é interessante observar que praticamente todos os
149
Em algumas culturas antigas, segundo Vásquez (1999) era possível que elementos considerados estéticos na
modernidade fizessem parte do cotidiano das pessoas, isto porque não havia uma autonomia do artístico e os
objetos eram produzidos com uma finalidade útil (mesmo que esta utilidade fosse ligada ao misticismo), é
assim que podemos observar a elaboração de utensílios domésticos, por exemplo, com desenhos, pinturas ou
outras manifestações, hoje consideradas artísticas, mas que à época eram produzidas sem esta conotação.
206
apresentadores de TV, atores de telenovelas e de programas de auditório, dentre outros
similares que assinam contrato de exclusividade com as televisões brasileiras têm o
compromisso, às vezes contratual, de assumir um comportamento determinado (pela
emissora) em tempo integral, ou seja, mesmo fora do ar. Este me parece um exemplo
interessante de espetacularização da vida. Assim, a espetacularização da vida cotidiana dos
indivíduos sociais que não são e não se reproduzem através da celebridade é uma importante
expressão do que chamamos estetização do cotidiano.
Por outro lado, a mercantilização das relações cotidianas e da própria vida dos
indivíduos se concretiza a partir da apropriação do ―tempo cotidiano‖ e do ―tempo livre‖ pelo
capital. Esta apropriação se tanto pela ―captura da subjetividade‖ dos indivíduos quanto
pela venda de ―blocos de tempo consumíveis‖ via indústrias do lazer e do entretenimento.
O cotidiano é estetizado, porque antes elementos das relações sociais se tornaram
passiveis de serem mercantilizados e porque o próprio eu, como nos indica Birman (2001: 85)
é estetizado. O indivíduo estetizado se constrói a partir das culturas do narcisismo e do
espetáculo, culturas que constroem ―um modelo de subjetividade em que silenciam as
possibilidades de reinvenção do sujeito e do mundo‖ e, portanto, culminam na constituição de
sujeitos que perderam a dimensão autêntica do desejo e sucumbiram ―frente a exaltação dos
emblemas narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e de espetáculo
150
‖.
Abordaremos no próximo item alguns elementos do que estamos chamando de massificação
de subjetividades.
150
Ao falar do papel atual da psicanálise Birman (2001: 169/170) diz que ―Não é por acaso que a psicanálise
vem perdendo terreno e importância na era pós-moderna. Com efeito, a experiência psicanalítica se contrapõe,
em todos os seus detalhes, aos valores que orientam a cultura do narcisismo e do espetáculo, na medida em
que a emergência dos universos do inconsciente e da fragmentação pulsional, pressupõe a ruptura do sujeito
com o eixo narcísico do eu. Conduzir o sujeito ao encontro incerto e imponderável de seu desejo faz com que
ele, necessariamente siga trilhas opostas ao projeto mundano do espetáculo e da performance‖.
207
6.3. A massificação de subjetividades ou de como ser igual a todos com o intuito de se
sentir diferente.
Com que inocência demito-me de ser
eu que era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Carlos Drummond de Andrade (do poema ―Eu etiqueta‖)
Uma das formas mais eficientes de massificação de subjetividades é, certamente, a
indústria cultural. Dentre outras coisas, porque esta se ocupa de um tempo supostamente livre,
um tempo onde o indivíduo se permitia sonhar e depositar ali seus desejos e fantasias. O que
nos interessa resgatar é este movimento de ―captura do sujeito‖ que prevalece na indústria
cultural. Para Horkheimer e Adorno (1969: 172) ―A verdade é que a força da indústria
cultural reside em seu acordo com as necessidades criadas e não no simples contraste quanto a
estas, seja mesmo o contraste formado pela onipotência face à impotência‖.
A indústria cultural permite, em outros termos, que o capital se aproprie de forma
eficiente (enquanto valorização do capital) do tempo do não trabalho e crie a partir de sua
padronização a possibilidade de vendê-lo como ―blocos de tempo de entretenimento
massificados.
Ao se referirem a um dos produtos da indústria cultural (o cinema) Horkheimer e
Adorno (1969: 162/3) destacam que ―O mundo inteiro passou pelo crivo da indústria cultural.
A velha experiência do expectador cinematográfico para quem a rua de fora parece a
continuação do espetáculo acabado de ver pois que este quer precisamente reproduzir de
modo exato o mundo perceptivo de todo dia tornou-se o critério da produção.‖ Esta
simbiose entre o vivido e a imagem provoca uma identificação subjetiva com o que é visto e
uma massificação de gostos jamais vistos. Assim, ―Quanto mais densa e integral a duplicação
dos objetos empíricos por parte de suas técnicas tanto mais fácil fazer crer que o mundo de
fora é o simples prolongamento daquele que se acaba de ver no cinema‖. (Idem).
Interessante notar que o ―telespectador‖ que busca uma fuga da vida cotidiana,
encontra no seu prolongamento ―espetacular‖ a sua resposta e se contenta com esta. Isto
pode ser explicado pela necessidade que se cria anteriormente não de mudança da realidade,
mas de consumo de uma imagem que lhes pareça dar sentido ao que se vive cotidianamente,
208
qualquer imagem que não lhes exija esforço algum, nem mesmo de pensar sobre ela
151
. Nestes
termos Horkheimer e Adorno (1969: 163) acrescentam: ―A vida tendencialmente, não deve
mais poder se distinguir do filme. Enquanto este, superando de fato o teatro ilusionista, não
deixa à fantasia e ao pensamento dos espectadores qualquer dimensão na qual possam
sempre no âmbito da obra cinematográfica, mas desvinculados dos seus dados puros se
mover e se ampliar por conta própria sem que percam o fio e, ao mesmo tempo, exercita as
próprias vítimas em identificá-lo com a realidade‖.
Assim, esta capacidade de ―atrofiamento do pensar‖ que o fluxo de imagens produz
(não qualquer imagem, nem qualquer filme, estamos aqui nos referindo aos que são
especialmente produzidos para isso) é um elemento fundamental da massificação cultural.
Nestes termos:
A atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural de hoje não tem
necessidade de ser explicada em termos psicológicos. Os próprios produtos, desde o
mais típico, o filme sonoro, paralisam aquelas faculdades pela sua própria constituição
objetiva. Eles são feitos de modo que a sua apreensão adequada se exige, por um lado,
rapidez de percepção, capacidade de observação e competência específica, por outro
lado é feita de modo a vetar, de fato, a atividade mental do espectador, se ele não
quiser perder os fatos que, rapidamente, se desenrolam à sua frente. É uma tensão tão
automática que nos casos individuais não há sequer necessidade de ser atualizado para
que afaste a imaginação. Aquele que se mostra de tal forma absorvido pelo universo
do filme, gestos, imagens, palavras a ponto de não ser capaz de lhe acrescentar
aquilo que lhe tornaria um filme não estará, necessariamente por isso, no ato da
representação, ocupado com os efeitos particulares da fita. Os outros filmes e produtos
culturais que necessariamente deve conhecer, tornam-lhe tão familiares as provas de
atenção requeridas que estas se automatizam. A violência da sociedade industrial
opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem estar
certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração. (Horkheimer
e Adorno, 1969: 163).
Estes aspectos alienantes destacados pelos autores sobre os produtos da indústria
cultural são mais evidentes na contemporaneidade quando a própria indústria lança mão de
recursos psicologizantes resultados de pesquisas que envolvem, sobretudo, as neurociências,
para chegar, através da publicidade, da telenovela, do vídeo de forma geral no cotidiano e na
subjetividade dos indivíduos.
151
Chauí (2006: 51/2) assinala em suas considerações sobre os meios de massa, em ―Simulacro e poder‖, que
estes ―produzem dois efeitos em nossas mentes: a dispersão da atenção e a infantilização‖, além de
transmitirem, como nos casos das telenovelas brasileiras, informações que operam reforçando ―o senso comum
social, mantendo a suposta clareza da distinção entre o bem e o mal, a naturalização da hierarquia social e da
pobreza, o desejo de ‗subir na vida‘, a recompensa dos bons e a punição dos maus‖.
209
A mercantilização do tempo livre é organizada, gerenciada e controlada pela indústria
do lazer e entretenimento, que oferece ―blocos de tempo‖ consumíveis a determinados grupos
(de acordo com a classe a qual pertencem estes grupos). É assim que:
Produzido e organizado pelas indústrias culturais e do entretenimento, o lazer forma o
que Gilles Deleuze chamou de as sociedades de controle. Estas desenvolvem um
capitalismo cultural e de serviços que fabrica modos e estilos de vida, transforma a
vida cotidiana segundo seus interesses imediatos, padroniza as existências pelo viés
dos ―conceitos de marketing‖. Como este, por exemplo, do life-time value, que
designa o valor economicamente calculável do tempo de vida de um indivíduo, cujo
valor intrínseco é dessingularizado e desindividualizado. (Stiegler; 2008: 34).
O alcance ideológico da indústria cultural e, mesmo de forma mais específica, da
indústria do lazer e entretenimento, está para além daqueles que tem poder aquisitivo para
consumir seus produtos. Em relação às publicidades das grandes corporações que apostaram
na relação direta com esta indústria para divulgar seus produtos, o objetivo é alcançar o maior
número de pessoas - consumidoras ou não, é divulgar uma ideologia: o marketing do estilo de
vida tem como objetivo muito mais que vender determinados produtos de marca, mas também
divulgar a ―identidade de marca‖ como parte do cotidiano dos indivíduos e de forma mais
geral a ideologia capitalista.
Assim, são grandes os efeitos da expansão dos objetos da cultura, produzidos em série
para grandes massas urbanas, sobre a subjetividade contemporânea e estes ―são indissociáveis
da produção e transmissão do que chamamos de ideologia, de modo que afetam não apenas os
indivíduos isolados: dizem respeito ao laço social‖. (Kehl, 2004: 43).
Maria Rita Kehl (In Bucci e Kehl, 2004: 44) destaca como a TV tem papel importante
neste processo de captura da subjetividade, tanto pela disseminação ideológica propriamente
dita quanto por possibilitar o consumo de imagens de forma massificada. Assim, destaca
Kehl, ―a alienação do trabalhador completa-se na sua transformação em consumidor. Ainda
quando não consome as (outras) mercadorias propagandeadas pelos meios de comunicação,
consome as imagens que a indústria produz para seu lazer. Consome, aqui, não quer dizer
apenas que o trabalhador contempla essas imagens, mas que se identifica com elas, espelho
espetacular de sua vida empobrecida‖.
Para que o indivíduo (consumidor ou não) se identifique com esta ―imagem
empobrecida‖ foi necessário que as formas das subjetividades contemporâneas fossem
constituídas a partir das culturas empobrecidas do narcisismo e do espetáculo. E é por este
motivo, que o ―complexo de instrumentos de estetização da mercadoria‖ e os meios de
disseminação da ideologia burguesa encontram ―solo‖ no cotidiano dos sujeitos
210
contemporâneos, inclusive, das classes trabalhadoras. Neste sentido, Chauí (2006: 52/3)
afirma que os meios de comunicação de massa prometem e oferecem gratificação instantânea
e o fazem criando em nós ―os desejos e oferecendo produtos (publicidade e programação)
para satisfazê-los‖. Ao que acrescenta Chauí que ―A cultura satisfaz se temos paciência para
compreendê-la e decifra-la. Exige maturidade. Os meios de comunicação nos satisfazem
porque nada nos pedem, senão que permaneçamos para sempre infantis‖ (Idem), o que é
muito diríamos. Desta forma;
A destruição da capacidade de concentração e a infantilização conduzem a um terceiro
efeito: o estímulo ao narcisismo, pois as imagens são produzidas e transmitidas para
repetir sempre a mesma mensagem: ‗eu sou você‘. A tela se oferece como um
gigantesco espelho no qual a única mensagem refletida é a nossa, tal como produzida
pela programação e pela propaganda. Em outras palavras, a imagem não é uma
mediação, um signo que nos remeta a uma realidade distinta de nós, mas instaura uma
relação imediata conosco, e essa relação pode ser imediata se é uma relação de
identificação. (Chauí, 2006: 53).
Desta forma, o que tentamos elucidar como um dos argumentos de nossa tese é que
um conjunto de necessidades criadas atualmente pelo capitalismo se realiza tanto pelo
consumo de mercadorias tradicionalmente produzidas (os bens de consumo tradicionais”,
por exemplo) quanto pelo consumo da imagem, do estilo de vida, da vida do outro
celebridade -, do “consumo do outro”, estas também mercadorias singulares. Desta forma, as
próprias necessidades tornam-se mercantis e elas mesmas têm que ser produzidas e atendidas
via compra e venda. Dizer que as necessidades se tornam mercantis implica em considerá-las
como sendo produzidas através de um processo que envolve diretamente a relação
capital/trabalho e a subjugação do trabalhador, aqui, não enquanto força de trabalho, mas
também enquanto subjetividade. Neste movimento é que se massificam as subjetividades
contemporâneas e esvazia-se o sujeito da sua dimensão de desejo como impulsionador da
busca por experiências autênticas e não mercantis.
Passemos adiante ao debate sobre a criação do que estamos chamando de ―campo
especial de necessidades‖.
211
6.4.Criação de um campo especial de necessidades a partir de elementos dos desejos e
fantasias dos homens contemporâneos.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Carlos Drummond de Andrade (do poema ―Eu Etiqueta‖)
Como apresentamos nos capítulos anteriores a criação de um campo especial de
necessidades a partir de elementos dos desejos e fantasias dos homens contemporâneos
constitui hoje um pré-requisito para a realização do valor mercantil produzido e funciona
como disseminador da ideologia capitalista.
Chamamos de ―campo especial de necessidades‖ a um conjunto de necessidades que
vem sendo criado na fase tardia do capital e que não diz respeito (diretamente) nem às
necessidades básicas (as ligadas ao que Heller chama de objetivações em si), nem tampouco
às necessidades voltadas para as objetivações genéricas, que implicariam uma mediação entre
o particular e o gênero humano. As necessidades deste ―campo especial correspondem às
que são criadas a partir da apropriação de elementos dos desejos e fantasias dos homens
contemporâneos e direcionadas ao consumo de mercadorias diversificadas (desde as
correspondentes à subsistência até às de lazer e entretenimento). Entretanto, estas
necessidades, mesmo sendo necessidades alienadas, que surgem dentro de um processo de
alienação, de estranhamento dos próprios desejos, fantasias e sentimentos dos indivíduos
captados e re-significados pelo capital, se configuram como necessidades do cotidiano,
adentram o dia-a-dia dos homens burgueses, de forma diferenciada, de acordo com as classes
sociais e se tornam parte da vida de cada um. Portanto, o ―desejo‖ de consumo de
determinado bem, de determinado estilo de vida, da felicidade do outro, de um corpo
esculpido via cirurgia plástica é muito mais que uma opção individual, faz parte de um
complexo constituído via elementos presentes, sobretudo, no fetichismo da mercadoria.
212
Também não podemos considerá-las como ―falsas necessidades‖, elas existem no cotidiano
dos indivíduos, mas foram criadas a partir de processos alienantes.
Ao afirmamos que este ―campo especial‖ está ligado a elementos dos desejos e
fantasias não significa que as necessidades que surgem a partir dele se satisfaçam idealmente:
estas necessidades podem ter como ―objeto de desejo‖ um eletrodoméstico específico, um
celular, um tênis, um carro, qualquer outro objeto, ou simplesmente, o desejo de viver a vida
da celebridade, de ser igual ao ator e atriz da telenovela, de ter a família do personagem do
filme holliwoodiano, de ter um marido igual ao da atriz x, o corpo da atriz y e assim por
diante.
O que determina a diferença destas necessidades para as criadas até então, em outras
fases do capitalismo, é o seu conteúdo. A sua satisfação promete uma experiência singular ao
indivíduo, experiência que está ligada de forma direta aos seus desejos e fantasias. Como
apontam Kehl (2004) e Birman (2001) esta “experiência singular” está ligada ao gozo e,
além disso, promete preencher o “vazio” ou eliminar o “mal-estar” que são expressões das
subjetividades contemporâneas e para isso, reforçam e mantém o espetáculo” e a
“performance” dos sujeito, seu narcisismo.
Neste espaço vigora o ―imperativo do gozo‖, a performancee o espetáculo como as
linguagens faladas pelas mercadorias, pelos programas de TV, pelos filmes, pelas telenovelas.
Observamos como se entrecruzam nesta fase do capitalismo, uma ―inflação narcísica‖
e uma sobrevalorização do gozo como partes do ―estilo de vida‖ do no limite‖. Assim ―com
uma oferta infinita de bens, o sujeito se deixa capturar por objetos de desejo, sonhos de
consumo. O narcisismo, essa paixão da imagem, com os recursos oferecidos pela ciência hoje,
atingia sua culminância com a perspectiva (ou realidade?) do aparecimento de clones: a
geração de outras criaturas à nossa imagem e semelhança. Dificilmente encontraríamos outra
expressão tão extrema de narcisismo‖. (Edler; 2008: 93).
A ―inflação narcísica‖ e o ―imperativo do gozo‖ tem também o seu revés. Se tudo é
possível e ―eu‖ não consigo, é porque ―eu‖ é que não posso, sou ―um fracassado‖. Este é um
espaço profícuo para as diversas doenças psicossomáticas, para as depressões e neuroses
diversas. Assim:
A cultura do consumo incide sobre o sujeito, imprimindo a dimensão imaginária
extraordinária amplitude. E na referencia imaginária, espetacular por excelência, o
sujeito oscila entre a dimensão da onipotência, a condição de júbilo, de triunfo
narcísico na qual a falta é negada, e seu oposto, a impotência, na qual ele está
completamente referido a essa falta. Um tipo, portanto, de oscilação entre extremos,
213
outro aspecto que encontramos na inflação do imaginário é a montagem ou eu ou o
outro , que reduz as possibilidades de contato com outros sujeitos à eliminação do
outro para criar seu próprio espaço, a relação competitiva por excelência. (Edler;
2008: 97).
A competição é, aliás, atualmente, uma das formas de se relacionar com o outro, não
no chamado ―mercado de trabalho‖ como uma ―imposição‖ do crescente desemprego, mas
como parte de outras relações que não são dentro da própria lógica capitalista, carentes deste
tipo de mediação. Assim: ―a obrigatoriedade da imagem de vencedor insustentável, mas
desejável do ponto de vista da demanda social só é possível mediante o uso de artifícios que
escamoteiam qualquer fragilidade‖. Não há, desta forma, espaço para os derrotados, como não
há para sentimentos como tristeza e dor. Qualquer instrumento capaz de anular a dor será bem
vindo, não é por acaso que o uso de medicamentos com esta finalidade seja cada vez mais
corriqueiro no cotidiano dos homens contemporâneos. É assim que, ainda segundo o autor
acima citado:
Nessa fase avançada do consumo, os sujeitos se deixam transformar em objeto: corpos
esculpidos prontos ao gozo rápido. A própria cultura promove na opinião de Daniele
Silvestre (1999) a obrigação de ser feliz, ou seja, a apresentação de uma imagem
positiva, forte, antenada, que consegue lidar com os acontecimentos da vida e superar
os obstáculos com facilidade. Observa ainda a autora que, nesse contexto, toda a
tristeza parece vergonhosa e mesmo injustificada, podendo facilmente ser
patologizada. A tristeza, o luto e a dor, antes legitimados pela cultura, perderam hoje,
sob o mandado do time is money, essa legitimidade e, consequentemente, o tempo
necessário à sua elaboração. A palavra depressão ganhou um sentido amplo, podendo
designar mal-estar, desconforto, perda, desapontamento, enfim, tudo o que possa
significar estar aquém da felicidade prometida pela publicidade e pelo mercado e
ainda, um mal a ser extirpado rapidamente para que não se transforme em obstáculo às
conquistas e não venha a depor contra a imagem do sujeito. (Edler; 2008: 98/9).
E ser feliz através do consumo de mercadorias implica atualmente em viver uma
experiência singular, única, prometida pela publicidade
152
.
A publicidade e a propaganda, dentre outros instrumentos, confluem para a criação do
que estou chamando aqui de ―campo subjetivo de necessidades‖, o reforça e faz com que o
indivíduo consuma determinada mercadoria ou imagem por acreditar que viverá essa
experiência singular prometida. Aqui destacamos que o meio que funciona de forma eficaz
como disseminador deste ―imperativo do gozo‖ é tanto a publicidade direta (propagandas de
152
Zizek, em palestra na UFRJ (13 de outubro de 2008. Ciclo Condição Humana) ao falar sobre a publicidade se
referia a três momentos desta: um primeiro até a década de 1950 onde se destacava a qualidade dos objetos,
um segundo até 1980, onde sobressaíam qualidades do sujeito, como, por exemplo, a inveja, o desejo, a raiva,
que provocaria no outro ao consumir determinada mercadoria e a fase atual onde a publicidade destaca a
possibilidade do indivíduo viver experiências expressivas ao consumir determinada mercadoria, não são,
segundo ele, nem as qualidades da mercadoria, nem os sentimentos que seu consumo desperta no outro, mas
uma experiência singular, de felicidade, em especial, de gozo, que as mercadorias prometem.
214
determinadas mercadorias) quanto a TV (o vídeo): os programas de auditório, as telenovelas,
os filmes ―televisivos‖, os programas de auto-ajuda, dentre outros do mesmo gênero. De
acordo com a classe social estes meios podem ter maior ou menor influência. Entre a
população de baixa renda, no Brasil, os programas de TV têm uma influência discutida por
diversos autores (cf. Bucci & Kehl; 2004), entre a classe média a influência maior está na
publicidade direta (via comerciais, outdoor, revistas especiais e etc.). Apontaremos adiante
elementos sobre estes dois meios.
Assim, as formas concretas de criação deste campo de necessidades, se dão,
sobretudo, mas não somente, através da publicidade das propagandas, do marketing, da
difusão da marca propriamente dita, a marca como um estilo e, além disso, através dos
programas de TV que ditam (autorizam, justificam) padrões de comportamento a serem
seguidos. O consumo dos produtos da indústria cultural constitui-se em impulsionador da
criação deste ―campo especial de necessidades‖ na fase tardia do capitalismo (observa-se
aqui, como nos indica Marx, a produção determinando o consumo e o consumo determinando
a produção de novas necessidades e mercadorias).
Este processo invade o cotidiano dos homens comuns e faz deles adeptos de uma
―Imagem‖ que eles acreditam ser de sua própria existência o que facilita a ―padronização de
comportamentos‖ e a aceitação do status quo.
6.4.1. Propagandas “determinando” comportamentos: que linguagem falam as
mercadorias na contemporaneidade?
O anúncio de 30 segundos na TV é a mais poderosa forma de comunicação
que o homem criou. Você fica ali sentado na sua poltrona. Passivo, nada
para dizer. E fora as pessoas que estão produzindo comerciais fantásticos.
Eles são os poderosos produtores de informação e idéias. E as idéias nem
boas são. É somente propaganda para cultura de consumo. Você passa a
achar que felicidade é comprar, principalmente no natal. Vamos sair e ir aos
shoppings e comprar mesmo, sabe? (Fala do filme Surplus).
Neste item buscamos abordar, a partir de alguns exemplos, como a propaganda
153
se
utiliza de elementos subjetivos para ―chegar‖ ao consumidor, para falar a mesma linguagem
que ele e assim adquirir sentido em sua vida, reforçando a necessidade de determinada
153
Utilizamos o exemplo das propagandas, por entendermos que os elementos contidos nos exemplos abordados
nos permitem uma análise de outros meios.
215
mercadoria, ―estilo de vida‖ ou ―imagem‖. O objetivo é demonstrar como a propaganda, uma
das expressões contemporâneas da Imagem‖, contribui para a criação de um campo especial
de necessidades.
A ―Folha de São Paulo‖ publica anualmente uma pesquisa
154
realizada desde 1991
pelo Datafolha que revela quais são as marcas mais lembradas pela população brasileira.
Antes de nos determos nos resultados da pesquisa, gostaríamos de ressaltar como o
―monopólio da memória‖ é um aspecto fundamental na difusão das marcas. A lembrança de
uma marca significa a possibilidade de esta ser ouvida a qualquer momento pelo indivíduo
que guardou seus registros em sua memória, de que os ―apelos sensuais‖ das mercadorias que
levam aquela marca serão ouvidos e seguidos pelos consumidores.
A pesquisa envolve várias categorias, que vão de adoçantes a shampoo. Ao todo são
43 categorias, além das duas citadas, têm algumas como: aparelho de TV, azeite de oliva,
banco, carro, cartão de crédito, chocolate, lavadora de roupas, leite, margarina, celular, pasta
de dente, plano de saúde, refrigerante, seguro, sorvete e supermercado.
A partir da pesquisa, a Folha obtém e publica como resultado o Top of Mind, que
inclui as marcas mais lembradas das categorias apontadas pela própria pesquisa, utilizando o
Awareness, que incluem marcas da categoria lembrada espontaneamente
155
, como fator de
desempate. O universo da pesquisa é constituído por brasileiros com 16 anos ou mais e
incluiu ao todo 2.500 entrevistas em 120 municípios
156
.
O que faz com que uma marca seja lembrada?
apontamos na discussão sobre a ―estética da mercadoria‖ como as pesquisas, em
especial no campo das Neurociências vem sendo usadas (apropriados seus resultados) com
esse intuito: o ―monopólio da memória‖ dos indivíduos. Desta forma, uma marca é lembrada
porque, antes, o indivíduo foi bombardeado com milhares de informações sobre esta marca,
informações visíveis ou não, ou seja, quando em algum momento conseguiu penetrar no
154
In Folha Online Especial 2007 Top of Mind (www.folhaonline.com.br, em 31/10/2007. 14: 25). Neste
item as citações que têm como referência o ―Folha On line‖ dizem respeito às informações contidas nesta
publicação especial capturada na internet na data acima.
155
Tivemos acesso apenas ao primeiro resultado. Esta pesquisa vem sendo realizada desde 1991.
156
Ressaltamos que não realizaremos uma análise da pesquisa como um todo, apenas utilizaremos alguns dados
para exemplificar os argumentos que aqui estamos desenvolvendo. O acesso ao material ao qual recorremos
para esta análise foi livre (www.folhaonline.com.br, em 31/10/2007. 14: 25) e não constava nenhuma restrição
ao seu uso. O material publicado, o qual tivemos acesso, é um resumo da pesquisa, os resultados e análise, na
integra, não podem ser utilizados e tem um custo monetário a quem o desejar. Geralmente são comprados
pelas próprias empresas pesquisadas como material para análise e futuras projeções quanto ao produto que
comercializam.
216
cotidiano dos indivíduos e também por alguns momentos ―parecer‖ fazer parte dele, dar-lhe
sentido.
Uma marca é lembrada, porque foi cuidadosamente implantada em nossa memória.
Desta forma, quanto mais cedo começa o processo de monopolização da memória mais
eficiente será seu resultado. É assim que lojas e supermercados utilizam cada vez mais de toda
sorte de ―argumentos‖ temáticos e outros recursos: ―Para fidelizar seus futuros clientes‖, com
este intuito, é que são produzidas cada vez mais propagandas direcionadas ao ―público‖
infantil e adolescente.
Interessante é que a apresentação dos resultados da pesquisa da ―Folha‖, a que fiz
referência, tem o curioso título de ―Retratos da memória‖, título que nos remete de imediato
não à uma marca, mas a momentos de convivência familiares ou mesmo, de amigos do bairro,
algo do passado que saudosamente guardamos na memória.
Além de mostrar ―as marcas que não saem da cabeça dos brasileiros‖ (termos da
própria Folha), a pesquisa aponta que: ―Como a preocupação com o aquecimento global
também não sai da cabeça, o levantamento deste ano perguntou pela primeira vez aos
entrevistados quais as marcas identificadas por eles com a preservação do meio ambiente‖.
Donde se tem como resultados: ―Duas empresas nacionais, Ypê e Natura dividem o pódio
inédito com uma ONG (Greenpeace) e um órgão governamental (Ibama). A disputa é acirrada
mesmo considerando o critério de desempate (que conta as outras marcas de que as pessoas se
lembram além da primeira). Os resultados mostram ainda que o espaço a ser explorado nesse
segmento é grande 63% das pessoas não souberam citar nenhuma marca relacionada ao
tema‖. (www.folhaonline.com.br, 31/10/2007. 14: 25).
Quando buscamos as análises que os próprios jornalistas da Folha fazem sobre a
―Briga pelo prêmio verde‖ que coloca um órgão governamental ao lado de uma fabricante de
produtos de limpeza e higiene (que ironicamente está entre os grandes poluentes do meio
ambiente) lemos:
Uma gota de água cai lentamente de uma folha e, quando desaparece, lugar a uma
plantinha, que vai crescendo até virá uma árvore, mais precisamente, um ipê. Tudo
isso, em meio a mensagem ―Cuidar da casa, da vida, do planeta‖. Essa é a recepção
que o internauta recebe ao entrar no site do programa Florestal do Futuro, que a Ypê
lançou neste ano em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica. (Renata de
Gáspari Valdejão. In Folha...).
Como destacamos anteriormente, a imagem, o reflexo, parece assumir o lugar do
real e o que é lembrado através da marca (propagandas ―verdes‖) atribui veracidade ao que
217
não existe: um real investimento e preocupação na preservação do meio ambiente. Em
comentário sobre os resultados da pesquisa e, sobretudo, a respeito dos 63% que ainda não se
lembravam de nenhuma marca ao serem interrogados sobre a questão, o professor de
publicidade da USP, Victor Arquino diz: ―Temos que reconhecer que a questão ambiental
ainda não faz parte das prioridades das pessoas (...) e o que é prioridade, ganha força para se
associar às percepções cognitivas e abre espaço na memória.‖ (www.folhaonline.com.br,
31/10/2007. 14: 25).
Com a percepção de que se pode dizer mais do que se faz e isto tem um retorno
positivo em termos de imagem e de lucro a Ypê e a Natura, líderes na pesquisa citada,
afirmam que continuarão investindo na ―preservação do meio ambiente‖, ou melhor, na
―imagem verde‖. Em relação à Natura, que segundo os especialistas ―nasceu dentro do
espírito ambientalista‖, são apresentados na mesma pesquisa os resultados monetários de ser
associada à preservação do meio ambiente:
Todo esse investimento se refletiu de várias maneiras, entre elas, na Bolsa de valores:
as ações da empresa tiveram valorização de 191,32% desde o início de sua negociação
na Bovespa, em 26 de maio de 2004. Em quatro anos, de 2002 a 2006, o número total
de itens de revenda da companhia saltou de 98 milhões para 241 milhões, e a
quantidade de colaboradores
157
evoluiu de 2.800 para 4.300. Atualmente, são mais de
5.100. (www.folhaonline.com.br, em 31/10/2007. 14: 25. pg. 1 de 2).
Para mostrar que a Natura não se ―preocupa‖ com o meio ambiente, mas também
com o bem-estar das pessoas, os representantes da marca destacam à Folha (ibid: 2 de 2): ―A
divulgação da Marca, que bateu exclusivamente na tecla da preservação ambiental, hoje
incorpora também os conceitos de bem-estar pessoal e relacionamento. Dois exemplos são as
campanhas ―Mulher bonita de verdade‖ (registrando que a beleza ―vem de dentro‖) e a do
perfume Humor: ―Rir a dois é melhor que rir sozinho‖. Estes dois exemplos ilustram de forma
interessante como a marca investe no ―estilo de vida‖ para capturar a subjetividade dos
indivíduos. Aqui observa-se que as duas campanhas publicitárias, referidas acima, dizem
verbalmente o contrário da mensagem que de fato passam ao seu receptor: ―a beleza vem de
dentro‖, mas para de fato se sentir bela é necessário usar os produtos da Natura, portanto a
beleza não vem de dentro. E, a alegria (a dois, nos momentos íntimos) pode ser proporcionada
não pela companhia (como parece dizer a campanha), mas pelo perfume Humor, pela
incorporação de uma mercadoria entre os amantes.
157
Colaboradores são as pessoas que se dedicam (às vezes integralmente) à venda dos produtos Natura,
trabalhadores sem nenhum vínculo empregatício e nenhum direito trabalhista. A natura também tem se
apropriado de um conhecimento milenar sobre componentes naturais extraídos de plantas, frutos, sementes da
Amazônia e apresentado ao mercado como um descobrimento da floresta e suas potencialidades.
218
Além destas duas marcas, vinculadas à preservação ambiental, as outras mais
lembradas pelos brasileiros foram de acordo com as categorias, as seguintes: ―O Top
performance da categoria também foi repartido. Brastemp (geladeira) e Caixa Econômica
Federal (poupança) subiram seis pontos cada uma em relação ao levantamento do ano
passado‖. Os primeiros lugares nos tops Classe A e Feminino ficaram com a Brastemp e a
Seda, respectivamente e Sorriso que ficou com o Top Teen. Estas foram as marcas ―que
tiveram desempenho importante entre os mais ricos, as mulheres e os jovens de 16 a 20 anos‖.
O Top do Top, entretanto, que é o grande prêmio, pelos nomes mais lembrados pelos
brasileiros ficou com a Omo e a Coca-cola. A respeito do sucesso da marca Omo -se na
publicação da Folha (www.folhaonline.com.br, em 31/10/2007. 14: 25. pg. 1 de 6. Grifos
nosso):
Desde o slogan de apresentação do produto: ―Onde Omo cai a sujeira sai‖, de 1957, a
empresa passou anos martelando na tecla da inovação antes de perceber que seu maior
tesouro era a relação emocional dos consumidores com a marca. Segundo o diretor do
centro de Inovação e criatividade da ESPM (Escola Superior de Propaganda e
Marketing), Paulo Sérgio Quartiermeister, a combinação desses dois fatores, inovação
e relação emocional, é uma receita de sucesso.
Quanto à Coca-cola, ―O diretor de Marketing da Coca-cola Brasil, Ricardo Forte, diz
que, além de oferecer o melhor produto que existe‘, a coca-cola gelada, a marca investe
muito para entender o consumidor e seus desejos.‖ (Idem. Pg. 1 de 6. Grifos nosso).
O que de comum entre a forma como essas duas marcas chegam e se alojam na
memória dos indivíduos (consumidores ou não)? As estratégias que ambas usam, os slogans,
as propagandas que buscam, sobretudo, se aproximar dos indivíduos, decifrar seus desejos,
ludibriá-los: ―Transcender a lavanderia e tornar-se uma aliada da mãe no desenvolvimento
dos filhos é a plataforma sobre a qual, desde 2001, a Omo vem trabalhando sua
comunicação‖, -se ainda nos argumentos da empresa à Folha sobre o seu sucesso, ―além
disso, a empresa investiu em outras frentes, como a novela de época ―O profeta‖, da TV
Globo, em que um personagem deixou de oferecer enciclopédias de porta em porta para
vender Omo‖. Participar do cotidiano dos brasileiros, e fazer parte de sua memória é sem
dúvida, o desejo por trás das grandes marcas.
Ao se referir às campanhas da Coca-cola lemos (Idem. Pg. 5 de 6) ―A campanha ‗Viva
o lado Coca-cola da vidahavia obtido sucesso no exterior, onde a abordagem otimista do
cotidiano era empregada nas peças publicitárias desde 2005‖, além disso, ao se referir a
campanha do natal, destaca-se que esta ―buscava inspirar uma atitude positiva da vida e uma
abertura de horizontes e de possibilidades‖. E em um exemplo da ideologia contida nestas
219
campanhas e seu objetivo implícito lemos (Idem. Pg. 6 de 6): ―No começo de janeiro, a
corporação usou a música para uma nova abordagem que, dessa vez, tratava da fusão das
pessoas a partir de diferentes estilos musicais. Com uma linguagem de videoclipe, a assinatura
da campanha propunha que as diferenças fossem deixadas de lado para que todos
vivenciassem o ‗lado Coca-cola‘ da música‖.
Os publicitários têm consciência do seu alvo: os desejos dos consumidores e, não
medem esforços para atingi-lo. Ao dizer o que o consumidor quer ouvir a marca se torna uma
referência do cotidiano deste. Os exemplos abaixo são emblemáticos:
―A Brastemp é a empresa brasileira que anos trabalha melhor a construção da
marca. É muito inteligente na gestão da comunicação, se apropria muito bem dos
elementos da tomada de decisões emocionais‖. Afirma Carlos Ferreirinha, especialista
no negócio de luxo. (www.folhaonline.com.br, 31/10/2007. 14: 25).
Outro ponto importante, afirma Cadier, é que a comunicação da Brastemp trabalha a
marca como objeto de desejo. ―São produtos aspiracionais das classes A e B‖. (Idem).
―A Parmalat está trazendo ao ar o que tem de mais precioso em seu posicionamento de
comunicação: a ligação entre leite e afetividade, envolvendo crianças e a provedora,
que é a mãe. Tem tudo para dar certo‖, comenta Troiano. Na visão do consultor,
quando personagens retratam a alma de uma marca, têm sobrevida extensa. E enumera
exemplos: o baixinho da Kaiser, o boneco das Casas Bahia, o ator Carlos Moreno e a
Bombril, entre outros. (Idem).
Parece claro quando nos perguntamos qual o impacto do ―monopólio da memória‖
para as grandes marcas. A lembrança leva quase que automaticamente à preferência pelo
consumo e assim à realização do valor produzido, como já o indicamos, as mercadorias
produzidas no capitalismo têm que necessariamente ser consumidas, para que o ciclo se
reinicie
158
.
É com este intuito que, como nos indicam os analistas da pesquisa do Datafolha: ―A
disputa pela lembrança do consumidor vai muito além das gôndolas. Inclui expansão
constante, inovação, novos formatos, muita negociação com fornecedores, bons preços,
pesquisas, investimento em pessoal e atenção constante‖. (www.folhaonline.com.br,
31/10/2007. 14: 25. pg. 4 de 9). Aos que têm sua memória usurpada resta uma falsa
lembrança e a não percepção dos reais efeitos do uso de determinadas mercadorias.
158
Destacamos que a marca por si não garante que o ciclo de produção de determinada mercadoria se
complete, mas apenas incentiva, induz, um dos momentos deste: o consumo. Tanto é assim que em momentos
de crise, uma ―grande marca‖ (empresa portadora de uma marca referente) pode entrar em falência e deixar
como vestígios apenas ―a marca‖, seu nome, na ―memória dos consumidores‖. Este nos parece ser um
argumento aos que acreditam que a produção de mercadorias foi substituída pela produção de imagens.
220
Em se tratando de investimento em publicidade ―As casa Bahia investem 3% de seu
faturamento em comunicação. Em 2006, a empresa faturou R$ 11,5 bilhões. Logo, o
percentual para 2007 está estimado em R$ 345 milhões.‖ (Idem. Pg. 7 de 9). Ao se referir as
Casas Bahia lemos: ―o maior anunciante brasileiro, segundo levantamento do site Almanaque
Ibope, credita seu sucesso ao constante investimento no conhecimento sobre o consumidor e
na aplicação da estratégia nas ações de comunicação.‖ E este conhecimento é feito através de
―um estudo sobre hábitos e atitudes do consumidor, além da avaliação da imagem da marca,
realizada em 11 capitais, norteou a linha de comunicação‖. (Pg. 8 de 9).
Ao se referir ao primeiro lugar em Plano de saúde que ficou com a Unimed, que tem o
slogan ―O melhor plano de saúde é viver. O segundo melhor é Unimed‖, comenta Almir Aldir
Gentil, diretor de marketing e desenvolvimento da Unimed Brasil: ―Comunicação em saúde
antes era ambulância, helicóptero, grávida, perna quebrada. As pessoas não querem ficar
doentes, querem se felizes‖. (Idem. Pg. 5 de 8).
Nos comentários da Folha sobre os campeões na categoria transporte: ―Transporte:
Quilômetros de fidelidade‖ a interessante questão colocada pela própria Folha nos ajuda a
entender qual o papel hoje da comunicação na indução ao consumo: ―O que auxilia a marca a
ser mais lembrada: ter um bom produto ou uma boa campanha de divulgação?‖ Se pergunta a
Folha, e acrescenta: ―Um bom relacionamento pós-venda ou um produto que dure para
sempre?‖ ao que responde, a partir de um especialista no tema: ―Para Marcos Machado,
professor de gestão de marcas do MBA da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a
combinação desses fatores é importante, mas não é isso‖. Então, o que seria: ―O fato de
uma marca ser lembrada é fruto de um conjunto de ações em que a comunicação é o primeiro
passo, e apenas esse‖, lembra Machado. A consolidação se dá através do uso, da recompra, da
reutilização do produto, do estabelecimento de uma relação de fidelidade e lealdade. (Idem.
Pg. 1 de 6). Mas a comunicação não substitui o produto, por isso, ainda segundo Marcos
Machado: ―a boa comunicação dos produtos gera lembrança da marca, mas sem
experimentação não gera fidelidade. ‗essa relação se estabelece a partir de um produto ou
serviço (como um relacionamento pós-venda) que atenda expectativas do cliente‘‖. Em
relação ao objetivo das propagandas Chauí (2006: 38) assinala que:
Para ser eficaz, a propaganda deve realizar duas operações simultâneas: por um lado,
deve afirmar que o produto possui os valores estabelecidos pela sociedade em que se
encontra o consumidor (por exemplo, se a vida em família é muito valorizada os
produtos devem aparecer a serviço da mãe, do pai, dos filhos, da higiene e da beleza
do lar, da saúde das crianças, da felicidade conjugal etc.), e por outro, precisa
despertar desejos que o consumidor não possuía e que o produto não desperta
221
como, sobretudo, satisfaz (donde o slogan ‗sua satisfação garantida ou seu dinheiro de
volta‘).
Como é praticamente impossível atender as expectativas que são geradas pelas marcas
via propagandas, é necessário que os consumidores permaneçam o tempo todo no estágio de
espera, de expectativa de que podem ter a promessa feita pela propaganda cumprida, por isso
a necessidade de que as campanhas e os produtos se renovem constantemente.
6.4.2. Programas de TV: a promessa de felicidade como linguagem universal das
mercadorias
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade (do poema “Eu Etiqueta”)
Como apontamos acima, ao lado das propagandas e da publicidade de forma geral, que
divulgam mais diretamente a imagem das mercadorias o vídeo é um dos maiores responsáveis
pela criação do que chamamos aqui de campo subjetivo de necessidades especiais.
Segundo Jameson (2004: 93) a dominante cultural desta nova fase do capitalismo,
desta nova conjuntura econômica e social é o vídeo e suas manifestações correlatas, a
televisão comercial e o vídeo documental ou vídeo arte. Jameson chama a atenção para as
diferenças entre o cinema e o vídeo propriamente dito. Neste sentido, ele adverte que ―a
experiência da tela de cinema e de suas imagens hipnotizantes é característica e
fundamentalmente diferente da experiência do monitor de televisão (...)‖. Aqui nos interessam
em especial, algumas impressões de Jameson sobre a televisão e a abrangência de sua
―linguagem‖.
A respeito da televisão Jameson destaca que o conceito de ―fluxo total‖ de Raymond
Williams nos ajuda a entender ―o bloqueio do pensamento original ante essa sólida janelinha
contra a qual batemos a cabeça‖. Maria Rita Kehl (In Bucci e Kehl, 2004: 88) na discussão
sobre ―Televisão e violência do imaginário‖ também destaca este bloqueio do pensamento
que é produzido pela televisão como um dos elementos que induzem a ―passagem ao ato‖ e,
portanto, o que classifica como elementos para a violência do imaginário. Assim, para Kehl
222
(90-91): ―a produção imaginária oferece continuamente representantes para a satisfação do
desejo. Diante da TV ligada, isto é, diante de um fluxo contínuo de imagens que nos oferecem
o puro gozo, não é necessário pensar. (...)‖. Ao que acrescenta a autora: Isso não quer dizer
que as pessoas parem de pensar para sempre por efeito desse gozo imaginário, mas que, diante
do fluxo de imagens, paramos de pensar. E quanto mais o fluxo de imagens ocupa o espaço na
nossa vida real e na nossa vida psíquica, menos é convocado o pensamento‖ (Ibidem)
159
.
Segundo Chauí (2006: 45/6) a desinformação ―é o principal resultado da maioria dos
noticiários de rádio e televisão. Com efeito, de modo geral, as notícias são apresentadas de
maneira a impedir que o ouvinte e o espectador possam localizá-las no espaço e no tempo‖. A
―ausência de referencia espacial‖ ouatopia‖ e a ―ausência de referencia temporal‖ ou
acroniasão produzidos pela mídia como recursos de desinformação e alienação. Assim, no
primeiro caso ―as diferenças próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, baixo,
grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio e a tela de televisão tornam-se o único
espaço real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são
ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em
Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante‖ (Idem). No que se refere
a acronia‖, observa-se cada vez mais que os acontecimentos ―são relatados como se não
tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou
presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto
são objetos de transmissão e deixam de existir se não são transmitidos. Tem a existência de
um espetáculo e permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto
permanece o espetáculo de sua transmissão‖. (Idem). Estes elementos o emblemáticos nos
casos de violência transmitidos pelas TV‘s brasileiras nos últimos anos.
Para expressar a influência da TV na atualidade como determinante de padrões de
comportamento Bucci e Kehl (2004) usam o termo videologia, como uma referência ao
significado de ―mitologias‖ de Barthes. Como justificativa da terminologia os autores
159
Ao se referir ao imperativo do gozo Edler (2008: 103) destaca que: ―Para efeito de esclarecimento, vamos
nomear duas dentre as várias formas de gozo mencionadas por Lacan: o gozo sintomático, que, no caso,
estamos referindo as depressões contemporâneas, e o mais-de-gozar, que ilustra a condição de um gozo a
mais, um prazer levado a limites extremos, um jogo cujo objetivo seria conduzir o sujeito a correr o,
deliberado, de não sobreviver, ou ainda, de sobreviver por um triz, a vida por um fio. Álcool, sexo, drogas,
velocidade, violência contra si mesmo ou contra o outro, enfim, tudo o que possa trazer, como condimento
especial, a proximidade com a morte. Acreditamos que as toxicomanias sejam o exemplo mais ilustrativo,
embora não o único, dessa condição que reúne o consumo crescente, a insaciabilidade, o excesso, a busca pelo
êxtase, ainda que por um instante. Essa seria uma das modalidades de gozo mais difundidas na
contemporaneidade, que referimos anteriormente como partilhada por aqueles que entram na festa do
consumo e sorvem dela até a última gota‖.
223
afirmam (idem: 16): ―Vivemos em uma era em que tudo concorre para a imagem, para a
visibilidade e para a composição de sentidos no plano do olhar. É nessa perspectiva de que a
comunicação e mesmo a linguagem passam a necessitar do suporte das imagens num grau que
não se registrou em outro período histórico. Os mitos hoje, são olhados. São pura videologia‖.
A partir de Barthers também os autores indicam que a TV, assim como o mito, rouba a
fala dos sujeitos e lhe atribui um outro significado, assim esta fala roubada ―da
espontaneidade das práticas falantes que se instauram por ensaio e erro, entre os agentes
sociais, tentando simbolizar os aspectos do real que se apresentam‖, é devolvida em outro
espaço e outro tempo. Sobre estes dois aspectos discutiremos mais adiante. Desta forma
indicam Bucci e Kehl:
Ora, eis uma descrição nada ruim do que faz a televisão: rouba falas (verbais,
visuais, gestuais), todas falas ―naturais‖, e as devolve aos falantes. Como se ela
mesma, televisão, fosse uma falante o que aliás ela é, mas isso não vem ao caso. Uns
ainda crêem que a TV ―influencia‖ a platéia, como se ela desse ordens de conduta
para a platéia, como se fosse urdida, arquitetada, premeditada, num espaço exterior ao
da própria linguagem compartilhada entre os falantes. Não é bem isso. Se a TV
―influencia‖, ela influencia exatamente na medida em que precipita o mito, que
estava lá, na fala roubada, pressuposto. Em outras palavras, a TV só influencia porque
é o elo que industrializa a confecção do mito e o recoloca na comunidade falante. A
TV não manda ninguém fazer o que faz; antes autoriza, como espelho premonitório,
que seja feito o que já é feito. Autoriza e legitima práticas de linguagem que se tornam
confortáveis e indiscutíveis para a sociedade, pelo efeito da enorme circulação e da
constante repetição que ela promove. A TV sintetiza o mito. (Bucci e Kehl, 2004: 19).
Este movimento é exclusivo não da TV e da fala, mas extensivo a todas as formas
de publicidade que o capital utiliza para garantir a realização do valor produzido e a
disseminação da ideologia capitalista.
Desta forma, não só a fala é ―roubada‖, mas também elementos dos desejos e fantasias
dos sujeitos e, devolvidos de forma re-significada em outro espaço e tempo, o espaço e tempo
espetaculares. Esse ―roubo‖ é parte da dinâmica atual da produção da imagem e não um plano
arquitetado pelos agentes do capital. Ele se realiza, por vezes, através de instrumentos nem
sempre utilizados para esse fim, como por exemplo, as já citadas pesquisas das Neurociências,
outras vezes por meios criados para esse objetivo específico. Mas também se pela
―apropriação‖ das expressões culturais populares e de resistência, das simbologias anti-
capitalistas, das pesquisas de opinião pública, das pesquisas de mercado, dos brindes
comerciais, dos ―prêmios‖ oferecidos por supermercados, lojas etc.
Esse ―roubo‖ ocorre também, fundamentalmente, pela apropriação de fragmentos da
memória coletiva e sua devolução na composição de uma ―falsa história‖, que aparece como
224
verdade e identidade de um povo, um grupo, ou até uma classe (o que é feito, sobretudo, pelas
telenovelas e minisséries, no caso do Brasil). É espantoso como no Brasil parte da população
tem memória de alguns fatos históricos importantes que ocorreram no país através dos
fragmentos que aparecem (como verdade) nas novelas, minisséries e reportagens maquiadas.
Outro aspecto importante a destacar é que a TV não induz a um determinado
comportamento de forma mecânica, mas ela autoriza a realização de um comportamento que
fora criado, pelo menos enquanto necessidade. Este é um dos elementos que tentamos
resgatar na nossa tese: de que é a produção de necessidades que garante a aceitação de
padrões de comportamento e o consumo de determinadas mercadorias, neste último caso a
necessidade não tem como parâmetro exclusivo a qualidade da mercadoria (esta é cada vez
menos importante), mas a experiência particular, de gozo que esta promete proporcionar.
Um exemplo bastante emblemático do que afirmamos acima é a forma espetacular
como a TV vem tratando casos de extrema violência que ocorreram nos últimos anos no
Brasil e que foram televisionados e transmitidos ao vivo para todo o país. Estes casos
demonstram que havia a necessidade do público em olhar, assistir a uma violência real
como se fosse um filme, uma telenovela e de como este mesmo público tem uma posição de
―gozo‖ diante da violência como se de fato assistisse a uma ficção, porque na verdade, no
momento em que a TV o transforma em espetáculo lhe retira a conotação de real e lhe atribui
a ficcional, o que autoriza o espectador a vê-lo desta forma e não sentir culpa ou revolta.
Mesmo cabendo, nestes casos, críticas sobre o papel da mídia na transmissão e
espetacularização da violência, a questão mais importante a ser colocada é: quais elementos
históricos convergiram para a criação de necessidades tão sintomáticas da degradação
humana e da banalização do sofrimento do outro em tempos contemporâneos a
necessidade, neste caso, de ver, de assistir, de consumir a imagem do outro sendo violentado,
assassinado, destruído na sua condição de humano? E o que é mais assustador, sentir-se
tranqüilo e em alguns casos “contemplado” (compensado com a possibilidade de ter visto)
com o espetáculo.
A banalização e espetacularização da violência, que têm nas transmissões televisivas
seu ápice, tornaram-se um fato tão sintomático no Brasil que é comum em casos onde a mídia
faz uma cobertura nacional, intensa e massacrante, que pessoas se desloquem de distâncias
que chegam a milhares de quilômetros para participarem ao vivo do espetáculo. Foi assim,
com os últimos casos de violência televisionados no Brasil (em 2008). As transmissões ao
225
vivo, de seqüestros, prisões, assassinatos, enterros, nesses casos de grande cobertura da mídia,
sempre mostravam pessoas comuns que viajaram dias inteiros para participarem daquele
episódio, em alguns casos era patético o comportamento de auditório (com acenos, beijos,
recados para a câmara) que alguns destes participantes tinham em meio a uma cena de
violência, mas que a mídia (e a ―opinião pública‖) transformara em mais um espetáculo.
Além do caso do ônibus 174, emblemático como exemplo, temos vários outros mais
recentes, como o assassinato de uma criança pelo pai e pela madrasta (2008), o assassinato de
uma adolescente pelo ex-namorado em Santo André, no mês de outubro de 2008. Em todos
estes casos a dia bombardeou o telespectador com imagens que se assemelhavam a
transmissão de capítulos finais de uma telenovela (de uma ficção). Neste último caso, onde o
seqüestro da adolescente pelo ex-namorado teve como desfecho sua morte, fora televisionado
e transmitido para o todo o país, chegando inclusive a ter ao vivo entrevista do seqüestrador
enquanto este estava de posse da garota seqüestrada. Patético e emblemático, neste caso
também, foi a saída do hospital de uma das garotas que sobrevivera ao seqüestro. Depois de
passar por uma situação traumática e levar um tiro na face, a garota sai sorridente e acenando
para as câmeras como se estive em um programa de auditório, vivendo seus ―15 minutos‖ de
fama.
Esta imagem nos remete à ideologia que a mídia dissemina e que está impregnada em
nossa sociedade, a de viver o cotidiano de forma espetacular, de transformar o tempo e o
espaço do cotidiano em espetaculares. Assim, a mensagem é de que o espetáculo compensa a
dor, o trauma, até a violência. A situação traumática, o tiro na face, justifica-se com os
minutos de fama que tem, estes anulam os outros episódios. A transformação da dor, da
barbárie, do trauma em espetáculo os justifica e quem os de forma espetacular se isenta de
sentir culpa, revolta ou responsabilidade.
Kehl (In Bucci e kehl, 2004: 93) diz a respeito de um outro fato real televisionado, o
caso do ônibus 174: ―Ali no ônibus parado, com o seqüestrador que mostrava a arma e gritava
ameaças da janela para as câmaras e para os policiais que cercavam a área, cada um estava
representando sua própria cena. Imagem e ato. Como é que o testemunho da sociedade através
da televisão, em vez de funcionar para coibir o desfecho violento, funcionou justamente como
permissão para ele?A autora se pergunta: sem a cobertura da mídia teria o caso o mesmo
desfecho?
226
Entretanto, a questão a ser colocada é: queriam os “produtores” daquele espetáculo
(não os personagens, mas a mídia) e os telespectadores um outro desfecho? Se que a
população se envolveria tanto com a imagem que assistira ao vivo pela TV, como o
espetáculo da vida real se ele tivesse um ―final feliz‖ (neste caso nenhum um final, qualquer
que fosse poderia ser feliz), mas os telespectadores queriam um outro final ou, como em um
filme barato de terror, quanto mais sangue melhor? Não me arriscaria, neste caso, a uma
resposta pronta, mas entendo que a banalização da violência, da barbárie torna cada vez mais
os indivíduos propensos a vê-las como ―naturais‖ ou de forma ficcional, desde que não lhes
atinja diretamente. Por outro lado a inversão entre o real e o ficcional torna difícil distinguir
estes dois momentos quando se trata de ―eventos‖ transmitidos de forma espetacular pela
mídia.
Bucci (2004) traz um debate também destacado por Klein (2002), por Walquiria
Padilha (2006), dentre outros autores que é a transformação de ―meios‖ como: TV, internet,
Shopping, em espaços públicos ou pseudo-espaços públicos. Esta concepção é interessante
para se entender estes ―meios‖ não como puros transmissores de uma determinada mensagem.
Assim Bucci (2004: 30) destaca que a função fundamental dos meios de comunicação,
sobretudo dos meios eletrônicos é a de constituir e conformar o espaço público.
Que espaço e que tempo encerra a televisão? Bucci (2004: 31) destaca que ―A
televisão não mostra lugares, não traz lugares de longe para muito perto a televisão é um
lugar em si. Do mesmo modo, ela não supera os abismos de tempo entre os continentes com
suas transmissões na velocidade da luz: ela encerra um outro tempo‖. Acrescentaria aos
argumentos de Bucci, com o objetivo de não conferir ao tempo e ao espaço que comporta a
TV uma autonomia em relação aos processos sociais, que esta, a televisão, comporta um
tempo e um espaço que se coaduna com o tempo e o espaço da imagem espetacular, de acordo
com o fora apresentado anteriormente na citação de Chauí.
Mas que tempo e lugar são esses?
Para Bucci (2004: 31/2):
O lugar da TV, ou melhor, a TV como lugar, nada mais é que o novo espaço público,
ou uma esfera pública expandida. O exemplo brasileiro é um dos mais indicados do
mundo para quem quer observar os detalhes de como se a expansão da esfera
pública e, mais ainda, como se a sua constituição em novas bases. (...). A televisão
se tornou, a partir da década de 1960, o suporte do discurso, ou dos discursos que
identificam o Brasil para o Brasil. Pode-se mesmo dizer que a TV ajuda a dar o
formato da nossa democracia.
227
O que é patente no Brasil, em especial nas últimas décadas é que aquilo que não é
visto, ou melhor, aquilo que não é televisionado ―não existe‖, pelo menos não para a suposta
―opinião pública‖, esta também, cada vez mais uma construção midiática. Atualmente, de
acontecimentos públicos e em alguns casos privados (por exemplo, as jogadas de marketing
de celebridades decadentes que querem voltar à mídia, as fofocas da vida de atores, atrizes e
etc.) à atos políticos (de partidos, movimentos sociais), o que não é visto, que não tem sua
imagem divulgada (no mínimo na mídia local), aparentemente não tem registro histórico,
parecem não existir. O fetiche da imagem se impõe de forma assustadora e monopoliza cada
vez mais a memória dos indivíduos contemporâneos.
Quanto ao tempo da TV, este constitui uma nova dimensão de tempo, mas isto porque
o tempo assume também uma nova dimensão na contemporaneidade (tempo do capital
fetiche). Ao falar do espaço e do tempo da TV, Bucci (2004: 35) diz:
Se esse espaço não é mais o lugar histórico, nem identitário, nem relacional, o tempo
também deixa de ser um tempo cronológico. Observem que, vendo TV, temos a
sensação de que tudo ali é um gerúndio interminável e, outra vez, totalizante, ainda
que dissimulado em sua condição. Os eventos se sucedem não propriamente numa
sucessão, mas num acontecendo, num se sucedendo, na permanência de um, repito,
gerúndio que não tem começo nem fim. Esses fluxos em gerúndio prometem o torpor
ou o gozo e, em seu jorro, ininterrupto, proporcionam efetivamente um gozo estranho
e, ao mesmo tempo, familiar. O tempo da TV é um tempo sem passado, sem futuro. O
passado, quando emerge, emerge como presente. O futuro, quando vem à tela a
pretexto de uma previsão qualquer, põe-se como um ato que está acontecendo naquele
instante exato.
Neste espaço e tempo da TV, misturam-se realidade e ficção e o telespectador os
recebe da mesma forma, de forma espetacular. O real é banalizado e o ficcional assume ares
de realidade. Chauí (2006: 51) chama a atenção para esta inversão entre realidade e ficção
produzida pelos meios. Assim, ―Se o noticiário nos apresenta um mundo irreal, sem geografia
e sem história, sem causas nem conseqüências, descontínuo e fragmentado, em contrapartida
as telenovelas criam o sentimento de realidade‖.
Entendemos que o espaço e tempo que são expressos na TV, mas também nos meios
eletrônicos de forma geral e nas publicidades, têm um efeito de desconstrução da memória
individual e coletiva. Esta desconstrução deixa um vazio que funciona de maneira
diferenciada de acordo com a classe social e com os diversos segmentos dentro dela. Aqui
consideramos interessante a proposta de Jameson sobre ―mapa cognitivo‖. Abordaremos esta
questão nas nossas considerações finais.
228
De que forma este movimento contribui para a criação de um ―campo especial de
necessidades‖? Entendemos que estes processos que descrevemos nos itens acima já são em si
elementos que demonstram e reforçam a existência de necessidades diferenciadas das que
eram observadas há algumas décadas atrás. O espaço que a imagem espetacular ocupa na vida
cotidiana dos indivíduos, enquanto imagem consumida, só se justifica pela existência da
necessidade da própria imagem como portadora de sentido, de um sentido que os sujeitos
sociais não encontram na vida real. Claro está que para parcela pequena destes indivíduos,
os detentores dos meios de produção, o sentido da imagem é outro, de garantir a realização do
valor, em termos mais precisos de lhe dar lucro. O recorte de classe é fundamental para
entendemos este movimento de surgimento de novas necessidades como parte da dinâmica
atual do capitalismo, como imprescindível para a reprodução material e ideológica do capital.
Se há, como mencionamos, um descontentamento na vida real, uma falta de sentido, o
que leva a busca de preenchimento deste vazioe ―mal-estar‖ através do consumo de bens e
serviços, da imagem espetacular, por que este descontentamento não é canalizado para um
rompimento radical com a realidade contemporânea, que tanto oprime? A resposta a esta
questão passa, necessariamente, pela organização da classe trabalhadora, pela consciência de
classe. Entretanto, dentro da nossa temática de estudo diríamos que o esvaziamento do
desejo, como um impulso ao psiquismo, é um elemento que tem, de um lado, reforçado o
comodismo e, de outro impulsionado a fuga pela via dos psicotrópicos, das drogas e da
violência. Destacamos ainda que o monopólio da memória tem funcionado também como um
elemento importante de fragmentação do indivíduo e desconhecimento de si e do outro (e de
não reconhecimento de si no outro), portanto, para dificultar a consciência de classe.
229
CONSIDERAÇÕES FINAIS: das fissuras do tempo
Foi sangrenta
Foi sangrenta toda a terra do homem.
Tempo, edificações, rotas, chuva,
apagam as constelações do crime.
o certo é que um planeta tão pequeno
foi mil vezes coberto pelo sangue,
guerra ou vingança, armadilha ou batalha,
caíram homens, foram devorados,
depois o esquecimento foi limpando
cada metro quadrado: alguma vez
um vago monumento mentiroso,
às vezes uma cláusula de bronze,
depois conversações, nascimentos,
municipalidades, e o esquecimento.
Que artes temos para o extermínio
e que ciência para extirpar lembranças!
Está florido o que foi sangrento.
Preparar-se, rapazes,
para outra vez matar, morrer de novo,
e cobrir com flores o sangue.
Pablo Neruda.
Em tempos de predomínio do capital fetiche, as contradições constitutivas da
sociedade capitalista se tornam mais agudas e acirradas. Nestes tempos bárbaros ou
deciframos as fissuras inscritas no real, que nos permitam apontar alternativas à voracidade do
capital ou somos devorados pelo próprio tempo.
Na tentativa de decifrar alguns elementos constitutivos do nosso tempo percorremos
caminhos investigativos que nos levassem à análise crítica da criação de um “campo
especial de necessidades mercantis na contemporaneidade a partir do fetiche da
mercadoria.
Esta tese foi resultado deste percurso e se constitui na defesa de que a produção social
de determinados tipos de necessidades, em especial as ligadas ao desejo e à fantasia
(poderíamos dizer, ligadas à elementos da subjetividade), no atual estágio do capitalismo, é
condição história para a realização do valor produzido e, portanto, para a reprodução
(material e ideológica) do próprio capital. Desta forma, este ―tipo‖ de necessidade social não
se encontra no campo da circulação de mercadorias (publicidade, marketing) ou, como é
comum afirmar, da indução ao consumo, mas fundamentalmente, no campo da produção e, da
produção capitalista das próprias necessidades, o que implica dizer que estas são, portanto,
elas mesmas, as necessidades, produzidas como mercadorias. Estas necessidades estão assim,
230
também no campo da produção ou da constituição das subjetividades contemporâneas, da
produção e reprodução dos próprios indivíduos sociais.
Demonstrar a historicidade das necessidades sociais foi o caminho de onde partimos
para construir argumentos de que era possível que o atual estágio do capitalismo criasse, a
partir de suas contradições inerentes, necessidades especiais, que permitissem além da
indução ao consumo, a disseminação da ideologia burguesa e a ―padronização de
comportamentos‖. Por outro lado, as contradições e mediações presentes neste processo de
criação de novas necessidades só poderiam ser apreendidas em seu movimento real, para além
das aparências que vigoram na sociedade contemporânea, se fossem vinculadas ao fetiche das
mercadorias e, de forma mais ampla, ao fetichismo enquanto expressão necessária da
sociedade burguesa. Foi o que fizemos em nossas análises.
Com estas mediações buscamos explicitar a relação entre as expressões fenomênicas
do fetiche da mercadoria na contemporaneidade e a produção e reprodução dos sujeitos
sociais, além do que, encontrar os nexos entre produção material e constituição de
subjetividades. Por fim, destacamos que, o que diferencia estas necessidades, ou este ―campo
de necessidades especiais‖, das até então criadas na dinâmica capitalista é o seu conteúdo,
serem alimentadas e retro-alimentadas de elementos dos desejos e fantasias do homem
contemporâneo e prometerem através da sua satisfação uma experiência singular aos
indivíduos.
Este último elemento foi fundamental em nossos argumentos, posto que, permitiu que
em nossas análises apreendêssemos o alcance ideológico que este ―campo de necessidades
mercantis‖, que nos propusemos investigar, tem na vida dos sujeitos sociais contemporâneos.
Aqui reside, em nosso entendimento, a maior relevância deste estudo: entender um dos
elementos (instrumentos) atuais utilizados pelo capital, na sua dinâmica auto-destrutiva, para
“padronizar comportamentos”, moldar formas de ser” e “induzir na construção de
subjetividades” que estejam conforme com sua ideologia.
As decorrências destas formas de ingerência no ―espaço‖ da subjetividade do homem
contemporâneo poderiam ser desastrosas, e a realidade o tem demonstrado. Assimilados à
outros elementos (tão ou mais significativos que os analisados nesta tese
160
), a introdução da
dinâmica mercantil contemporânea (com o predomínio do capital fetiche) no ―espaço da
subjetividade‖ tem contribuído sobremaneira para a constituição de relações sociais
160
Como por exemplo: a produção mercantil das guerras, a disseminação do medo e do terror, a produção da
miséria, o aumento do desemprego, etc.
231
fragmentadas, onde predomina, semelhante a qualquer relação mercantil atual, a
descartabilidade, a superficialidade e a obsolescência artificial. Este mesmo movimento, que
produz o individualismo e a concorrência como parâmetros das relações sociais diversas,
também produz o esvaziamento do sujeito, a solidão, a depressão, o ―mal-estar‖, a falta de
solidariedade (inclusive de classe), a banalização do humano, etc., por conseguinte, produz,
contraditoriamente, a necessidade, cada vez mais urgente, de que os sujeitos se libertem desta
dinâmica de opressão e de exploração.
O que pudemos concluir em nossa investigação é que mesmo consistindo em
―condição histórica‖ para a realização do valor produzido, a produção social de determinados
tipos de necessidades, em especial as ligadas ao desejo e à fantasia, não consegue reverter as
crises de superprodução, mas funciona como impulsionadora do consumo e em alguns setores
da economia garante que o consumo se realize mesmo em tempos de crise, assegurando a
estes setores se não a manutenção, pelo menos uma queda menor da taxa de lucro. Desta
forma, o maior impacto deste processo, da criação deste ―campo especial de necessidades
mercantis‖, entendemos estar na determinação de subjetividades, na interferência na
conformação do individuo social contemporâneo.
Se de um lado, as novas necessidades mercantis criadas pelo capitalismo
conseguem reverter a queda do consumo por um período determinado, para alguns setores
econômicos, e a uma pequena parcela da população (não estamos negligenciando, contudo,
seu impacto econômico), por outro, é brutal o impacto que tem na constituição das relações
sociais atuais: a superficialidade, a descartabilidade, a obsolescência artificial, o egoísmo, e
todos as outras expressões das relações sociais contemporâneas analisadas nesta tese, são
exemplos do que afirmamos.
Desta forma, em acordo com o que enunciamos acima, no desenvolvimento da nossa
pesquisa confirmamos que a relevância do estudo da temática que nos propusemos, desde que
ancorada em uma perspectiva crítica, estar, não na simples identificação de elementos que
induzam o consumo, não no consumo em si, não em identificar se as pessoas estão
consumindo mais ou menos (apesar de considerarmos a importância deste elemento), mas
entender e explicar que relações sociais estão sendo construídas por dentro do “tecido
social” para que o fetiche da mercadoria adquira a expressão e a “força” que tem na
“determinação” da produção e reprodução dos sujeitos sociais contemporâneos.
232
Portanto, quando recorremos à propaganda, publicidade, exemplos sobre programa de
TV e do papel da Internet, não os utilizamos como forma de recortar o real, ou mesmo
creditar a estes exemplos o alcance social que não têm, mas ao contrário, recorremos a eles
como forma de explicitar que uma lógica semelhante à observada nestes casos de forma mais
explícita: da espetacularização da violência, da mercantilização e banalização da vida, da
descartabilidade das pessoas, da superficialidade das relações, etc., está atravessando também
as nossas relações sociais cotidianas e a conformação de nossas subjetividades. Esta
abordagem nos demonstrou ser importante por nos permitir apontar elementos históricos e
sociais convergentes na criação de determinadas necessidades sociais contemporâneas e,
portanto, convergentes na criação do homem contemporâneo.
A partir desta abordagem, ―A crítica da estética da mercadoria‖ nos permitiu afirmar
que a assimilação de elementos dos desejos e fantasias dos indivíduos (e artificialização
destes) e sua devolução cristalizados em mercadorias, propagandas ou publicidades, não se
trata mais de um mero recurso psicológico para convencer o consumidor a comprar
determinado produto, mas de uma estratégia de “universalização” de necessidades mercantis
(mesmo que sejam produzidos com o objetivo de indução ao consumo), que, no nosso
entendimento, funciona como um recurso ideológico de manutenção das relações reificadas
do capitalismo avançado. Neste sentido, a imposição da dinâmica do tempo nimo (do
tempo do capital fetiche‖) e a apropriação‖ de espaços subjetivos funcionam como
articuladores deste processo.
É assim que vivenciamos uma nova dinâmica do tempo e do espaço na sociedade
contemporânea. Dinâmica que impõe o tempo mínimo (a obsolescência, a descatabilidade, a
falta de profundidade nas relações sociais) como tempo presente. Por outro lado, aponta
também para a apropriação e mercantilização de ―espaços privados e subjetivos‖ que até então
estavam por fora das relações mercantis diretas: como o espaço do corpo, da memória, da
psique dos sujeitos sociais. No nosso entendimento isto demonstra que, longe de haver uma
eliminação da temporalidade na sociedade contemporânea, há uma re-significação do tempo e
um redimensionamento de espaços conquistados pelo capital.
Neste sentido, dentro da temática que nos propusemos discutir, apontamos três
elementos que devem ser resgatados, como elementos de resistência ao movimento que
analisamos em nossa tese e, portanto, como elementos que devem atravessar as diversas
formas de organização da classe trabalhadora. São eles: o tempo, o espaço e a memória, este
último como uma confluência dos dois anteriores.
233
Como demonstramos ao longo de nossa exposição o imperativo do tempo do capital e a
apropriação de espaços que até então estavam por fora das relações mercantis são recursos utilizados
na constituição de novas necessidades mercantis e, fundamentalmente, na constituição das
subjetividades contemporâneas.
Portanto resgatar o sentido do tempo que pode ser vivido por fora das relações mercantis, do
verdadeiro tempo livre(que não é simplesmente o tempo do não-trabalho), reconquistar os espaços
apropriados pelo capital e reconstruir nossas memórias (a memória dos subalternos, dos esquecidos,
dos que são cotidianamente usurpados pelo capital) são instrumentos de resistência importantes.
Quando indicamos como elemento de resistência ao imperativo do ―tempo do capital‖ o
resgate do próprio tempo, não estamos nos referindo às formas tradicionais de luta pelo tempo (como a
luta por mais trabalho e todas as reivindicações dela decorrente), mesmo sem desconsiderar sua
importância, mas em que as lutas contemporâneas dos trabalhadores não podem negligenciar o resgate
do ―verdadeiro sentido emancipatório do tempo livre‖ (já indicado por Marx em suas obras). Este
resgate passa, necessariamente, pela construção de estratégias de luta que considerem a desalienação
do tempo livre e a valorização destas como espaços de resistência à barbárie, a massificação das
subjetividades, à captura do sujeito pela Imagem, à padronização de comportamentos, enfim, de
resistência ao aparato ideológico que o capital recorre como mantenedor de relações sociais reificadas.
O resgate do ―tempo e do espaço‖ apropriados pelo capital se dar, assim, através de formas
alternativas de vivenciar o ―tempo livre‖ e da ―construção‖ de novas referências espaciais. Em relação
à construção de novas referências espaciais consideramos importante não que estas sejam feitas do
ponto de vista geográfico, conforme nos indica Jameson, mas também em relação ao que
consideramos nesta tese como ―novos espaços‖ apropriados e mercantilizados pelo capital: como o
espaço do corpo, da memória, da psique, das subjetividades dos homens contemporâneos. Resgatar o
impacto destrutivo que a mercantilização desses espaços provoca na construção dos sujeitos
contemporâneos, em especial da classe trabalhadora, e se contrapor a ele é fundamental para a
construção de estratégias de lutas sociais que possam, por exemplo, conseguir a adesão de jovens desta
classe que se identificam e defendem cada vez mais o status quo e a ideologia capitalista (mesmo
dentro dos movimentos mais combativos).
Como confluência dos dois elementos citados acima consideramos que a reconstrução da
memória social individual e coletiva dos sujeitos contemporâneos que são cotidianamente usurpados
em seu ―tempo e espaço‖ pelo capital, os sujeitos da classe trabalhadora é mais que urgente como
pauta dos movimentos sociais. Como nos indica Neruda: ―Que artes temos para o extermínio/ e que
ciência para extirpar lembranças!
234
Resgatar a memória implica em se reconhecer como parte, tanto de uma cultura,
quanto de uma classe social, em se reconhecer em uma história que não é a oficial, a que
vigora nos livros, mas uma ―história dos vencidos‖.
À ―desmemória‖ que a dinâmica capitalista nos impõe deve ser contraposta uma
memória que resgate nossa posição no espaço e no tempo. Que resgate, por exemplo, no caso
de nós brasileiros, a brutalidade da colonização, a história dos negros, indígenas, mulheres;
mas também o espaço das favelas na dinâmica das grandes cidades, da segregação racial, da
emergência de ―novas‖ homofobias e xenofobias etc., sem negligenciar a memória dos
sujeitos sociais, a memória individual, a memória de cada um. Este movimento contribuiria na
construção de sujeitos coletivos que tomassem consciência das mediações entre uma
cotidianidade cada vez mais vazia e empobrecedora e a dinâmica histórica da sociedade na
qual estão inseridos.
Destaco, desde já, que considero este um elemento fundamental de resistência ao
processo que descrevi nesta tese (e que deva ser considerado nas diversas formas de
organização da classe trabalhadora) e não como a forma ou o meio de resistência ao capital
(até porque estes não existem no singular).
Ressaltamos que a leitura Jameson (2004) nos ajudou a reforçar a idéia de resgate da
memória como elemento de resistência. Mesmo discordando de alguns aspectos dos
argumentos deste estudioso, sua concepção de mapa cognitivo foi em grande parte importante
para reforçar o que aqui apresento.
Não concordamos com Jameson de que a totalidade social não é mais possível a não
ser como mapa cognitivo, entendemos que mesmo que no atual estágio do capitalismo a
realidade apareça fragmentada, esta forma de composição do real faz parte de uma totalidade
social concreta, totalidade que se expressa de forma marcante nos momentos de crise aguda
do capital e de revolução. No primeiro caso isso é notório, em momentos de crise, como a que
vivenciamos atualmente, a totalidade se recompõe e se explicita na realidade. No caso de
revolução, a superação do sistema capitalista e do capital só é possível como totalidade social.
Por outro lado, entendemos que os indivíduos não vivenciam seu cotidiano a partir da
totalidade (porque de fato não tomam consciência dela), nem mesmo muitos movimentos
sociais a consideram em suas organizações e, neste sentido, ―o mapeamento cognitivo‖ é
imprescindível tanto na sua dimensão cognitiva quanto pedagógica.
235
Também não concordamos com uma concepção de Jameson, como deixamos claro
em nossos argumentos anteriores, onde este assegura que ―nossa vida cotidiana, nossas
experiências psíquicas, nossas linguagens culturais são hoje dominadas pelas categorias de
espaço e não pelas de tempo, como o eram no período anterior do alto modernismo‖
(Jameson; 2004: 43).
O espaço, não o geográfico, mas os outros que mencionamos até aqui adquirem um
redimensionamento na cotidianidade contemporânea que não foi vivenciado em outras fases
do capitalismo, mas isso não elimina o tempo das experiências cotidianas, nem da dinâmica
social enquanto totalidade. Diferente do que postula Jameson (2004), em relação ao espaço, e
em algumas passagens também Mészáros (2007) em relação ao tempo, atualmente não
prevalência de uma experiência sobre a outra (a temporal e a espacial), mas que em qualquer
outro momento estas duas experiências estão simbioticamente articuladas, mas articuladas a
partir da dinâmica destrutiva do capital e cabe aos movimentos sociais buscar uma outra
articulação possível, articulação que, conforme indicamos, conflua com a criação de
estratégias de luta pela emancipação humana.
Entretanto, apesar das críticas apontadas a Jameson, consideramos que ele contribui
para identificarmos a urgência histórica em se proceder a recomposição da totalidade social
teoricamente, mentalmente, como instrumento de resistência (como mapa cognitivo),
porque seus nexos causais, suas conexões e mediações são escamoteados pelo fetiche e vigora
cada vez mais a fragmentação, a desarticulação, o esvaziamento e a descartabilidade dos
indivíduos e dos movimentos sociais.
O mapeamento cognitivo, segundo Jameson (2004: 77) deve ter a função ―na moldura
mais estreita da vida cotidiana na cidade‖ de ―permitir a representação situacional por parte
do sujeito individual em relação àquela totalidade mais vasta e verdadeiramente
irrepresentável que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo‖. Em outros
termos, ―o mapeamento cognitivo em seu sentido mais amplo começa a exigir a coordenação
de dados da existência (a posição empírica do sujeito) com concepções não vividas, abstratas
da totalidade geográfica‖ (Idem: 78), ou seja, como estética do mapeamento cognitivo
Jameson considera ―uma cultura política e pedagógica capaz de dotar o sujeito individual de
um sentido mais aguçado de seu lugar no sistema global‖.
Acrescentaríamos aos argumentos de Jameson, sem pretender esvaziar o sentido que o
próprio autor atribui ao mapeamento cognitivo‖, mas com o objetivo de apontar elementos
236
para futuras reflexões, que sem a dimensão de tempo (dimensão de profundidade) associada à
dimensão de espacialidade proposta pelo próprio Jameson, sem o resgate do tempo a função
que ele credita ao mapeamento cognitivo torna-se incompleta. Este resgate, de profundidade e
espacialidade confluem, como já indicamos, na construção da memória social.
Assim, a classe trabalhadora organizada tem que recuperar espaços de luta e
rearticular suas lutas considerando a dinâmica espacial. Entretanto, esta articulação não tem
somente uma dimensão de espaço, mas deve-se considerar o aspecto temporal, de
profundidade. Não basta que o homem (e os homens organizados coletivamente) entenda o
seu lugar no mundo global, se localize espacialmente no mundo, na sua cidade, etc, é
fundamental que se encontre no tempo, na história, que reconstrua sua memória (espacial e
temporal, individual e coletiva). É assim que toma consciência do seu lugar no mundo, lugar
no sentido mais amplo possível, como sujeito social e como classe.
Resgatamos de Martins algumas contribuições para reafirmarmos a necessidade de
reconstrução da memória e de resgate da imaginação criativa e criadora. Como destaca
Martins (2008: 36) nestes tempos modernos houve uma exacerbação do imaginário, da
capacidade de fabulação, e um encolhimento da imaginação, a capacidade social de criar
saídas e inovações para os problemas e é na cotidianidade que este movimento se expressa.
Assim ―A vida se torna um modo de vida marcado por uma sociabilidade teatral, pela
representação (por fazer presente o ausente), pela fabulação. Mas se o imaginário submetido e
manipulado pelas instâncias de poder se alarga em relação à imaginação, criadora e
revolucionária, esta não desaparece. Sobrevive em tensão, como contradição do viver,
expressa no imediato e, portanto, na própria vida cotidiana‖. (Martins, 2008: 91). A partir
destas tensões devem ser resgatados os elementos de reconstrução da memória e da
capacidade de imaginação dos sujeitos sociais. E os germes destes elementos devem ser
buscados na cotidianidade dos trabalhadores, nas contradições com as quais convivem
cotidianamente e não ―produzidos‖ superficialmente em escritórios, salas de aula ou mesmo
sedes de movimentos e partidos.
Portanto, como ainda nos indica Martins Nos resíduos e no virtual estão as
necessidades radicais, necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade,
necessidades insuportáveis, que agem em favor das transformações sociais, que anunciam as
possibilidades contidas nas utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser‖ (Martins, 2008:
107), sendo a partir destas necessidades radicais que se constroem caminhos para a
emancipação humana. Para construir estes caminhos é preciso juntar os fragmentos, dar
237
sentido ao residual, descobrir o que ele contém como possibilidade-não realizada. Nesse
sentido é que ele encerra um projeto de transformação do mundo: ‗Terminaremos pela decisão
fundadora de uma ação, de uma estratégia: a reunião dos ‗resíduos‘, sua coalizão para criar
poeticamente na práxis, um universo mais real e mais verdadeiro (mais universal) do que os
mundos dos poderios especializados‘‖ (Idem).
Destacamos que nem a reconquista de espaços, nem o resgate da memória são
suficientes para que se processe a transformação social, mas estes são elementos fundamentais
a considerar nas diversas formas de organizações na luta pela superação do capitalismo, a
transformação social só se faz com práxis revolucionária, mas a práxis revolucionária é
empreendida por sujeitos reais que se produzem e reproduzem na sociedade contemporânea.
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